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Brasil desperdiça chance de liderança diante do provincianismo de Trump, diz Celso Amorim

Celso Amorim foi chanceler nos governos Lula e Itamar - Bruna Prado/UOL
Celso Amorim foi chanceler nos governos Lula e Itamar Imagem: Bruna Prado/UOL

Eduardo Militão

Colaboração para o UOL, em Brasília

05/01/2018 04h00

O Brasil perdeu protagonismo e liderança mundial nas relações comerciais e na mediação de paz diante dos conflitos internacionais com o governo de Michel Temer (MDB). Ao mesmo tempo, desperdiça a chance de ser uma liderança cultural e intelectual nas Américas ocupando um vácuo deixado pelo EUA, cuja política de Donald Trump é não se envolver em questões estrangeiras. Esta é a opinião de Celso Amorim, ex-chanceler nos governos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Itamar Franco (PPS).

“Essa ausência de liderança, ou até de tentativa de liderança mundial, intelectual e cultural tem até uma oportunidade desde que houvesse aqui uma liderança, mas não temos nenhuma infelizmente”, afirmou ele durante 50 minutos de entrevista ao UOL, por telefone, de seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde mora.

A voz internacional do Brasil hoje em dia é pouco mais que uma coisa esganiçada, não dá para ouvir.”

Aos 75 anos, Amorim está aposentado do Itamaraty, onde serviu por cerca de 50 anos, começando antes do golpe militar de 1964. É autor do livro “Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva” (Ed. Benvirá), com apresentação do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan. Ele preside o conselho da organização da ONU para pesquisa de medicamentos contra malária, tuberculose e Aids (Unitaid). Participa de conselhos de um grupo contra crises internacionais e de fóruns de partidos socialistas. Amorim foi ministro da Defesa no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014) e das Relações Exteriores nos governos de Lula (2003-2010) e Itamar (1993-1994).

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Veja os principais trechos da entrevista concedida no dia 27 de dezembro:

UOL - O senhor foi diplomata por mais de 50 anos, conhece boa parte do mundo. Como o mundo enxerga esse Brasil de políticos às voltas com a Justiça hoje?
Amorim - 
Tem muita gente que não está preocupada. Tem muita gente que quer só ganhar dinheiro. E se esse regime facilita investimentos e permite aquisições, como a da Embraer pela Boeing, eles estão pouco ligando. Agora, o que não tem, no país como está hoje, é credibilidade. O Brasil não pode propor nada. Essa é uma opinião geral mesmo de quem não estava de acordo com a nossa política externa.

É inegável que o Brasil tinha protagonismo. O Brasil criou a União Sul-americana de Nações (Unasul), modificou o padrão de negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), o [George W.] Bush [ex-presidente dos EUA] ligava imediatamente para o Lula para propor a criação do G-20, criamos os Brics [comunidade formada pelo grupo de emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Nada disso hoje em dia existe. Estamos totalmente sem liderança.

Veja a Venezuela [país em crise econômica e conflito civil com o presidente Nicolás Maduro, que, acusado de corrupção, demitiu a procuradora-geral da República que o investigava e reduziu os poderes do Congresso]. Estou repetindo as palavras do chanceler [Aloysio Nunes Ferreira, senador pelo PSDB]: o Brasil não pode exercer nenhuma mediação ou facilitação porque o Brasil tem partido. Isso é uma coisa inacreditável. É o oposto do que, em 2003, o ex-presidente Lula criou o grupo de Amigos da Venezuela, teve o referendo com observadores internacionais da OEA [Organização dos Estados Americanos]. Claro que as situações vão evoluindo e talvez não fosse agora da mesma maneira, mas foi possível encontrar uma maneira.

UOL - A Venezuela é uma ditadura?
Amorim - 
A questão é complexa. Certamente houve erros, mas os preços de petróleo caíram de maneira brutal, o que permitia uma certa paz social na Venezuela, que tem dependência total do petróleo. E há uma situação geral de boicote da maior potência do mundo.

