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OpiniãoCotidiano

Repórter no RS: 'No escuro da noite, você não sabe se é bandido ou aliado'

Evitar que uma onda de saques instaure o 'clima de cada um por si'. Esta é a tarefa dos policiais e seguranças com quem dividi um dos barcos que fazem patrulhas noturnas pelas áreas alagadas de Porto Alegre.

A prova de que há ladrões entrando em casas e lojas apareceu antes mesmo de eu entrar na água. Um barco da polícia atracou no viaduto que serve de porto improvisado. Era começo da noite, umas 19h30. O suspeito desceu algemado e foi direto para o camburão.

Cabe ressaltar que o clima de solidariedade que se espalhou pelo Brasi é ainda mais forte no Rio Grande do Sul. Mas todo lugar tem seus fios desencapados. Encaminhei perguntas sobre os saques para a Brigada Militar, como os gaúchos chamam a PM.

O comandante do Policiamento da Capital, coronel Luciano Moritz, explicou que a fase de retirada das vítimas terminou. A preocupação agora é "manter a ordem pública". Traduzindo, evitar que criminosos se aproveitem da enchente.

O repórter do UOL Felipe Pereira, em Porto Alegre
O repórter do UOL Felipe Pereira, em Porto Alegre Imagem: Felipe Pereira/UOL

Caso os saques se multipliquem, a população, ou pelo menos parte dela, resolveria agir por conta própria. A coisa descambaria para um faroeste. Mas garantir a segurança é tarefa complicada. A começar pelo clima de apocalipse das áreas alagadas.

A escuridão faz os olhos demorarem a definir o contorno das coisas. Mesmo que sejam coisas grandes como árvores. Quando a vista se ajusta a falta de luz, percebe-se a água na altura dos telhados, a cabeça quase na atura dos fios de luz e muito lixo boiando.

Cores quentes, como fachadas de lojas pintadas de um vibrante laranja, parecem não combinar com a sensação de catástrofe do lugar. A associação que fiz foi com as fotos Chernobil. Assim como na cidade ucraniana, o centro de Porto Alegre carrega o desalento da fuga desesperada.

Este ambiente inóspito é o local de trabalho de policiais. O comandante do Policiamento da Capital não fornece números por se tratar de informação estratégica. Mas há muitos agentes na área. Eles priorizam as regiões com muitas lojas.

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Assim como eu fiz, os policiais usam capa de chuva, bota, roupa impermeável e mais um monte de EPI (equipamento de proteção individual).

Mas a água se infiltra por qualquer brecha e uma hora se percebe que o pé está molhado. De repente, você está molhado por inteiro.

A chuva é insolente e continua caindo, alheia ao sofrimento que causa. Digo mais. Se ela tivesse sentimento, não haveria gente expulsa de casa. Os policiais e seguranças trabalham nessas condições a noite toda.

Até que a luz domine as trevas trazendo a libertação, serão quilômetros por rua alagadas. Cada barco vindo na direção contrária é uma ameaça. É bandido ou aliado? Experimentei este dilema algumas vezes. Fico pensando como é a repetição desta pergunta centenas de vezes noite após noite.

Minha rota de fuga estava traçada. Em caso de dar ruim, me jogaria na água, aproveitaria meu fôlego longo e emergiria dezenas de metros distante. Refugiado numa árvore ou construção, ligaria o modo "segura na mão de Deus e vai" enquanto esperava socorro.

Não foi preciso pôr o plano em prática.

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É justo o leitor fazer a seguinte pergunta: "Por que raios uma pessoa se coloca numa situação que envolve risco?" Pelo mesmo motivo que policiais nunca treinados para atuar na água estarem virando noites nas áreas alagadas: achar que vale a pena.

Eles entendem ser necessário que a solidariedade continue mais forte que o egoísmo do "cada um por si". Eu acredito que este esforço deve ser contado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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