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'Brasileiros tomarão a decisão certa: o lado da vida', diz Francia Márquez

Francia Márquez, a primeira vice-presidente negra eleita na Colômbia, eleita em 2022 - Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia
Francia Márquez, a primeira vice-presidente negra eleita na Colômbia, eleita em 2022 Imagem: Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia

Pedro Borges, da Alma Preta

Colaboração para o UOL, de Bogotá (Colômbia)

28/10/2022 04h00

Primeira vice-presidenta negra da Colômbia, Francia Márquez evita dizer por qual candidato torce nas eleições brasileiras, que opõem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL). Antes de ser empossada em agosto, ela visitou o país, onde encontrou o candidato petista, de quem cobrou maior participação de mulheres negras na política. Em entrevista exclusiva ao Alma Preta, ela afirma esperar que os "brasileiros tomarão a decisão certa: o lado da vida". Seja quem for o vencedor no domingo (31), ela diz planejar uma parceria com o Brasil para construir políticas de proteção ao meio ambiente.

Pode-se enfrentar o crime de mineração e desmatamento, mas também liderar um fundo binacional para beneficiar economicamente as comunidades locais por sua contribuição para a conservação da biodiversidade"
Francia Márquez, vice-presidente da Colômbia

Já eleita, mas não empossada, Francia Márquez esteve em São Paulo em 26 de julho, onde se reuniu com Lula. A agenda não foi oficial, porque ela e Gustavo Petro, novo presidente colombiano, ainda não haviam sido empossados. Ela não se encontrou com o Presidente da República, Jair Bolsonaro, ou o vice, Hamilton Mourão.

Durante o diálogo com Lula, ela reforçou a importância de ampliar a participação de mulheres negras na política para que esse grupo no futuro ocupe cargos como o dela na Colômbia. "É hora das mulheres negras assumirem a liderança no Brasil, na América Latina, para impulsionar as demandas de nossos povos".

No dia 18 de outubro, um dia antes da entrevista, o governo colombiano anunciou a criação do Ministério da Igualdade e Equidade, que ainda precisa da aprovação do legislativo. A pasta terá o objetivo de alcançar igualdade salarial para homens e mulheres e desenvolver reformas, como a agrária, que devem beneficiar povos negros e indígenas. "Chegar à Vice-Presidência não é o fim, é um meio. O objetivo é garantir que negros, indígenas e toda a humanidade vivam livres e com dignidade".

Assim como o Brasil, a Colômbia tem um histórico de política de guerra às drogas com efeitos sobre as comunidades negras e indígenas do país. A Comissão da Verdade do país sobre o conflito armado, iniciado em 1964 e que contou com a participação de grupos narcotraficantes, apontou 16 localidades de maior tensão na região pacífica do país e dedicou um capítulo exclusivo dos impactos da guerra sobre esse grupo. Para avançar com a agenda, Francia afirma necessitar da colaboração dos demais países da América Latina e dos Estados Unidos.

A política antidrogas fracassou em nosso país e custou à América Latina um milhão de pessoas assassinadas. A maioria de pessoas empobrecidas, e muitas negras."

Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Alma Preta - A Colômbia parece viver um momento semelhante do Brasil de maior orgulho negro. O país elegeu pela primeira vez uma mulher negra como vice-presidenta, ampliou a bancada afro no congresso de 10 para 17 cadeiras, e aguarda a criação do Ministério da Igualdade e Equidade. O que mudou na Colômbia?

Francia Márquez - A mudança não começou agora. Os negros resistem há muitos anos na Colômbia, desde os tempos da escravidão. Negros e indígenas neste país são os que mais sofreram com o conflito armado e os que vivem nas condições mais extremas de pobreza.

De uma forma particular, o que sinto é que, quando coloquei meu nome, houve muita resistência, até mesmo da esquerda. Eles disseram que não era a minha hora e que eu tinha que esperar. Eu disse: 'Esperar até quando? Como negros, esperamos 500 anos. Não vamos esperar mais, porque somos filhos de mulheres negras e indígenas que estão morrendo de fome, que vão para a guerra, que não têm educação, que não têm o direito de sonhar'.

francia - Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia - Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia
Francia Márquez voltou a criticar a política antidrogas da Colômbia: 'fracasso total'
Imagem: Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia

Falei para Lula: 'É hora das mulheres negras assumirem a liderança no Brasil, na América Latina, para impulsionar as demandas de nossos povos'. Chegar à Vice-Presidência não é o fim, é um meio. O objetivo é garantir que negros, indígenas e toda a humanidade vivam livres e com dignidade. Chegou a hora de mais de 200 milhões de afrodescendentes da América Latina se unirem e traçarem agendas políticas que enfrentem o racismo estrutural.

Alma Preta - O partido Pacto Histórico foi o primeiro da esquerda a vencer na Colômbia. Não só no Poder Executivo, mas obteve um cenário favorável no Legislativo. Existe uma expectativa no país e na região de que mudanças profundas virão da Colômbia nos próximos anos. Como vocês têm lidado com essas expectativas do povo?

Márquez - Temos enormes desafios. O Pacto Histórico, que hoje tem a maior bancada do Legislativo, com total paridade de gênero, não consegue ser maioria sozinho. Cabe a nós formar uma coalizão de Governo com setores que não são tão progressistas quanto nós. Mas acho que podemos dar alguns passos importantes. Por exemplo, a criação do Ministério da Igualdade em um dos países mais desiguais do mundo. Talvez nossa coalizão aprove este projeto.

