'Vi trailer da minha morte e do apocalipse': como é fumar veneno de sapo
Rodrigo Bertolotto
Colaboração para o UOL, em São Paulo
11/10/2024 05h30
Minha boca se abriu imensamente. Os dentes, os lábios e a língua se desintegraram. Eu engolia o universo, e era engolido por ele.
Foram milênios em minutos. De olhos fechados, vi um trailer da minha morte e do fim dos tempos também. E tudo bem: foi lindo. Se é assim que se morre, vamos "descansar em paz".
Estava em um ritual neoxamânico e sob efeito da quarta baforada do "veneno do sapo", substância extraída da glândula de um anfíbio da América do Norte que tem a maior concentração do que é considerado o alucinógeno mais poderoso do planeta, a molécula 5-MeO-DMT.
Depois da cerimônia, andando pela Avenida Paulista a caminho de casa, senti a despersonalização e fiquei me perguntando: o que sou agora? Um sobrevivente, um fantasma ou um imortal?
Do deserto para o mundo
Há três anos vinha pesquisando sobre xamãs que promoviam no Brasil terapias usando o extrato seco da espécie Bufo alvarius (ou Incilius alvarius), animalzinho que existe apenas no Deserto de Sonora, na fronteira oeste entre os EUA e o México.
O sapito criou uma febre turística em clínicas e aldeias indígenas no norte mexicano. E muitos curandeiros de lá saíram em excursão pelo mundo, disseminando o que eles chamam de "la molécula de Dios".
Entrevistei por telefone um terapeuta. Dias antes de tentar participar com ele de um ritual em Mairiporã (SP), porém, uma reportagem de TV com uma paciente relatando efeitos colaterais desencadeou uma onda de repressão à atividade.
Houve apreensões de material em três estados (São Paulo, Rio e Goiás). E esse xamã estrangeiro nunca mais voltou ao país.
Apesar de ser uma substância análoga à dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, o veneno do sapo é considerado substância ilegal pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Já o bufo está liberado no México, mas é proibido nos EUA —no estado do Arizona, onde é endêmico, é também crime ambiental coletar e transportar esses animais.
"O veneno é para ser letal ou fazer o predador [do sapo] passar muito mal. É uma secreção com centenas de moléculas diferentes e sua composição tem de ser estudada para entender seus efeitos antes de ser usada", afirma Carlos Jared, especialista em toxicologia e diretor do laboratório de biologia estrutural do Instituto Butantan.
Jared lembra também que o veneno pode causar convulsões e crises psíquicas do tipo paranoico e esquizofrênico —para ele, o hábito de usar a substância para rituais de tratamento é perigoso.
Por outro lado, a molécula está sendo pesquisada em laboratórios de vários países para tratar distúrbios mentais persistentes, inclusive no Brasil com a presença de instituições como a Fiocruz e o Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), lideradas pelo renomado neurocientista Sidarta Ribeiro.
Uma suposição é que o DMT, presente naturalmente em muitas plantas e animais (inclusive em nós, humanos), seja produzido no cérebro pela glândula pineal, junto com a melatonina, neurotransmissor que é responsável pelos ciclos de sono. O DMT ajudaria no mecanismo dos sonhos. Há uma teoria científica de que uma descarga dessa substância acontece no momento da morte, o que explicaria as sensações de quem ingere doses externas dela.
Nos últimos tempos, a ciência psicodélica se transformou em uma das novas fronteiras do conhecimento humano. Essa área leva em conta que os alucinógenos não são uma panaceia e devem ser utilizados, com muito rigor, em tratamentos bem específicos.
Nada de automedicação: o interessado deve consultar seu psicólogo ou médico antes de se aventurar em alguma dessas terapias alternativas.
No ano passado, escrevi o depoimento de um empresário que fazia uso do bufo para tratar um quadro antigo de ansiedade. Ele teve a coragem de mostrar o rosto e o nome. Temeroso da repercussão, o terapeuta dele preferiu não falar com a reportagem.
Logo depois, encontrei um xamã que decidiu me contar como ministra o alucinógeno para tratar pessoas com dependência química e problemas como o transtorno depressivo recorrente. Ele diz receber pessoas encaminhadas por psicólogos e médicos —e muitos desses profissionais estão entre seus clientes também.
Ele, que também é formado em enfermagem, só me pediu anonimato para evitar uma indesejada visita da polícia. E me propôs experimentar: "Só vai conseguir entender e transmitir o poder do bufo se provar." Senti um misto de desafio e confiança. E aceitei.
Engolindo sapo
Saí da estação de metrô, andei três quarteirões e cheguei ao sobrado que serve de "espaço para terapias integrativas".
