Me questionei se prisão injusta foi porque sou negro e pobre, diz professor
O professor Clayton Ferreira, 40, acusado de ter participado de um sequestro em Iguape (SP) ocorrido quando ele dava aula na capital paulista, diz que não sabe como sua foto, mostrada para a vítima, foi parar nas mãos dos policiais. Em entrevista exclusiva ao UOL, Clayton conta que se apresentou voluntariamente à polícia pensando se tratar de um caso em que ele foi vítima. Ao ser tratado como suspeito de um crime, conta ter se questionado se sua condição social e o fato de ser negro pesaram na sua prisão.
O que aconteceu
Professor de educação física foi solto na quinta-feira (18), depois de passar quase três dias preso no 26º DP de São Paulo. O juiz Roberto Porto, do TJ-SP, entendeu que Ferreira "exerce profissão lícita como professor junto a rede de ensino pública estadual e que assinou regularmente seu registro de ponto no dia do delito".
Clayton conta que foi à delegacia na expectativa de obter respostas sobre um boletim de ocorrência registrado por ele. Até receber a ordem de prisão, pensava que a intimação para comparecer ali tratava da denúncia que ele havia feito sobre um bloqueio de conta bancária em seu nome.
Provas da inocência. O professor disse à polícia que nunca tinha estado em Iguape e que podia provar que estava trabalhando em São Paulo no dia do crime. Ele diz que se questionou sobre o fato de ser negro e pobre influenciar no comportamento da autoridade policial.
A gente fica questionando o porquê. É por causa da minha cor, da minha pele, porque eu sou pobre? Mesmo você não querendo pensar nesse fato, acaba que é muito influenciado. É muito forte essa questão do negro, mesmo você não querendo acreditar. Você está na frente de uma autoridade e tem essa dúvida: será que é ou não é? A gente pode ter uma percepção em que a gente vê um peso, uma medida, pela sua raça, etnia.
Clayton Ferreira, professor
"Nós vamos te prender". No momento da prisão, Ferreira conta que cinco ou seis policiais o cercaram e o levaram para uma sala, incluindo dois agentes de Iguape, cidade onde foi expedida a ordem de prisão.
Policiais perguntaram sobre suposta cúmplice. De acordo com Clayton, os policiais também apresentaram a foto de uma suspeita e perguntaram se ele a conhecia. Ele negou.
Ele perguntou se eu conhecia, mostrou uma foto minha de um RG de 2014 e mostrou uma outra senhora que eu não conhecia. E mostrou o mandado. 'Nós vamos te prender', falou. Achei que ia sair de lá podendo trabalhar, mas fiquei preso.
Clayton Ferreira, professor
Defesa não sabe como a foto do professor foi parar na delegacia de Iguape. Segundo Danilo Reis, advogado de Ferreira, houve um erro no inquérito ao se apresentar a foto do professor.
Polícia só desconfiou que havia um erro após repercussão na mídia. Após o UOL publicar as provas cedidas pela escola onde professor dava aula no dia do crime, o delegado passou a ter outro comportamento, disse Clayton. "Professor não comete crime?", teria provocado um dos agentes.
"Sonhei que estava em casa". Clayton ficou em custódia junto com oito pessoas, em um cômodo apertado e dividindo o espaço. Ele acreditava que tudo se tratava de uma confusão e aguardava ser solto ainda na terça-feira (16).
A primeira coisa que pensei é que eu não ia conseguir ver a minha esposa. Na primeira noite, eu sonhei que estava em casa. Nunca fui preso, nunca passei por isso. No primeiro dia, estava muito confiante, não me deixei abater. Aí a partir do momento em que você não vê o sol, o psicológico bate. Bate tristeza, falta da família, do conforto. O outros presos viam e se perguntavam o que eu estava fazendo lá, 'você é educado', 'você educa, isso não é para você, é uma injustiça contra a sua pessoa'. Eles [outros presos] me colocavam para cima. Eu falei para eles que eu tinha tudo, os relatos, os registros. Aí eles ficaram espantados.
Clayton Ferreira, professor
Professor quer provar sua dignidade. Durante a conversa com a reportagem, Clayton não confirmou se pretende entrar com uma ação civil contra o Estado. Disse que só pensa em voltar a dar aula e provar sua inocência.
Reconhecimento fotográfico. O UOL questionou a SSP (Secretaria de Segurança Pública) sobre o andamento do inquérito. Em nota, foi informado que o homem foi reconhecido por foto pela vítima em depoimento assinado em juízo. A SSP também disse que Ferreira é investigado por um crime semelhante em que ele teria recebido um pix de R$20.000 em setembro de 2023.
