Repórter no RS: 'No escuro da noite, você não sabe se é bandido ou aliado'
Evitar que uma onda de saques instaure o 'clima de cada um por si'. Esta é a tarefa dos policiais e seguranças com quem dividi um dos barcos que fazem patrulhas noturnas pelas áreas alagadas de Porto Alegre.
A prova de que há ladrões entrando em casas e lojas apareceu antes mesmo de eu entrar na água. Um barco da polícia atracou no viaduto que serve de porto improvisado. Era começo da noite, umas 19h30. O suspeito desceu algemado e foi direto para o camburão.
Cabe ressaltar que o clima de solidariedade que se espalhou pelo Brasi é ainda mais forte no Rio Grande do Sul. Mas todo lugar tem seus fios desencapados. Encaminhei perguntas sobre os saques para a Brigada Militar, como os gaúchos chamam a PM.
O comandante do Policiamento da Capital, coronel Luciano Moritz, explicou que a fase de retirada das vítimas terminou. A preocupação agora é "manter a ordem pública". Traduzindo, evitar que criminosos se aproveitem da enchente.
![O repórter do UOL Felipe Pereira, em Porto Alegre O repórter do UOL Felipe Pereira, em Porto Alegre](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/14/2024/05/11/11mai2024---o-reporter-do-uol-felipe-pereira-em-porto-alegre-1715462301991_v2_450x450.jpg)
Caso os saques se multipliquem, a população, ou pelo menos parte dela, resolveria agir por conta própria. A coisa descambaria para um faroeste. Mas garantir a segurança é tarefa complicada. A começar pelo clima de apocalipse das áreas alagadas.
A escuridão faz os olhos demorarem a definir o contorno das coisas. Mesmo que sejam coisas grandes como árvores. Quando a vista se ajusta a falta de luz, percebe-se a água na altura dos telhados, a cabeça quase na atura dos fios de luz e muito lixo boiando.
Cores quentes, como fachadas de lojas pintadas de um vibrante laranja, parecem não combinar com a sensação de catástrofe do lugar. A associação que fiz foi com as fotos Chernobil. Assim como na cidade ucraniana, o centro de Porto Alegre carrega o desalento da fuga desesperada.
Este ambiente inóspito é o local de trabalho de policiais. O comandante do Policiamento da Capital não fornece números por se tratar de informação estratégica. Mas há muitos agentes na área. Eles priorizam as regiões com muitas lojas.
Assim como eu fiz, os policiais usam capa de chuva, bota, roupa impermeável e mais um monte de EPI (equipamento de proteção individual).
Mas a água se infiltra por qualquer brecha e uma hora se percebe que o pé está molhado. De repente, você está molhado por inteiro.
A chuva é insolente e continua caindo, alheia ao sofrimento que causa. Digo mais. Se ela tivesse sentimento, não haveria gente expulsa de casa. Os policiais e seguranças trabalham nessas condições a noite toda.
Até que a luz domine as trevas trazendo a libertação, serão quilômetros por rua alagadas. Cada barco vindo na direção contrária é uma ameaça. É bandido ou aliado? Experimentei este dilema algumas vezes. Fico pensando como é a repetição desta pergunta centenas de vezes noite após noite.
Minha rota de fuga estava traçada. Em caso de dar ruim, me jogaria na água, aproveitaria meu fôlego longo e emergiria dezenas de metros distante. Refugiado numa árvore ou construção, ligaria o modo "segura na mão de Deus e vai" enquanto esperava socorro.
Não foi preciso pôr o plano em prática.
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Quero receberÉ justo o leitor fazer a seguinte pergunta: "Por que raios uma pessoa se coloca numa situação que envolve risco?" Pelo mesmo motivo que policiais nunca treinados para atuar na água estarem virando noites nas áreas alagadas: achar que vale a pena.
Eles entendem ser necessário que a solidariedade continue mais forte que o egoísmo do "cada um por si". Eu acredito que este esforço deve ser contado.
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