28.dez.2017 - Celso Amorim em sua residência no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Amorim diz que seu 'objetivo maior é ajudar um projeto progressista no Brasil' e desconversa sobre ser candidato ao governo do Rio pelo PT
Imagem: Bruna Prado/UOL
 UOL - Mas o senhor considera a Venezuela uma democracia?
Amorim - 
Não estou falando isso. Mas também não considero o Brasil uma democracia.

UOL - O senhor não considera Venezuela e Brasil democracias?
Amorim -
 Democracias plenas não. Também nem sei onde há democracia plena. Há graus de democracia. Lá, eles adotaram um outro caminho. Não estou defendendo, mas estou explicando. Não é uma invenção do [Hugo] Chávez [ex-presidente da Venezuela, morto em 2013] que houve um golpe de Estado patrocinado pelos EUA.

Frase do Millôr Fernandes: o fato de eu ser paranoico não quer dizer que não esteja sendo perseguido. Eles tomam as medidas, que talvez não sejam as mais democráticas, mas eles têm uma psicologia de cerco, que decorre de várias situações. Para falar na Venezuela, é preciso contextualizar.

Tenho mais de 50 anos de diplomacia. Entrei para o Instituto Rio Branco antes do golpe militar. Nunca tinha visto um presidente norte-americano [Donald Trump] ameaçar um país sul-americano com o uso da força. Essa ameaça pode ser ao Brasil ou a outra força, não precisa ser de esquerda, basta contrariar um interesse.

UOL - Trump cortou verba da ONU. Isso afeta imagem da instituição?
Amorim - 
Afeta a imagem do Trump. Pela primeira vez depois da 2ª Guerra, os EUA não têm um projeto para o mundo. Bem ou mal, eles tinham, fizeram muita besteira. Mas fizeram a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e a própria ONU. Até a defesa dos interesses deles ficava disfarçada dentro desse projeto. Agora, eles não têm projeto. O único projeto é “America first” [“A América primeiro”, um dos lemas de Trump] e o resto que se dane.

É esse tipo de atitude que se reflete nesse corte de verba para as Nações Unidas, na total desconsideração a outras decisões da ONU, até mais importantes que esses US$ 200 milhões, que estão cortando agora, como qual será a capital de Israel e da Palestina. É um ponto extremamente sensível que só pode ser resolvido no final das negociações.

Tudo demonstra despreza pela opinião que se formou no mundo em torno do tema. Isso pode gerar conflitos. Para a América do Sul, essa atitude do Trump poderia... Essa ausência de liderança, ou até de tentativa de liderança mundial, intelectual e cultural tem até uma oportunidade desde que houvesse aqui uma liderança, mas não temos nenhuma infelizmente.

Porque o único país que teria capacidade para isso (assumir a liderança regional) é o Brasil, que está como está.

UOL - México, Argentina, Chile e Colômbia não teriam essa força?
Amorim - Não têm. O México está muito perto dos EUA. Tenho grande admiração pelo povo mexicano, mas tem a limitação imposta pela geografia. Os outros têm peso, mas não o do Brasil, que é metade da América do Sul em território, população e PIB, entre 35% e 40% da América Latina. Fui embaixador no governo Fernando Henrique. A projeção do Brasil cresceu muito no governo Lula, mas ele já tinha projeção, era respeitável.

UOL - Nosso protagonismo internacional está menor do que no governo FHC?
Amorim - 
Muito menor. No governo FHC, eu não concordava com as privatizações, mas era um governo com legitimidade, tinha sido eleito, o Fernando Henrique foi reeleito. O governo Collor não dá para medir porque depois do primeiro ano já começou o impeachment. No governo Lula, as políticas sociais deram ao Brasil uma capacidade de atuação internacional, o que se chama de soft power. E isso agora não tem nada. Você não pode comparar.

O Brasil é maior do que no governo Sarney, mas, se for tomar do que era dois, três anos atrás, nunca houve uma queda de credibilidade. Sempre procuramos atrair, mesmo quando não concordávamos com opiniões. Quando a Colômbia atuou no Equador atrás das Farc sem pedir licença, havia sugestões mais radicais, mas o Brasil não achou interessante isolar a Colômbia. Preferimos o diálogo. A voz internacional do Brasil hoje em dia é pouco mais que uma coisa esganiçada, não dá para ouvir.