Defesa desconhece investigação. De acordo com Danilo Reis, advogado do professor, Ferreira é o principal interessado na conclusão das investigações para provar sua inocência.
Vamos trabalhar com a hipótese de que exista um outro inquérito policial mesmo e que ele seja investigado. Não justifica. É um inquérito policial apartado, nada vinculado ao que originou a prisão
Danilo Reis, advogado de Clayton Ferreira
Até o presente momento a defesa desconhece qualquer investigação anterior originária a prisão realizada ou teve acesso às informações prestadas em nota oficial da Polícia Civil, e que de imediato, independente da liberdade concedida, a pessoa de Clayton irá colaborar com o que for necessário para a conclusão de qualquer investigação em andamento.
Danilo Reis, advogado de Clayton Ferreira
Clayton relata já ter vivido situações de racismo
Já trabalhei em várias escolas em que tive que cortar o cabelo, mas não é isso que a gente quer para o mundo, não só como negro. Mas [o que a gente quer é] ter sua palavra fortalecida, olhar para o seu passado e se ver como uma pessoa íntegra, com sua dignidade.
Clayton Ferreira, professor
Professor já pode voltar a dar aula. De acordo com a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, o docente está apto a lecionar. "Diante da recente decisão da Justiça pela soltura do professor, a Diretoria de Ensino Centro Sul reverteu a interrupção de contrato, e o docente está apto a retornar às suas atividades", disse a pasta em nota.
Atualmente, Clayton ministra aulas de educação física numa escola da Bela Vista, região central. Após o sinal positivo da diretoria, pretende voltar à Escola Estadual Maria José já na próxima segunda-feira.
[Quero voltar] O mais rápido possível. Se depender de mim, semana que vem eu consigo dar aula. Quero lutar por algo melhor, lutar pela minha profissão, Levanto às 4h30 da manhã para dar aula, pelo que eu acredito e pelos meus alunos. Amo o esporte, amo ser professor.
Clayton Ferreira, professor
Entenda o caso
Clayton Ferreira dos Santos foi preso temporariamente terça-feira (16). A vítima do crime, uma mulher de 73 anos, teve R$ 11 mil roubados e reconheceu o professor fotograficamente.
Vítima disse ter informado aos policiais que teve dúvidas ao analisar a imagem. À TV Tribuna, a mulher afirmou que os agentes foram até sua casa e, no portão, mostraram a foto de Clayton em um celular. Segundo ela, a imagem era de um homem de "cabelo muito comprido", enquanto o criminoso tinha cabelo curto. "Em quatro meses, não cresceria o cabelo daquele jeito", disse.
Professor lecionava no momento do crime, diz defesa. O sequestro aconteceu por volta das 9h do dia 31 de outubro de 2023, segundo boletim de ocorrência. De acordo com a defesa de Clayton, nesse momento, ele estava dando aula em uma escola na capital paulista.
Escola emitiu declaração informando que o professor estava lecionando. O documento foi emitido pela escola onde ele trabalhava na época, a Escola Deputado Rubens do Amaral, no Jardim Saúde, zona sul da capital, e é assinado pelo diretor da unidade.
Posso afirmar que ele trabalhou no dia 31. Fiz a declaração dos horários, todos eles, e encaminhei. Estou achando estranha toda essa situação, ele é um professor que nunca deu trabalho, sempre trabalhou certinho. E, de fato, ele estava dando aula
Vilson Sganzerla, diretor da escola
Clayton jamais esteve nessa comarca [Iguape] e, no horário e na data em que foi realizado o roubo, ele estava trabalhando. Ele é professor de educação física. A escola expediu uma declaração, forneceu para nós os atestados, as folhas de ponto.
Mais uma pessoa negra, de comunidade, sem apontamento negativo criminal algum, em cárcere por causa de um mero reconhecimento fotográfico
Danilo Reis, advogado
Secretaria da Segurança disse haver conjunto de provas
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse ao UOL na quarta-feira (17) que a prisão foi baseada em "conjunto probatório". O TJ-SP informou que o caso está em sigilo.
A defesa afirma que todas as medidas serão tomadas para comprovar a falha no inquérito policial.
A autoridade policial de Iguape reuniu o conjunto probatório e representou ao Judiciário pela prisão temporária dos investigados. O Ministério Público manifestou parecer favorável ao pedido, que foi concedido pelo juiz.
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em nota