'Blefe duplo' de Boulos e Marçal rendeu o debate mais improvável da eleição

Pablo Marçal (PRTB) tinha certeza de que nem Ricardo Nunes (MDB) nem Guilherme Boulos (PSOL) aceitaria o desafio lançado por ele na quarta-feira (23) para um debate-surpresa em seus canais.

"Fiquei assombrado", confessou o ex-coach, ao comentar o "sim" do deputado.

A armadilha já tinha cumprido um propósito: conseguiu, com a postagem, um alcance que ele não estava obtendo desde o fim da campanha (o uso, durante a gravação do desafio, de um boné com a marca de uma seguradora de carros da qual é sócio não era por acaso; se Boulos e Nunes ignorassem o desafio, outros milhares de seguidores veriam e conheceriam seu empreendimento mais recente).

Mas Boulos topou o convite, e deixou o constrangimento de recuar na mão do autor do blefe —e também do atual prefeito, que, por medo de ser espinafrado, preferiu matar no peito a fama de "fujão".

Tinha um pouco de blefe também no "sim" de Boulos. Do outro lado, Marçal poderia dizer que não faria sentido um debate sem o outro adversário.

"A gente combina na próxima, valeu, falou", poderia dizer o ex-candidato.

Mas era tarde.

Boulos disse sim

Até o fim da manhã de quinta-feira (24), era ainda um dilema, para a campanha de Boulos, participar ou não de um evento na casa de um adversário que o acusou sem provas de ser usuário de drogas, soltou um laudo falso de uma internação inexistente na véspera da votação e ainda disse que as suas filhas iriam chorar mesmo por causa do pai.

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Do que mais Marçal seria capaz?

A pergunta não passou batida no entorno do deputado.

Marçal iria xingar a mãe dele agora? Iria berrar? Ou forçar Boulos a sair do figurino "paz e amor" e gritar também? Ele seria engolido no meio dos berros para não perder a estribeira (e o esforço para convencer o eleitor médio de que não era um radical)?

Uma questão levantada, por exemplo, era como seria realizado o encontro. Se fosse presencial, havia o temor de que Marçal retomasse o personagem do primeiro turno que tentou de toda forma, inclusive com o deboche da carteira de trabalho, receber a agressão que só viria de José Luiz Datena (PSDB) na reta final.

Eis que o encontro aconteceu, após a equipe de Marçal e a campanha de Boulos passarem a véspera conversando para definir como seria o encontro. Não foi na Ceilândia em frente ao lote 14, mas por videochamada. Marçal na Itália e Boulos, em São Paulo.

Que 'xou' do Marçal é esse?

Para assombro da audiência, a versão Marçal entrevistador sabia comer de garfo e faca. Não xingava a mãe de ninguém nem levantou documento falso para constranger a visita.

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Foi uma alívio para os que defendiam a ida de Boulos ao debate porque, atrás nas pesquisas, ele não teria nada a perder.

Pelo contrário: era a chance de incubar uma mensagem que simplesmente não chegou ao público de Marçal falando diretamente com ele.

Para os apoiadores de Boulos —que poderiam manifestar decepção com a moral a um extremista— a resposta estava pronta: o candidato não queria legitimar o ex-coach, mas sim os seus eleitores.

Era a chance de o candidato do PSOL mostrar que, diferentemente do que diziam os adversários, ele não morde, sabe dialogar e, sim, já trabalhou na vida. Isso diante do ex-rival que passou a campanha chamando o deputado de vagal.

De quebra, ele mostraria (como repetiu diversas vezes) que não foge de confronto. E deixaria (como deixou) a pecha de covarde toda para Nunes.

Aceito o desafio, Boulos passou mais de uma hora se desviando de cascas de bananas lançadas pelo anfitrião. Não foram poucas, apesar do tom de voz gentil.

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Marçal queria saber se ele achava que as empresas privadas são importantes para alavancar a economia.

Sim, são.

Próxima pergunta.

O ex-coach quis saber se o ex-líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto faria vista grossa com possíveis invasões na cidade. Ouviu como resposta que não, já que as ocupações eram resultado do abandono do Estado e que em seu governo haveria a maior política habitacional e de regularização fundiária da história.

Boulos também despistou quando Marçal quis saber como ele levaria a cidade a prosperar se ele mesmo, como pessoa física, não enriqueceu. Boulos disse que se sentia realizado como professor. E que ensinar o que se sabe é uma outra forma de prosperar.

O psolista mostrou também que não tinha aversão a algumas ideias do ex-oponente, como a de levar educação financeira para as escolas. Com o porém de que era preciso definir qual idade adequada para esse tipo de disciplina.

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Bolsonaro, Dilma, FHC e Jesus?

A certa altura, Marçal precisou conter a fúria de seguidores que estranharam a postura mansa de quem até outro dia só tinha a verborragia detida na base da cadeirada.

Ele precisou explicar que ali era um entrevistador. E que, se fosse um debate, já estaria chacoalhando a carteira de trabalho.

Na sequência, ele quis saber o que o candidato pensava sobre algumas personalidades: Jair Bolsonaro, Dilma Rousseff, Fernando Henrique Cardoso, Tarcísio de Freitas... e Jesus.

Boulos agradeceu a chance de dizer que Cristo era uma inspiração "a todos nós que somos cristãos".

Ele perderia algumas chances de educar a plateia quando Marçal, em modo passivo-agressivo, desancou o campo progressista e disse que Nunes era "da mesma laia" que o entrevistado.

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O deputado poderia explicar melhor que "ser de esquerda" não era assumir o estereótipo inventado por pessoas da laia de Marçal. Mas o recado de uma forma e outra foi pulverizado.

Isso aconteceu, por exemplo, quando ele disse que ninguém pergunta se o cidadão é de direita ou esquerda quando se passa nove horas à espera em uma Unidade de Pronto Atendimento.

Sobrou para Nunes

No fim, o único que de fato saiu chamuscado do mais improvável dos encontros da campanha foi Ricardo Nunes. Ao fugir do debate, ele deu para o rival deste domingo a chance de ser desossado sem direito de resposta.

Nunes foi chamado de prefeito "fantoche", "inseguro", "sem expressão" ou "vontade própria" e que, "por ser fraco, deixou o crime organizado tomar conta da cidade."

Mesmo assim, Boulos não disse que votaria em Marçal se o segundo turno fosse contra Nunes. E o anfitrião também não disse em que votaria se estivesse em São Paulo no domingo.

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Mesmo prevendo "a maior abstenção da história", o ex-coach liberou os eleitores a fazerem o que achassem melhor. Era tudo o que Boulos queria caso alguém, por um grande acaso, tenha revisto o que pensava sobre ele entre os eleitores do anfitrião (segundo a Quaest, 8 em cada 10 preferem Nunes).

"Que Deus tenha piedade de São Paulo", disse um irreconhecível Marçal antes de encerrar o debate e seguir falando sozinho para um público que só cresceu ao longo da tarde (eram 189 mil espectadores nos primeiros minutos, e quase 500 mil no fim).

Foi a eles que ele prometeu voltar à luta em breve.

Quem assistiu pelo Instagram do ex-candidato deve ter notado que no link da bio havia uma porta de entrada para o curso "O Destravar da Riqueza", uma oportunidade de levar os futuros mentorados a adquirirem "a casa própria e não se preocupar mais com o dinheiro".

O suposto exercício cívico do ex-candidato rendeu a ele uma vitrine razoável para a próxima empreitada.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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