Observatório português propõe curso que questiona existência do racismo
Desde que o governo português anunciou a criação do Observatório do Racismo e Xenofobia, em 2023, o projeto recebeu fortes críticas. Isso porque organizações antirracistas portuguesas têm denunciado e protestado contra a ausência de pessoas negras, ciganas e imigrantes no órgão.
O último ponto crítico aconteceu na última semana com o anúncio do Observatório de realizar um curso sobre racismo na Faculdade de Direito da Universidade Nova, só que ministrado apenas por docentes brancos. O anúncio do curso foi publicado no site da instituição e retirado após protestos de organizações sob a justificativa de que a escolha do corpo docente não havia sido finalizada. Afinal, como é possível promover uma discussão sobre racismo e xenofobia sem a participação daqueles que sofrem diretamente os impactos dessas discriminações?
A falta de diversidade no Observatório, criado para monitorar e propor ações de eliminação das violências a determinados grupos, levanta questões sérias sobre sua legitimidade e eficácia. Além disso, levanta sérios questionamentos sobre o comprometimento de Portugal em reparar as consequências dos séculos de exploração colonial, especialmente em relação ao Brasil e às ex-colônias africanas, além das reivindicações da comunidade cigana e dos imigrantes no país.
Curso questionava a existência do racismo
O curso proposto pelo Observatório era intitulado "O racismo existe mesmo?". A pergunta dá um norte ao que ele se propunha: colocar em dúvida a existência do problema.
"É uma forma de legitimar, mais uma vez, uma política que já vem detrás, que é exatamente de brancos para brancos, como tem sido perpetuada até hoje", conta à coluna a "artivista" Anabela Rodrigues, primeira mulher negra portuguesa a ocupar o posto de deputada no Parlamento Europeu.
Ela participou das primeiras conversas para a instituição do Observatório e avalia que o curso proposto é uma forma da universidade se apropriar dos recursos relacionados à temática racial.
A professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Inocência Mata, pós-doutora em estudos pós-coloniais pela Universidade da Califórnia (EUA), tem uma opinião próxima. Para ela, a universidade portuguesa e alguns acadêmicos estão convencidos, de fato, que o colonialismo português foi um colonialismo benéfico. "Como se isso fosse possível", diz.
"Pessoas que nunca tiveram experiência, porque não é só o saber, tem que ser o saber-sentir. Nunca tiveram experiência de discriminação. As próprias pessoas deviam olhar para essa composição e dizer: 'bem, gente, falta-nos aqui alguém que nos possa dar uma outra visão sobre o que é o racismo e o que é a xenofobia', que essa gente obviamente não conhece"
Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Anabela Rodrigues também adiciona outro fator às escolhas para o Observatório e sobre o curso: de que o Estado português quer ter alguma entrega à comunidade internacional, já que o Observatório foi instituído no âmbito das ações da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), recomendadas pela Assembleia Geral da Nações Unidas aos países membros.
"Provavelmente vai levar isso [a realização do curso] como uma desculpa para a ONU em seu relatório para 'limpar a alma', dizendo que contribuiu, que fez um curso com nomes renomados, que têm estudos. O que a ONU pede há muitos anos são dados científicos, [como] o Censo, que não foi realizado, além da reparação histórica"
Anabela Rodrigues, artivista
Coordenadora diz que curso ainda está sendo finalizado
Em artigo publicado na terça (22), no site Público, a professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Teresa Pizarro Beleza, coordenadora do Observatório, explicou que "docentes racializados", reconhecidos como referências na área, "cuja presença seria natural e essencial" no curso, foram convidados. No entanto, não responderam aos convites até a data da publicitação do programa.
Segundo ela, o anúncio do curso publicado no site da universidade, no qual constavam apenas professores brancos, estava incompleto e a universidade ainda está finalizando a estrutura do curso. "A declaração de 'docentes só brancos' não reflete o processo completo de organização e seleção. Lamentamos a perturbação causada pela publicitação intempestiva do programa ainda por fechar", escreveu.
Brasil assinou acordo com Observatório
Em junho, a ministra da Igualdade Racial do Brasil, Anielle Franco, esteve em Lisboa e assinou um memorando de entendimento com o Observatório do Racismo e da Xenobia na Universidade Nova. O documento prevê a troca de boas práticas entre Brasil e Portugal e o compromisso conjunto com a produção de dados para elaboração de políticas públicas de combate ao racismo.
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Quero receberNa oportunidade, a ministra foi questionada sobre a ausência negros, ciganos e imigrantes no órgão e respondeu que o racismo não é pauta só de negros. "É um trabalho que a gente precisa cada vez mais pensar em agrupar, e não dividir e não segregar. Eu seria irresponsável se viesse ao Observatório e eu só quisesse falar com uma pessoa negra", explicou a ministra no evento de assinatura.
No entanto, para a ex-deputada Anabela Rodrigues, a assinatura da parceria com o governo brasileiro é uma forma de legitimar que é possível um observatório totalmente composto por pessoas brancas também contribuir com a temática.
Procurada pela coluna, o Ministério da Igualdade Racial informou por nota que o memorando assinado com a Universidade Nova tem como prazo inicial de execução 18 meses. "O processo está na etapa final de elaboração de plano de trabalho e reuniões internas. A fase posterior é de alinhamento do plano de trabalho com a universidade e início das atividades pactuadas", diz trecho da nota.
"Nós tínhamos a esperança quando a ministra esteve aqui exatamente nesta questão. Sabíamos que as políticas afirmativas podiam ser um passo. E tivemos uma esperança que esta assinatura do Brasil com Portugal fosse neste caminhar. Não me parece que está assim neste momento. O Brasil não questionou, não é?", lamenta Anabela Rodrigues.
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