Esperamos que se possa avançar nessas reformas profundas de que a Colômbia precisa e que exigem muito mais de quatro anos. Isso não significa que o presidente Petro e eu vamos nos agarrar ao poder, mas implica que um projeto real de sociedade requer muito mais tempo para consolidar as mudanças estruturais.

Alma Preta - O Brasil vive um momento delicado. Há uma disputa eleitoral no país entre Jair Bolsonaro, que já criticou o novo Governo colombiano o acusando de querer "soltar todos os meninos presos", e Lula, com quem você esteve em São Paulo. Na passagem pelo Brasil, já eleita vice-presidente, você declarou apoio a Lula. Por que optou por ele Lula? O que os governos colombiano e brasileiro, seja qual for, poderiam fazer pelas comunidades afro dos dois países?

Márquez - Eu disse isso antes da posse e agora posso ser acusada de me intrometer na política brasileira. Não vou dizer o que penso. A foto entre mim e Lula diz tudo. Quando estive com Lula, disse a ele: 'Brasil e Colômbia têm uma responsabilidade enorme em relação à justiça racial na América Latina'. Eu confio que os brasileiros vão tomar a decisão certa: o lado da vida.

No Brasil, serão jovens, mulheres, negros, indígenas, os historicamente excluídos e a comunidade LGBTIQ+ que podem mudar a história. Por isso, desejamos boa sorte, que Deus o ilumine e que os ancestrais o protejam e o abençoem para que tomem a decisão certa.

francia - Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia - Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia
Francia Márquez planeja parceira com o Brasil para construir políticas de proteção ao meio ambiente
Imagem: Karen Gómez/Vice-presidência da Colômbia

Alma Preta - Uma das prioridades para essa nova legislatura é o alcance da paz total, que avançou com a entrega das armas por parte das FARC e colocaria fim a um conflito armado existente desde 1964. Foram retomadas as negociações com o Exército de Libertação Nacional (ELN), a maior guerrilha armada do país. Existe a expectativa de firmar um acordo com a ELN e alcançar a paz total? Quais serão as estratégias para lidar com os ainda existentes paramilitares e os grupos de narcotraficantes?

Márquez - Acredito que aqui há um compromisso com a paz total. Tanto do presidente Gustavo Petro quanto de mim e de todo o nosso Governo. Mas o mais importante é que a maioria dos colombianos quer viver em paz. As pessoas cansaram de sofrer, de violência, e da dor.

Por isso, fizemos um apelo nacional a todos os atores armados. Um dos que respondeu é o ELN, com o qual a mesa de diálogo já foi reiniciada. Mas agora o diálogo será com os jovens que estão em quadrilhas criminosas nos bairros populares das diferentes cidades. Eles também foram vítimas do conflito.

Há também os diálogos com os dissidentes, com os diferentes atores armados, incluindo os paramilitares, que continuam a violar os direitos do povo em muitas áreas. Com alguns, diálogos serão por meio da política, como é o caso do ELN, mas talvez outros por submissão à justiça.

Alma Preta - Um dos principais problemas da Colômbia, que inclusive motivou a guerra civil no país, iniciada em 1964, é a concentração de terras. As comunidades negras e indígenas relatam muitas dificuldades para terem os territórios reconhecidos pelo Estado. O que o Governo colombiano poderá fazer para que esses grupos tenham o direito à terra e uma garantia de segurança da vida?

Márquez - A desigualdade neste país é evidente na concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, enquanto a maioria está sem terra para produzir. O outro problema é o abandono estatal que tem existido em termos de investimento em áreas rurais pobres. Eles foram abandonados. Embora as pessoas produzam, não há estradas terciárias, não há conectividade. Isso levou as comunidades a plantar coca como opção de sobrevivência nesses territórios. Então eu acho que a questão da terra é central para uma política progressista que busca a dignidade das pessoas.

Alma Preta - Francia, você é uma ambientalista, que nasceu e foi criada em uma comunidade afro, que tem a sua vida e renda relacionada à floresta e ao rio. Colômbia e Brasil têm parte significativa da floresta amazônica e uma responsabilidade com a vida do planeta. Quais políticas pensam em adotar para diminuir o desmatamento na região? O que pode ser feito em parceria com o Governo brasileiro?

Márquez - A Ministra do Meio Ambiente vem liderando um acordo para a Amazônia com as comunidades indígenas, camponesas e afros que vivem nela. É um acordo para transformar títulos da economia verde em um fundo para a sustentabilidade ambiental, para que possam ganhar renda enquanto cuidam de seu território. Foi feito um fundo de conservação ambiental de cerca de 6 bilhões de pesos, para lidar com o desmatamento.

Por outro lado, o enfrentamento da criminalidade que desmata compete à Força Pública. Na Amazônia há uma grande ameaça das máfias do desmatamento, então deve haver uma política de interdição para enfrentar a destruição da floresta.

Em conjunto com o Brasil, pode-se avançar no enfrentamento ao crime, mas também liderando um fundo binacional para beneficiar economicamente as comunidades locais por sua contribuição para conservar a biodiversidade. Esperemos que isso possa ser feito não só com o Brasil, mas também com Peru, Equador e Bolívia, que compartilham conosco esse tesouro que está ameaçado.

Especial 'Lado a Lado' traz eleitores de Lula e Bolsonaro debatendo seus votos. O vídeo está disponível no Youtube de MOVdoc.