Ela virou ex-bagunceira após perder chaves e resolveu estudar o tema na USP
Esqueça o que você entende por bagunça. Não é uma pilha de roupas em cima da cadeira, livros que não respeitam uma regra na prateleira ou acumular cabides diferentes no armário.
O tema é muito mais profundo do que isso. E Carolina Ferraz, 33, decidiu estudar a bagunça das casas brasileiras de forma oficial, na USP.
Nas redes sociais, onde Carol produz conteúdo sobre bagunça, ela se autodenomina uma ex-bagunceira. Foi a perda de um objeto de valor sentimental que fez tudo mudar em sua vida e, em 2017, ela começou a se dedicar ao tema.
Eu sempre fui muito bagunceira. Quando fui crescendo, comecei a tentar me organizar. Eu passava o dia todo arrumando o quarto no final de semana. Na segunda, dia de ir para a escola, ele já estava uma bagunça. E isso não mudou quando eu fui morar sozinha. Carolina Ferraz
"Tinha dias que eu voltava da festa da faculdade às cinco da manhã e a casa estava virada. Eu tomava banho e arrumava tudo para dormir tranquila. Eu me considerava um caso perdido. Decidi me assumir como 'bagunceira' e lidar com isso", lembra ela.
Mas o que é bagunça?
"Aqui no Brasil, a gente não tem uma definição concreta do que é bagunça. A gente entende hoje como um comportamento de organização, quando falamos de cultura material, que não respeita uma ordem específica", explica ela.
Quando o termo chegou ao Brasil —bagunça é uma palavra que vem do kikongo, uma língua de origem africana—, ele estava ligado à ordenação de objetos. Depois, virou sinônimo de comportamento, de questionar o que deveria ser o certo ou o civilizado, explica a pesquisadora.
Perda de chaveiro
Enquanto vivia o caos em casa, Carol lidava com um outro lado de si. No mercado de trabalho, era organizada. Tanto que chegou a ocupar cargos de liderança e coordenar projetos. Mas a frase mais dita por ela era a pergunta: 'Onde eu deixei?'
"Sempre priorizei meu trabalho e a minha entrega. E assim foi até que eu perdi um item de valor emocional: um chaveiro. Era um dia em que eu cheguei muito cansada, saí muito tarde do trabalho. Perdi as chaves e, junto, o chaveiro", lembra a pesquisadora.
Eu voltei, refiz todo o caminho: parei no metrô, parei no mercado, parei na farmácia. E era um dia em que estava chovendo, eu estava exausta. Quando eu cheguei em casa, eu parecia um pinscher: era metade ódio e metade tremedeira.
Carolina Ferraz
@ondeeudeixei A frustração de arrumar a casa #organizacao #casa #aesthetic ? som original - carolferraz
Neste momento, uma amiga a apresentou a Marie Kondo, especialista japonesa em organização pessoal conhecida por um programa da Netflix. Ela pegou algumas horas que tinha na empresa e se dedicou a arrumar suas coisas.
"Eu comecei a ferver a cabeça em relação às coisas, de por que que eu mantinha aqueles objetos." Quando terminou a arrumação, ela sentiu um alívio. Mas, ao mesmo tempo, se questionava: por que todo mundo nos ensina a colocar as coisas em uma caixa?
Objeto de estudo: bagunça
Na época, ela fazia pós-graduação na PUC e foi atrás de descobrir o que existia de pesquisas sobre bagunça.
A resposta a surpreendeu: nada. Existiam materiais sobre acumuladores, colecionismo, trabalho doméstico. Sobre bagunça em si, nada. Depois, ela foi fazer o mestrado na ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP com o mesmo objeto de estudo.
Carol descobriu que bagunça é mais do que acumular objetos: tem a ver com consumo e lutos não validados pela sociedade, como aqueles por fins de ciclo: mudança de escola, saída de um emprego, etc.
Os objetos no armário de uma jovem de 25 anos, por exemplo representam essas etapas. "Ela não se vê como mulher ainda e nem mais como adolescente. E aí o armário é assim: a camisolinha de bichinho lá atrás e um saltão, batom vermelho, uma roupa megacolada —que traz esses signos da sexualidade, do poder."
Organização é pessoal
Carol também foi estudar sobre organização, fez cursos no Brasil e fora —até com a Marie Kondo—, e foi para a casa das pessoas ver como a bagunça funcionava na prática em diferentes realidades.
Eu entendi que o grande segredo da organização era você se observar, gerar uma lógica a partir disso e não ter medo das coisas. A gente tem medo de encarar os nossos objetos porque eles contam uma história, mas a gente não quer ouvir as histórias.
Carolina Ferraz
Carolina diz que o caminho não é exatamente jogar tudo fora e virar minimalista, mas construir uma organização acolhedora e que cobre menos. "Que a casa te ajude, que você fique menos dependente da manutenção", diz.
Ou seja: não existe uma fórmula mágica de organização. O certo é o que cabe na rotina e que não gera ainda mais trabalho para quem já tem uma vida cansativa.
Mas, de um modo geral, Carolina sugere lembrar que os objetos não devem ser enxergados de forma individual, mas como "famílias".
Por exemplo, criar a caixinha do "colar". Ali dentro você encontra fita 3M, durex, diferentes colas. A mesma coisa na cozinha: copos ao lado de xícaras e canecas. "As coisas precisam estar fáceis de pegar e mais fáceis ainda de devolver."
A gente está falando em uma casa latinoamericana, não escandinava. A gente está falando de afeto, cor, trabalho manual. Diferentemente das casas europeias, a casa latinoamericana tem essa função de refúgio e de amor. Precisamos construir um ambiente que não te cobre, mas te ajude.
Carolina Ferraz
Hoje, aliado aos estudos, Carol produz vídeos sobre seu tema de pesquisa para as redes sociais. Foi a forma que ela encontrou de falar com a sociedade sobre a USP e contar sobre as pesquisas.
"Todo mundo sai ganhando: a gente, como pesquisador, fica mais perto das pessoas e é uma forma de retribuir a universidade pública."
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