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Como fé e medo fizeram uma cidadezinha no Brasil virar a 'terra de Lázaros'

Anna Karla Oliveira Lima, 24, com a mãe Lázara Agda, 50, e a irmã mais velha Lázara Karen, 31: a família segue tradição de nomear o primeiro filho de Lázaro ou Lázara para seguir promessa feita há mais de 200 anos Imagem: Arquivo pessoal

Luciana Spacca

Colaboração para o UOL

29/11/2024 05h30

Há mais de 200 anos, uma família na pequena cidade de Serranópolis (GO) segue uma tradição inusitada.

"Praticamente todo primeiro filho da minha família tem o mesmo nome, Lázaro ou Lázara, por causa de uma promessa", explica a estudante de biomedicina e influenciadora Anna Karla Oliveira Lima, 24.

São cerca de 240 Lázaros ou Lázaras no município de 8 mil habitantes. A mãe de Anna Karla, por exemplo, se chama Lázara Agda e a irmã mais velha é Lázara Karen.

Tudo começou com uma promessa feita pelo pai do tataravô de Anna, José Alves Oliveira.

Na época, ele pegou uma doença de pele conhecida como 'lepra', hoje hanseníase. E ele tinha um filho que já se chamava Lázaro, por causa de São Lázaro, da Bíblia. Ele se curou e então prometeu que, desde aquele momento, todo primeiro filho da família se chamaria Lázaro ou Lázara, para que ninguém mais morresse de 'lepra'.
Anna Karla Oliveira Lima

Hoje, não se fala mais em lepra —um termo considerado pejorativo e que foi abolido de documentos oficiais do governo brasileiro—, mas em hanseníase.

A doença de pele, causada pelo bacilo Mycobacterium, tem tratamento e é curável, mas, por muito tempo, foi cercada de estigmas. Pessoas com a doença eram isoladas do convívio, rejeitadas pela sociedade e internadas compulsoriamente.

Na Bíblia, há relatos de "lepra" —o mais famoso é de Lázaro, um homem que teria sido ressuscitado por Jesus. São Lázaro se tornou o padroeiro dos que vivem com essa doença.

Vista de Serranópolis; tradição é motivada pela fé Imagem: Reprodução/Google Street View

Questão de fé

A tradição na família não começou da forma que José gostaria. Tia-avó de Anna, dona Luzia Oliveira, 80, dá detalhes sobre a história que ocorreu há mais de dois séculos.

O Lázaro, primogênito do José, não quis colocar o nome do primeiro filho de Lázaro também. E aí o filho caçula dele, Samuel, pegou a doença e sofreu muito até morrer. Os irmãos viram tudo aquilo e ficaram com medo. Aí começaram a seguir a promessa feita pelo meu bisavô, o José.
Luzia Oliveira

"Alguns parentes não colocam, mas a maioria se arrepende. E outros colocam em todos os filhos. Meu filho mais velho é Lázaro, e colocou em duas filhas: Lázara Brenda e Lázara Bianca", explica Luzia.

Já Anna relata uma situação recente que ficou famosa na família e que ajudou a alimentar a tradição.

"Teve um primo meu que sofreu um acidente de carro, pegou uma doença de pele e morreu. Ele era o filho mais velho e não se chamava Lázaro. Então existem histórias, superstições de que sempre acontece alguma coisa com a pessoa", diz Anna.

Com o tempo, a promessa ganhou outros significados.

A promessa foi pela questão da pele, mas com o tempo quando uma criança tem uma gripe, é a mais velha e não se chama Lázaro, as pessoas já falam que é por causa do nome. E aí muita gente começou a colocar por medo, por respeito, mas a maioria é pela fé mesmo. Anna Karla Oliveira Lima

"Eu tenho duas certezas na minha vida: a de que um dia eu vou morrer e de que meu primeiro filho vai se chamar Lázaro ou Lázara", diz a jovem.

'10 em uma sala de aula'

A tradição marca a rotina da cidade pequena —afinal, são muitos Lázaros por metro quadrado em Serranópolis.

"Metade da cidade tem parentesco comigo. Na sala de aula, sempre tinham 10, 12 Lázaros. E é normal primos distantes casarem entre si", conta ela.

É o caso da irmã mais velha de Anna, a empresária Lázara Karen Oliveira Lima, 31. Ela se casou com o primo de terceiro grau, o também empresário Lázaro Emerson Gomes, 34. Juntos, tiveram três filhos.

O mais velho, claro, herdou o nome da família: Lázaro Gabriel.