Em um dos quartos, passei por uma longa conversa. Tinha sido orientado a fazer jejum de drogas lícitas, ilícitas e alimentos pesados. Ele fez várias perguntas sobre minha saúde —quem tem arritmia cardíaca, epilepsia ou esquizofrenia deve passar longe do veneno.
"Não é um reset espiritual ou uma dissolução do ego, como falam por aí. Só fortalece ou enfraquece crenças que você já tem", advertiu o xamã, para logo sair com uma tirada: "Você vai morrer, mas vai voltar. Só não sei se essa última é uma boa notícia." Dei risada e relaxei.
O próximo passo foi treinar a inalação. Repeti o movimento várias vezes, esvaziando completamente o pulmão, fazendo beicinho para sorver o ar pelo canudo bem lentamente e prendendo a respiração por 15 segundos.
Quando o isqueiro começou a carbonizar as lascas e o vapor se adensou na ponta do cachimbo de vidro, reapareceu minha imperícia para fumar, após uma vida de poucas e desastrosas baforadas. Engasguei.
Mesmo assim fez efeito. Fechei os olhos, deitei e comecei a ver em nitidez 10k cores como um superpreto e um hiperbranco. Passei a língua nos lábios e senti o gosto de sapo queimado. "Estou envenenado", pensei.
Escutava a trilha sonora do ritual que saía de duas caixinhas JBL. Começou com um cântico rouco de um "abuelo" indígena até entrar uma batida grave que combinava ritmos de britadeira e de helicóptero.
Ouvia também o xamã e sua assistente tocarem chocalho, além de me abanar com um leque e borrifar uma essência no ar. Fiquei esperando que o sapo se manifestasse, mas nada aconteceu. "Não fui. Estou aqui", falei.
O xamã tocou meu peito, pediu para abrir os olhos e acendeu a luz do quarto. Ele pegou outro cachimbo e avisou: "Vamos tentar outra vez".
A nova pitada foi mais eficiente: me senti entrando em um abismo dentro do meu próprio ventre, passando por múltiplas camadas de carne até chegar a um centro escuro. Cheguei a uma espécie de antessala da morte.
No plano real, minhas mãos espalmadas tateavam o piso. Queria aterrar. Nesse instante, o xamã tocou minhas têmporas, e a impressão é que ele estava moldando meu cérebro.
Terminada a sessão, para tirar o gosto de veneno na boca, ele me ofereceu café, pão de queijo e biscoito de maisena.
"Seu mergulho foi raso. Seu cérebro não desconectou da racionalidade. Há muita resistência", sentenciou. "Os maconheiros tragam bem melhor que você", brincou depois. Marquei para a semana seguinte meu reencontro com o que no jargão científico é identificado pela sigla EQM (experiência de quase morte).
Morte em prestações
"Você estava com boca de defunto, toda murcha para dentro." Assim o xamã descreveu minha fisionomia durante a meia hora em que encarei o apocalipse pessoal e universal dentro da minha cabeça.
Fumaça no peito, corpo no colchonete e cabeça em uma almofada, eu percebia, finalmente na quarta tentativa, o efeito pleno do bufo.
Era algo muito real. Experimentei uma imensa abertura e expansão. Talvez porque não tenho convicções espirituais, as imagens pareciam saídas de um telescópio espacial. Passei por constelações, nebulosas, até que tudo entrou em um buraco negro. Nesse instante, a sensação foi de total vacuidade. Um grande e calmo nada, sem fatalismo ou luto.
Os relatos do efeito variam muito: "virei alma", "pari e fui parida", "caí em um precipício e voltei flutuando", "contatei minha centelha divina", "fui duplicado e me vi de fora chorando e gritando", "eu era um dragão e senti uma grande fúria".
"Você perde a habilidade de controlar o pensamento, como nos sonhos mais loucos. Essa medicina mostra uma neuroplasticidade poderosa", resumiu o terapeuta.
Da terceira vez que inalei o veneno, senti uma taquicardia, me amedrontei e quis desistir. O xamã acendeu a luz e falou de forma convincente: "Teu corpo está funcionando normalmente. O que está sentindo é o medo, que está te bloqueando. É o inconsciente convocando um exército para te proteger", diagnosticou. "É a hora da entrega: só vai", ordenou.
Peguei o cachimbo (maior dessa vez) e traguei o vapor. Valeu a insistência. Transcendi. Percebi que a morte é muito menor que a importância que a gente dá para ela. Simplesmente vou acabar, assim como as geleiras, as galáxias e esse próprio texto.
O dia seguinte foi cheio de lampejos (o que os religiosos chamam de epifanias; e os modernos, de insights). Lembrei também da assistente do xamã duvidando que eu conseguisse traduzir em palavras o que vi naquela meia hora. Acho que ela tinha razão: nem 10% da experiência está aqui em riscos pretos em sua tela branca. O resto é esquecimento, a infinita força que move o universo.