UOL - Quais são os principais desafios para o Brasil em 2018?
Amorim - 
Tem muitas coisas complexas. Se tivesse no Brasil um partido de centro, talvez houvesse uma aliança da esquerda com o centro para combater o fascismo. Problema que não há centro, mas aqueles que não têm partido nenhum a não ser o do “eu primeiro”, uma versão brasileira tupininquim do Trump.

Vai ser uma batalha das forças progressistas de lutar pela volta de um projeto socialmente mais justo e uma política externa mais autônoma e, ao mesmo tempo, lutar para que movimentos de extrema-direita e de ódio não se propaguem.

Mas tenho esperança que se possa encontrar um caminho. Esse caminho depende de termos eleições diretas e realmente irrestritas. Depois, necessariamente, revogar essas medidas tomadas no governo Temer, que não tinha legitimidade para praticamente fazer mudanças de nível constitucional, como a reforma trabalhista. E, ao mesmo tempo, conduzir um processo de reforma política. Não é fácil. Tem que tomar o trem e depois consertar a roda com o trem andando.

UOL - Temos um presidente da República denunciado criminalmente, mais de uma dezena de ministros e parlamentares investigados ou denunciados à Justiça às vésperas de uma nova eleição e o líder nas pesquisas é um ex-presidente condenado por corrupção. Há mais corrupção ou o Judiciário está agindo de maneira diferente?

Amorim - As investigações produziram vários tipos de resultados diferentes. Não se pode comparar, embora não tenha havido condenação porque o Congresso não permitiu a continuidade das investigações, o tipo de acusação que é feito ao atual presidente e a vários ministros e ex-ministros dele, em que uma das casas foram encontradas 50 malas [o ex-ministro Geddel Vieira Lima tinha R$ 51 milhões escondidos em apartamento em Salvador], coisa que nem em filme policial se via, é totalmente diferente, embora judicialmente ela esteja mais adiantada, da acusação feita ao ex-presidente Lula.

A meu ver, (a acusação contra Lula) é muito baseada em coisas muito frágeis, que não se sustentam. É opinião de mais de cem juristas que escreveram livro comentando a sentença inclusive do ponto de vista processual, independentemente se você goste ou não do ex-presidente.

Celso Amorim em entrevista ao UOL - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Amorim é autor do manifesto "Eleição sem Lula é fraude"
Imagem: Bruna Prado/UOL
Você tem uma ação por um determinado tipo de acusação e é condenado por outro, coisa que não existe no direito processual [Lula (PT) foi condenado a nove anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro porque, segundo Sérgio Moro, recebeu um tríplex como propina em troca dos favores que prestou à empreiteira OAS durante seu governo]. Isso afeta o cenário, sendo ele de longe o candidato preferido pela população brasileira.

Tomei a iniciativa, não sozinho de fazer um manifesto “Eleição sem Lula é fraude ao povo”, porque tira o direito do povo de se manifestar, de ter um tipo de projeto mais voltado por questões sociais. O manifesto [lançado em meados de dezembro] tem perto de 80 mil assinaturas e nomes como Noam  Chomsky [linguista norte-americano de esquerda], Yanis  Varoufakis [ex-ministro da Economia da Grécia], Richard Falk [ex-investigador da ONU para direitos humanos em territórios palestinos], Perez Esquivel [arquiteto argentino ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1980 e militante dos direitos humanos], Cristina Kirchner [ex-presidente da Argentina], Fábio Konder Comparato [jurista brasileiro] e o cantor Chico Buarque.

O caso Temer e os outros casos há acusações que nem sequer puderam ser apuradas porque houve bloqueio através de procedimentos que deixam a gente meio ruborizados. Trocar votos por posições em relação... emenda parlamentar, trocar recursos por posicionamento político. Se você comparar as acusações nos dois casos que chegaram ao Congresso sobre o Temer [por supostamente pedir e receber uma mala de dinheiro de R$ 500 mil por meio do ex-assessor Rodrigo Rocha Loures, o presidente da República foi denunciado duas vezes, por corrupção passiva e organização criminosa] com as que pesaram sobre a Dilma [Rousseff, ex-presidente deposta no impeachment em 2016], não há termos de comparação. São coisas diferentes.

