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'Dias às escuras': confira carta de mulher que viveu enchente no RS em 1941

Dona Helena, que morreu em janeiro de 2024, e Elenara Imagem: Arquivo Pessoal

Do UOL, em São Paulo

09/05/2024 16h03Atualizada em 09/05/2024 18h34

Como se foram de enchente? Aqui em Porto Alegre foi um assunto muito sério! As águas atingiram a Rua da Praia. A zona que mais sofreu foi Navegantes, São João e Menino Deus. Foi até Floresta e Passo da Mangueira.

O trecho escrito pela gaúcha Helena Silva Stein poderia ser de maio de 2024. Nos últimos dias, enchentes tomaram as ruas do Rio Grande do Sul, inclusive da capital gaúcha, e deixou milhares de pessoas desabrigadas e ilhadas.

Mas as palavras foram retiradas de uma carta escrita por ela em maio de 1941. Helena morreu em janeiro de 2024, aos 98 anos, e por pouco não presenciou a tragédia que atinge novamente o estado 83 anos depois e já deixou mais de 100 mortos.

Coube à filha dela, a arquiteta Elenara Stein Leitão, 67, compartilhar a memória —ela encontrou a carta depois que uma outra enchente atingiu a cidade, em 2015.

Carta escrita por Helena em 1941 Imagem: Arquivo Pessoal

"Achei um documento muito interessante, porque ela fez um relato histórico do que estava acontecendo. Ela contava todos os transtornos que as pessoas tiveram, parentes que ficaram ilhados e perderam tudo", conta ao UOL.

Elenara lembra que as memórias daquela época sempre voltavam a ser assunto quando alguma enchente acontecia na cidade. "Como se fosse um marco histórico, uma referência. [Ela falava] 'Choveu, mas menos que em 41', por exemplo", explica.

Helena nasceu no Rio Grande do Sul, mas em 1941 estava morando no Rio de Janeiro. Ela voltou a Porto Alegre por seis meses, para visitar uma tia, justamente quando choveu por cerca de 20 dias naquele mês de maio. Em cartas que enviava à irmã Flávia, relatou a agonia.

Helena com 16 anos, na época da enchente no RS Imagem: Arquivo Pessoal

Tia Maria saiu de casa. Nós quase que saímos, pois faltou uns quatro metros para chegar aqui em casa! Zilá e Carlos passaram várias semanas aqui, flagelados. A água lá foi um bom pedaço acima do assoalho. Este estragou-se completamente, ficando todo embaulado. Helena Silva Stein

Elenara mora em Porto Alegre, mas em uma região da cidade que não foi afetada diretamente pelas enchentes deste ano. Da janela, ela enxerga parte das áreas atingidas há menos de duas quadras de distância. Neste momento, a arquiteta enfrenta a falta de água, mas tenta ajudar como pode.

"Estou abrigando em casa uma menina que trabalha comigo e mora em Canoas, ela teve a casa alagada e foi salva por botes. Todo mundo tem um conhecido que está alagado ou perdeu tudo", acrescenta. Elenara destaca que a carta da mãe está escrita em pedaços pequenos de papel, o que indica que provavelmente estava em falta.

A cidade esteve vários dias às escuras, sem água, sem leite, sem jornal, foi mesmo de assustar! A coitada da Belmira perdeu tudo, tudo... os móveis abriram-se todos, estragaram-se completamente. Helena Silva Stein

"A semelhança é a sensação de 'nunca pensei viver uma situação como essa'. Eu lembro do que ela relatava, de ser algo histórico e único. E hoje vejo as pessoas falando isso. É um momento tristemente histórico", conta Elenara.

A seguir, confira a carta escrita por Helena:

Porto Alegre, 26 de maio de 1941

Flavinha querida, Saudades!

Respondo com carinho tua querida cartinha de 28 do mês passado e que só me veio às mãos ontem. Imagina! Quase um mês!

Como se foram de enchente? Aqui em Porto Alegre foi um assunto muito sério! As águas atingiram a Rua da Praia. A zona que mais sofreu foi Navegantes, São João e Menino Deus. Foi até Floresta e Passo da Mangueira.

Tia Maria saiu de casa. Nós quase que saímos pois faltou uns quatro metros para chegar aqui em casa! Zilá e Carlos passaram várias semanas aqui, flagelados. A água lá foi um bom pedaço acima do assoalho. Este estragou-se completamente, ficando todo embaulado.

A cidade esteve vários dias às escuras, sem água, sem leite, sem jornal, foi mesmo de assustar! A coitada da Belmira perdeu tudo, tudo... os móveis abriram-se todos, estragaram-se completamente.

Os trens pararam e o telegrafo interrompeu. Estávamos simplesmente isolados do interior. Cinemas, colégios, Faculdade de Medicina e Direito ficaram cheios de flagelados e o governo sustentando todo o pessoal. Flagelados 17.000! O professorado todo dando comida e cuidando deles.

No Pão dos Pobres foi até ao segundo andar, quase cobriu a Igreja de Santo Antonio. Os meninos saíram e o prejuízo foi calculado em 5 mil contos!

Dizem que em São Jerônimo foi uma coisa horrorosa! Cachoeira (do Sul), a não ser as lavouras, a cidade não sofreu nada, mas o arroz perderam todo.

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