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"Para muitos na Líbia, há homem-bomba no Brasil", diz líbio que morou em São Paulo

Bassam Nasser, 39, decidiu trocou a Líbia pelo Brasil aos 23 anos em busca de liberdade e diversão; com o fim da guerra, o líbio retomou para sua terra natal - Arquivo Pessoal
Bassam Nasser, 39, decidiu trocou a Líbia pelo Brasil aos 23 anos em busca de liberdade e diversão; com o fim da guerra, o líbio retomou para sua terra natal Imagem: Arquivo Pessoal

Larissa Leiros Baroni

Do UOL, em São Paulo

19/10/2012 06h00

Assim como os brasileiros têm uma visão distorcida da Líbia, mesmo após a morte do ex-ditador Muammar Gaddafi, que completa um ano neste sábado (20), os líbios também têm impressões erradas sobre o Brasil. É o que aponta o líbio Bassam Nasser, 39, que morou em São Paulo por cerca de 16 anos, entre idas e vindas à sua cidade natal, Trípoli. Países, que apesar de distintos, são taxados de violentos e assustam os mais "desavisados".

"Para muitos líbios, há homem-bomba no Brasil", diz ele, que também afirma ser equivocada a informação de que cenas como a do ataque ao Consulado dos Estados Unidos na cidade de Benghazi --onde morreram quatro pessoas, incluindo o embaixador-- sejam rotineiras na Líbia. "Ao mesmo tempo em que só chegam notícias de uma Líbia violenta no Brasil, em território líbio só são veiculadas situações como tanques de guerra invadindo favelas e o confronto entre civis e policiais."

Nasser, que está de volta ao Brasil para uma temporada de apenas três meses, reconhece a existência de violência nos dois países, mas discorda da forma como elas são "erroneamente" interpretadas. "Quando voltei à Líbia, em outubro de 2011, após a trégua da guerra civil em Trípoli, me assustei com o número de armas, algumas delas pesadas, nas ruas da capital. Mas, com o fim da guerra, essas cenas são raras no país", conta ele, que optou por vir morar com o tio no Brasil aos 23 anos, em busca de liberdade e diversão, coisas que não tinha em seu país.

A diminuição da violência na Líbia também é descrita pelo líbio Adnan Sherif, 43. "Durante a guerra civil era comum ver caminhões com metralhadores andando pelas ruas e ouvir trocas de tiros na madrugada. Hoje não há mais nada disso", aponta ele, que vive em Trípoli junto com a mulher e os dois filhos. Mesmo que o número de armas em circulação ainda seja grande, o líbio diz nunca ter ouvido falar em um roubo a banco, tão comum no Brasil.

"A violência na Líbia está muito mais vinculada a atos de retaliações específicos como, por exemplo, contra grandes nomes do Exército antigo de Gaddafi", cita Sherif, que também afirma ser comum no país roubos e furtos. "O ditador, em seus últimos dias de poder, liberou mais de 15 mil presos para liberar espaço nas cadeias e prender os rebeldes. Essas pessoas continuam soltas."

E assim como os brasileiros, Sherif, que é filho de uma pernambucana com um líbio, toma algumas precauções para evitar qualquer contratempo. "Nunca fui vítima de nenhum ato de violência, mas sempre evito sair com o carro da empresa, que tem placa estrangeira e é mais visado a roubo", relata ele.

Primeira grande vitória da Líbia

A notícia da morte de Gaddafi, em 20 de outubro de 2011, foi recebida com muito entusiasmo tanto por Nasser quanto por Sherif. Enquanto um estava na faculdade, o outro estava no trabalho. Mas ambos puderam presenciar a alegria do povo líbio diante do anúncio mais esperado dos últimos tempos. "No primeiro momento não acreditei, tive até que ligar para o meu irmão para saber se a informação era verdadeira", conta Nasser.

Sherif acompanhou a festa durante o trajeto de volta para casa. "Dava para ver na cara de cada uma das pessoas a alegria. Teve alguns até que choraram. A emoção tomou conta de todos. Fogos de artifícios iluminaram o céu, os carros não paravam de buzinar. E até os comerciantes festejaram com a distribuição de bolos e chocolates para os cidadãos que passavam pelas ruas, seja de carro ou a pé", disse ele.

A comemoração ganhou força não só por representar o "fim de uma guerra", mas também o "início de uma nova era", como destacou Sherif. "Uma era que trouxe de volta a liberdade de expressão, o acesso à informação e a variedade de escolha para os líbios, após 43 anos de ditadura e repressão."

Caminhos para a transformação

Emoção similar também foi vivida pelos líbios no dia 7 de julho, quando eles compareceram às urnas pela primeira vez desde 1964 durante as eleições parlamentares no país. "A emoção de votar só não foi maior do que o anúncio da morte de Gaddafi. Mas o voto foi a confirmação da conquista de nossa liberdade de expressão", afirmou Nasser.

Nem mesmo a fila de 40 minutos de espera foi capaz de desanimar Sherif de exercer o seu direito de cidadão líbio. "O voto não era obrigatório, mas a população compareceu em peso, e até idosos de mais de 90 anos marcaram presença", conta o líbio. "Os vizinhos se solidarizaram com aqueles que estavam nas filas e distribuíram água e chocolate."

Para Sherif, a principal conquista do povo líbio após os 43 anos de repressão foi o desenvolvimento de um patriotismo. "Um amor à pátria jamais visto nos olhares dos cidadãos". Ele, no entanto, reconhece que há muito a ser feito nesse processo de transição. "Gaddafi deixou a educação e a saúde uma miséria. Agora, precisamos nos reestruturar, a começar pela formação de mão-de-obra qualificada para que essa reconstrução seja viável", aponta o líbio, que também cita a segurança da fronteira, que é usada como uma ponte para imigrantes ilegais da África chegarem a Europa, como um desafio para o novo governo do país.

A Líbia, segundo Sherif, tem tudo para dar certo: "É um país habitado apenas por 6 milhões de pessoas, com uma riqueza incomum e uma posição geográfica muito boa. E se depender dos líbios, o sucesso é garantido. O que queremos é a paz e a normalização da vida", concluiu.

Principais momentos da era pós-Gaddafi na Líbia

Outubro/2011Morre o ex-ditador líbio Muammar Gaddafi
Outubro/2011Libertação da Líbia é oficializada
Julho/2012Primeira eleição parlamentar desde 1964
Agosto/2012Conselho de Transição entrega poder ao Congresso Nacional líbio
Agosto/2012Comemoração 1º aniversário da libertação do país do comando de Gaddafi
Setembro/2012Ataque no Consulado dos EUA em Benghazi
Outubro/2012Ali Zidan é eleito primeiro-ministro