'Minha filha foi atropelada por prefeito e ele foi discursar na Câmara'

"Eu não busco vingança, só quero justiça", diz Neusa Florindo, 56. Em fevereiro de 2023, ela chegou ao hospital para ver a filha, Bianca Florindo, 28, que tinha caído da moto que conduzia em Porciúncula (RJ). Mas, no pronto-socorro, recebeu uma notícia ainda mais chocante: a filha foi violentamente atropelada pelo prefeito da cidade vizinha, Tombos (MG), logo após o acidente, enquanto ainda era atendida.

Segundo denúncia do Ministério Público de Minas Gerais, aceita pelo Tribunal de Justiça do estado em julho deste ano, o prefeito Tiago Dalpério (PP) não parou para prestar socorro —ele disse, na época, que prestou esclarecimentos assim que soube do que ocorreu.

Ao UOL, Neusa fala sobre a morte da filha e sobre como é criar a neta em meio à saudade.

'Arremessada a 20 metros de distância'

Bianca e a mãe, Neusa; jovem morreu em 2023
Bianca e a mãe, Neusa; jovem morreu em 2023 Imagem: Arquivo pessoal

"[O inquérito diz que] minha filha estava de moto e caiu no asfalto ao desviar de um cachorro. Policiais militares que faziam a ronda viram e pararam para saber o que tinha acontecido, e ela explicou que estava com o pé machucado.

Em questão de segundos, um carro veio e ela gritou. Só deu tempo de eles pularem, mas ela já estava no chão e não conseguiu sair da frente.

Eu estava em casa, e chegou um rapaz. Ele falou: 'Sua filha tomou um tombinho de moto, chamaram a ambulância'. Quando cheguei ao local [do acidente], me falaram que ela saiu bem mal.

Fiquei sem entender, mas pensei que o tombo tinha sido feio. Quando cheguei ao pronto-socorro, vi que ela não se machucou muito, mas implodiu por dentro —teve uma hemorragia interna. O ralado que ela tinha foi do tombo da moto.

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Ainda no hospital, chegou um policial querendo falar com ela. Eu disse que ela não estava em condições de falar, e ele disse que iam pegá-lo. E eu questionei: 'Pegar quem?'.

Então, soube que não foi o tombo que a matou: ela foi atropelada por uma caminhonete.

Depois, a perícia indicou que ela foi arremessada a 20 metros de distância.

[Segundo a denúncia aceita pelo TJMG, houve "alertas de gritos e sinais com as mãos das pessoas que a socorriam", mas o motorista, "desatento na direção", atropelou Bianca, "arremessando-a a uma distância aproximada de 20 m".]

'Ele seguiu, foi embora'

A Bianca foi atropelada por Tiago Dalpério, prefeito da cidade de Tombos. Ele seguiu, não foi para o pronto-socorro: foi embora.

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[Em depoimento à polícia, ao qual o UOL teve acesso, Dalpério disse que "continuou trafegando normalmente (...) e não viu nenhuma pessoa ou veículo onde ocorrera o impacto com o que estava na via de rolamento".]

Estacionou o carro na casa de um parente e, de lá, foi a pé para participar de um evento na Câmara Municipal. Discursou friamente, como se nada tivesse acontecido, mas o para-lama do carro ficou no local do acidente.

[O inquérito diz que Dalpério "deixou o veículo guardado na garagem da casa de sua avó" e "se deslocou até a Câmara" para "participar da sessão solene de início dos trabalhos do ano"].

Quando a polícia perguntou se ele passou pela via, ele disse que sim. E que não viu nenhum acidente. Perguntaram se ele não passou em cima de nada, e ele disse que passou por cima de uma coisa, mas não parou. Que achou que fosse um pau.

Eu não busco vingança, só quero a justiça. Ele tem de pagar pelo que fez.

'Deixou uma filha'

A Bianca tem uma filha, que tinha quatro anos na época. Ela deixou essa joia para a gente, e é igual à Bianca. Tem um ano e meio que virei a mãe dela. A gente não usa a palavra morte com ela, falamos que a mamãe está no céu e que não vai voltar.

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Bianca deixou uma filha de 4 anos
Bianca deixou uma filha de 4 anos Imagem: Arquivo pessoal

Na época da morte, quando chegamos em casa, ela foi para o cômodo onde dormiam falando: 'Vou ver a minha mãe'. Outro dia ela abraçou o porta-retrato e falou: 'Queria tanto a minha mãe Bianca na Terra comigo'. Dói, machuca.

Se ele for preso, acho que a justiça terá sido feita. Mas o Tiago ainda é prefeito, e candidato à reeleição. O ego dele é muito grande. Se ele perder a política, perde muito mais do que se pegar anos de prisão.

Eu, como mãe, acho que a Justiça deveria dar nem que fosse seis meses [preso] para ele aprender o que é uma coisa no asfalto. Eu peço muito a Deus que ele seja punido para que outras pessoas não sejam vítimas —não só dele, mas de outros."

O que diz Tiago Dalpério

Dalpério foi procurado pela reportagem do UOL por meio da Prefeitura de Tombos e pela sua conta no Instagram, mas até o momento da publicação não retornou. O espaço segue aberto.

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Na época, ele lamentou a morte de Bianca e afirmou, pelas redes sociais, que "imediatamente, após tomar conhecimento acerca dos fatos se apresentou espontaneamente perante a autoridade policial competente e prestou esclarecimento".

O veículo que Dalpério dirigia no momento do atropelamento pertence à Secretaria da Educação da cidade. A família de Bianca pediu impeachment sob alegação de quebra de decoro, já que Tiago estava utilizando um carro do poder público, mas o pedido foi rejeitado pela maioria dos vereadores.

Dalpério está concorrendo à reeleição em Tombos pelo PP.

O processo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais não tem previsão de julgamento.

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