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A matança em escola primária é perversa, absurda e literalmente insuportável

Roger Cohen

Do International Herald Tribune, em Londres (Reino Unido)

18/12/2012 06h00

O presidente Obama fez um bom discurso no Arizona, há quase dois anos, depois que um atirador solitário –outro jovem americano problemático com uma arma semiautomática- matou seis pessoas e feriru muitas outras, inclusive a deputada Gabrielle Giffords.

Ele falou de uma reconciliação americana que valesse as esperanças de uma menina de nove anos de idade morta naquele dia. Mas ele também teve palavras duras: “Não podemos e não vamos ficar passivos diante de tal violência. Devemos estar dispostos a questionar velhas premissas para reduzir as perspectivas de violência no futuro”.

Agora, novamente o presidente proferiu palavras comoventes, e verteu lágrimas, depois que um atirador de 20 anos –tendo matado sua mãe e apreendido seu amplo arsenal- abriu caminho a tiros em uma escola de ensino fundamental em Newtown, Connecticut, na semana passada e dizimou 20 crianças entre seis e sete anos de idade, assim como seis membros da equipe da escola. Novamente, Obama falou em orações e em comunidade. Novamente ele fez a vaga promessa de tomar “atitudes significativas para impedir mais tragédias como esta”.

A matança de Newtown é muitas coisas: perversa, absurda, literalmente insuportável. Quem pode olhar nos olhos inocentes de 20 crianças do primeiro ano escolar e executá-las? A tentação é responder que só um monstro, mas é claro que a resposta é um ser humano.

Para reprimir o potencial inextirpável dos seres humanos para o mal não basta a retórica ou preces de coração. É preciso leis efetivas que governem a interação dos cidadãos na sociedade. O horror de Newtown é um fracasso político. É um fracasso da vontade americana. Essa vontade é personificada pelo presidente. Michael Bloomberg, prefeito de Nova York, estava certo em criticar Obama: “Ele é o comandante em chefe assim como o consolador em chefe”

Sobre o temas " aramas", a questão gira em torno de meia dúzia de palavras adotadas há 221 anos. A segunda Emenda diz: “Sendo uma milícia bem regulada necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido” (cada aspecto dessa emenda, inclusive a pontuação, é discutido).

Esta única sentença se tornou a base frágil para toda uma ideologia defendida pelo lobby de armas que conta com a força de milhões de dólares. Ele sustenta que o direito dos indivíduos de portar armas é indivisível da essência da liberdade americana. Qualquer tentativa de cercear esse direito, de alguma forma, é antiamericana. Segundo esta opinião, a arma se torna garantidora do vigor e da democracia: os fracos europeus cedem seus direitos ao Grande Governo (a nova religião deles) enquanto os americanos, tementes a Deus, acreditam que seu governo deve servir a eles.  

Os europeus olham incrédulos. Em muitos aspectos, as culturas europeia e americana se misturam. Eles divergem sobre armas e Deus. Os Estados Unidos têm mais armas e falam mais em Deus –para alguns americanos, é um sinal de vitalidade e da ausência do cinismo europeu, mas, aos olhos dos europeus, é uma combinação perigosa. O que o jovem Adam Lanza, armado com um rifle semiautomático .223 Bushmaster, tem a ver com “bem regulada”, “milícia”, “segurança” ou “Estado livre” ou com “o povo”? nada.

A Segunda Emenda não pode ser uma licença desimpedida para o porte de armas, um passaporte para a aquisição livre de armas que facilita os banhos de sangue. James Madison tinha em mente a ordem, não o caos. Sim, entre o discurso de Obama no Arizona e este massacre, as leis de armas norte-americanas se tornaram menos e não mais restritivas. As antigas premissas não foram “questionadas”  e sim reforçadas. A cultura de armas é profunda.

Desde quando fez suas observações muito criticadas sobre as pessoas do campo serem “apegadas” às armas e a Deus –que foram consideradas paternalismo esnobe liberal- Obama tem sido passivo (palavra dele) na questão de armas. Mas a morte dessas 20 crianças, em um ano de vários tiroteios, exige que ele agora faça forte pressão para tornar o acesso às armas “bem regulado” –com análises detalhadas do histórico dos potenciais compradores, períodos de espera que permitam essas investigações, peritos nessas avaliações, restrições quanto aos tipos de armas disponíveis e qualquer legislação que de fato defenda  “a segurança de um Estado livre”.

Os proprietários de armas responsáveis só se beneficiariam. Os Estados Unidos não se tornariam uma Europa da noite para o dia se retirassem da Segunda Emenda as confabulações anti-históricas que tornaram a vida muito mais perigosa para as crianças norte-americanas do que necessário.

Quando jovens crianças são massacradas, é um momento de reavaliação para qualquer sociedade. Negar este evento com um ato de um louco é inaceitável quando faz parte de um padrão, parte de uma cultura. A questão a se fazer não é se leis mais estritas teriam impedido isso, mas se as leis e atitudes atuais permitiram isso. Até mesmo os nazistas tiveram dificuldades diante da enormidade de matar crianças. Para superar a barreira psicológica nos Estados bálticos em 1941, muitas vezes eles contratavam policiais locais ou milicianos para matar crianças judias. As câmaras de gás subsequentes foram desenhadas pela eficiência, mas também eram um meio de evitar fazer o que Lanza fez: olhar nos olhos das crianças condenadas.

Palavras bonitas e preces se desmontam como guarda-chuvas baratos em uma tempestade. O que é necessário é uma resolução política para se confrontar um flagelo. Newtown se tornou um teste decisivo para saber se o segundo mandato de Obama é diferente. Os sinais não são bons. Seu discurso em Newtown não continha duas palavras essenciais: armas e leis.