Agora, de fato, o Brasil vive um momento difícil. O ano vai ser decisivo, temos várias armadilhas jurídicas, há ameaças com a extrema-direita crescendo nas artes, na cultura, nas universidades, nessas conduções coercitivas, que tornam, digamos assim, o fascismo batendo à porta. E isso tem sido tratado com quase uma normalidade. Se o Lula ou alguém progressista vai ganhar ou não as eleições, eu não sei. De qualquer maneira, é importante que o povo tenha a oportunidade de escolher quem for de sua preferência. Eu acho também que o Brasil terá que passar por uma profunda reforma política senão a mesma situação vai acabar se reproduzindo, com quem quer que seja eleito.

Do Sarney até o Fernando Henrique e mesmo nos governos do PT, esse chamado presidencialismo de coalizão tem levado a alianças que não são nem ideológicas.

UOL - Do Sarney até o governo Temer, todas as práticas se repetiram?
Amorim -
Em graus diferentes, evidentemente. Para a emenda da reeleição do Fernando Henrique, o que está acontecendo agora... E também a necessidade de compor com um Congresso em que o interesse fisiológico predomina.

Alianças são normais. Na Alemanha, o partido conservador se alia com o social-democrata, dois partidos de ideologias diferentes, o que exige concessões.  Mas no Brasil não é isso que acontece. O partido que está no poder, que teria hegemonia, seja mais progressista, mais à esquerda, como do ex-presidente Lula, seja mais de centro-direita, como foi do Fernando Henrique, tem que se coligar com interesses puramente fisiológicos. É um elemento de deformação da política.

UOL - É o cargo, a emenda...
Amorim - 
Exatamente.

UOL - O senhor acredita que isso aconteceu do Sarney ao Temer...
Amorim -
Tem acontecido sempre em virtude do sistema eleitoral brasileiro. Claro que aconteceu em graus e com objetivos diferentes. No governo Lula e Dilma, foram feitos enormes progressos sociais, mas também, para obter isso, foi preciso fazer alianças não-ideológicas. É você captar votos puramente fisiológicos. Os que estavam apoiando o governo do ex-presidente Lula, para não falar do PMDB, passaram a apoiar o impeachment e hoje estão no governo.

28.dez.2017 - Celso Amorim em sua casa no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Celso Amorim diz que Brasil desperdiça chance de ser protagonista na América do Sul
Imagem: Bruna Prado/UOL
UOL - E que eram os que apoiavam o governo FHC...
Amorim  -
Claro. Antes apoiavam o FHC. O que se chama de “Centrão” não é que as pessoas sejam de centro. Mas como os interesses são muito localizados, muito ligados ao clientelismo, não vou nem falar de corrupção, eles estão prontos a se aliar com qualquer um. Uma reforma política para valer só pode acontecer na sequência de uma eleição presidencial em que o presidente eleito tenha grande apoio popular para liderar o processo, não impor. Se não você terá o Congresso atual que não votará contra os interesses que os levaram ao poder.

UOL - A reforma política é para lidar com o financiamento eleitoral?
Amorim -
Não é um problema só da oferta do dinheiro [As doações empresariais estão proibidas no Brasil desde 2016, mas, como reação, os congressistas elevaram os recursos públicos nas campanhas de cerca de R$ 300 milhões por ano para mais de R$ 1 bilhão por ano]. É bom ter proibido o financiamento por empresa, mas você deixa os limites muito altos para financiamento individual. Obviamente isso desvirtua. Mas é também problema da demanda do dinheiro.

Você tem que tornar as eleições menos caras. Esse sistema proporcional uninominal, em que você vota num candidato, torna as eleições extremamente caras. Eu prefiro voto em lista, que mais fortaleceria os partidos, mas pode se conceber outro.

UOL - Se Lula não for candidato a presidente, o senhor é um plano “B” do PT?
Amorim -
Nossa tarefa no momento é viabilizar a candidatura de Lula. Eu ainda estou no plano “A” e pretendo continuar nele.