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Caso Porsche: erros em abordagem policial dificultam prisão e flagrante

Laila Nery

Colaboração para o UOL, em São Paulo

27/04/2024 04h00

"Vai ficar alguém responsável pelo veículo?", é o questionamento que uma policial militar faz antes de liberar Fernando Sastre de Andrade Filho, condutor do Porsche que bateu no carro do motorista de aplicativo Ornaldo da Silva Viana, 52, na zona leste de São Paulo. Fernando sai do local, com a ajuda da mãe, Daniela Cristina de Medeiros Andrade, sem acompanhamento da polícia ou teste do bafômetro

As imagens registradas pelas câmeras corporais presentes nos policiais militares que abordaram Fernando mostraram uma série de comportamentos questionáveis dos agentes, segundo especialistas ouvidos pelo UOL. Ornaldo morreu, e um amigo de Fernando que estava no banco do passageiro do carro de luxo foi levado ao hospital em estado grave.

O que aconteceu?

As imagens das câmeras corporais mostraram a abordagem policial a Fernando, já ao lado da mãe, Daniela Cristina de Medeiros Andrade, que foi chamada ao local do acidente.

No vídeo, uma policial aborda Fernando e Daniela, quando eles tentavam deixar o local, e diz que eles não podem sair sem a notificação policial. "Você não pode tirar ele daqui assim. A gente tem que qualificar primeiro, para depois a senhora retirar", diz. Ela pergunta a outro policial se ele tem um etilômetro, e ele responde que não.

Em seguida, após Fernando responder a alguns questionamentos, a agente solicita que ele assine o documento oficial. Depois, ela pergunta a Daniela para qual hospital ela levará o filho e libera a dupla.

Para especialistas, as falhas na abordagem facilitaram a liberação de Fernando, descaracterizaram o caso como flagrante e podem até impactar em uma possível sentença criminal ao motorista.

Ida ao hospital permitida

Daniela pediu à agente para liberá-los, argumentando que Fernando bateu a cabeça e precisava fazer exames médicos. Inicialmente, a agente não liberou e questionou o motivo de o rapaz não ter solicitado atendimento médico aos bombeiros que prestaram os primeiros socorros ao amigo dele e ao motorista de aplicativo que morreu.

Depois que Fernando responde a algumas perguntas e assina o documento com suas declarações, a policial aceita liberar a dupla. Ela pergunta apenas para qual hospital eles vão.

Policial: "Lê o que você me disse e vê se é isso mesmo, para você assinar".

Eles leem, e Fernando assina.

Daniela: "Pode ir agora?"

Policial: "A senhora vai levar ele para qual hospital?"

Daniela: "Para o São Luiz."

Policial: "Tá."

Para o advogado criminalista Bruno Henrique de Moura, a autorização para o motorista seguir espontaneamente para um hospital, mesmo com uma ambulância no local, não é o procedimento mais recomendado, mas poderia ser feito, desde que uma viatura da polícia o acompanhasse. Em casos de evasão ou fuga, os policiais envolvidos devem acionar imediatamente a central e iniciar uma perseguição, o que não foi feito.

Liberar o condutor para ir por conta própria ao hospital desqualificou o flagrante, na avaliação do criminalista Marinho Soares.

Essa liberação para atendimento médico abole o flagrante, já que o motorista saiu do local com anuência policial.
Marinho Soares, criminalista

Para Soares, a reação dos policiais também pode ser explicada pelo contexto de desigualdade e discriminação. "A polícia estava diante de um rapaz muito jovem e muito rico, acompanhado de sua família, dirigindo um porsche avaliado em mais de um milhão de reais. Se ele realmente estivesse correndo um risco grave, como a mãe alegou, os policiais poderiam responder por omissão de socorro", explica o criminalista.

Apesar dos argumentos usados por Daniela, Fernando não foi levado a um hospital após deixar o local da colisão. Os policiais foram até a unidade de saúde para colher o depoimento do motorista e fazer o teste do bafômetro, mas foram informados na recepção de que ele não deu entrada em qualquer hospital da rede São Luiz. A polícia também foi até a casa da família de Fernando e tentou contato com mãe e filho por telefone, mas sem sucesso.

Falta de atestado sobre consumo de bebida alcoólica

Outro erro policial na abordagem foi liberar o condutor pela ausência de um etilômetro. "O bafômetro é uma — e talvez a mais segura, mas não a única — das várias formas de atestar a condição alcoólica", afirma o criminalista Bruno Henrique de Moura.

Ele explica que, na ausência do equipamento, os policiais poderiam encaminhar Fernando para um exame de sangue. Também poderiam ter atestado um possível estado de embriaguez mesmo sem um bafômetro, a partir da avaliação física do motorista do Porsche.

Existe fé pública na palavra do agente policial e isso é o suficiente para que ele possa afirmar que alguém que está visivelmente bêbado seja impedido de dirigir alcoolizado. É dever dele atestar isso documentalmente, por imagens, vídeos e até testemunhas presentes no local. A polícia, pode, inclusive, conduzir o suspeito para realizar exames de sangue. Além disso, forma de falar, impossibilidade de ficar em pé, cheiro patente de álcool são formas de perceber que alguém não tem condições de dirigir.
Bruno Henrique de Moura, advogado criminalista

Se fosse atestado durante o flagrante que Fernando estava sob efeito de álcool, a pena provavelmente seria maior, avalia Marinho Soares. "Quando há consumo de bebida alcoólica, a gravidade da pena deixa de ser de dois a quatro anos e vai para de quatro a dez. Isso porque a Justiça entende que uma pessoa que dirige embriagada é uma ameaça à ordem pública e pode causar outras mortes."

Acidente matou o motorista de aplicativo Ornaldo da Silva Viana, de 52 anos Imagem: Divulgação/Polícia Civil

Interferência da mãe

Quanto à interferência de Daniela na ação policial, isso também precisa ser definido pelos policiais. Um agente público poderia solicitar o afastamento dela durante a abordagem e definir se ela estava ou não atrapalhando o trabalho da polícia, dizem as fontes consultadas pelo UOL.

A mãe de Fernando foi indiciada por fuga do local do acidente. Na avaliação dos advogados ouvidos, porém, o indiciamento não tem fundamento. "Ele não foi preso, então não se configura como auxílio em fuga, já que o autor do crime foi liberado justamente pela polícia", afirma Bruno Henrique de Moura. "Não faz sentido, só se ela fosse uma autora, o que também não aconteceu."

SSP reconhece falhas

Segundo a PM, Daniela e Fernando só foram liberados porque ela alegou que o jovem teria batido a cabeça e precisava de atendimento médico.

Ao UOL, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) informou que identificou falhas no procedimento dos policiais envolvidos no caso e que eles serão responsabilizados por não submeter o motorista ao teste de alcoolemia.

Foi aberto um procedimento para a responsabilização dos policiais. Vale destacar que, caso a viatura não disponha de etilômetro, é dever dos policiais preservarem o local e os suspeitos, além de acionar o serviço de saúde, enquanto aguardam apoio.
Secretaria da Segurança Pública

Para o criminalista Marinho Soares, as falhas na abordagem policial e em toda a condução do caso deixam uma sensação de impunidade.

A repercussão e a gravidade deste caso e a não decretação de uma prisão preventiva dão a entender que quem tem dinheiro não vai preso. Isso é péssimo, porque a população fica se achando impotente. A sensação de injustiça prejudica a nossa sociedade e a segurança jurídica do país.
Marinho Soares, advogado criminalista

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