Minha mãe é Lázara Agda, o meu avô por parte de pai se chamava Lázaro, porque meus pais também são primos distantes. Então eu cresci com essa tradição muito forte, praticamente todo mundo se chamava Lázaro.
Lázara Karen Oliveira Lima

Mesmo assim, Lázara Karen confessa que, até o fim da primeira gestação, ela e o marido não tinham certeza se seguiriam a promessa feita há tantos anos.

Tradição que passa de geração para geração: Lázara Karen e o marido Lázaro Emerson ao lado dos filhos Lázaro Gabriel, Maria Vida e Emerson Henrique Imagem: Arquivo pessoal

Eu já chamo Lázara, meu marido é Lázaro, minha mãe é Lázara, eu pensava em como ia ficar a certidão de nascimento da criança. A gente sempre falou que seria Gabriel, mas não tinha certeza do Lázaro. Aí minha família fez uma reunião com a gente, chamaram meus avós de todos os lados, meus tios e eles foram me contar as histórias antigas. Literalmente, minha mãe falou: esse menino não sai registrado de dentro desse hospital se não chamar Lázaro. Aí acabei colocando, mas não me arrependo. Acho o nome lindo.
Lázara Karen Oliveira Lima

Com apenas 12 anos, Lázaro Gabriel já disse que seguirá a tradição e planeja colocar o nome do primogênito de Lázaro ou Lázara.

"Ele é apaixonado pelo nome dele. Todos os meus filhos sabem de tudo. Inclusive a minha menina, a Maria Vida, que é a do meio, acha o máximo a história e já me disse que queria que o nome dela fosse Lázara Maria Vida", conta.

Nome composto para diferenciar os familiares

De uns anos para cá, a família começou a colocar nomes compostos para diferenciar os parentes.

Lázaros reunidos; família calcula que são 240 Imagem: Arquivo pessoal

"Antigamente era só Lázaro ou Lázara. Mas, como tiveram muitos registros na cidade, começou a ficar difícil de saber quem era quem. Então começaram a colocar nomes compostos, mas o primeiro sempre tem de ser o da promessa", explica Anna.

Um exemplo é o que aconteceu com uma prima de Anna. Lázara Nicoly Gonçalves Vagner, 34, mudou a certidão para acrescentar o segundo nome.

Meu pai é tão fiel a essa tradição que, quando eu nasci, me batizou apenas de Lázara. Só que eu fui crescendo e todas as minhas primas, primos, tias, todo mundo que eu conhecia tinha um segundo nome: Lázara Vanessa, Lázara Caroline, Lázaro Eduardo, Lázaro Henrique. Por não ter um segundo nome, eu sentia que não tinha identidade. Aos 15 anos, entrei com o pedido e coloquei o Nicoly.
Lázara Nicoly Gonçalves Vagner

História viralizou nas redes sociais

Recentemente, a história da família viralizou nas redes sociais após Anna fazer uma publicação falando sobre a tradição. Os vídeos do TikTok e Instagram já somam mais de 3,5 milhões de visualizações.

"Não esperava toda essa repercussão. Mas foi legal porque, depois que publiquei o vídeo, apareceram parentes de várias partes do Brasil. Até em Portugal nós descobrimos que temos família. Eles entraram em contato porque a história do nome era a mesma, a da promessa. Só um dos grupos da família no WhatsApp tem mais de 100 pessoas com o mesmo nome", conclui Anna.

Grupo de WhatsApp tem dezenas de Lázaros e Lázaras --eles se diferenciam pelo segundo nome Imagem: Arquivo pessoal

História e estigma

A hanseníase é conhecida há mais de 4.000 anos na Índia, China, Japão e Egito, segundo o Ministério da Saúde. Ao longo dos séculos, de forma imprecisa, a hanseníase era agrupada com outras doenças de pele como a psoríase e escabiose pela designação de "lepra".

A doença acomete pessoas de ambos os sexos e de qualquer idade. Segundo o Ministério da Saúde, é necessário um longo período de exposição à bactéria, sendo que apenas uma pequena parcela da população infectada realmente adoece.

Por causa de lesões neurais, causadas pela doença, a hanseníase pode causar deficiências físicas —elas são as principais responsáveis pelo estigma e discriminação contra pessoas com a doença.

A doença tem tratamento, com remédios —em geral, é usada uma associação de três antimicrobianos, segundo o Ministério da Saúde. Logo no início do tratamento, a doença deixa de ser transmitida.

O Brasil ocupa a 2ª posição do mundo entre os países que registram casos novos, diz o ministério. Por isso, a doença continua sendo um importante problema de saúde pública no país.

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