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'Como você quer morrer?': aos 8, ela testemunhou a morte da família e passou 47 dias com o assassino

Shasta Groene, que foi sequestrada em 2005 aos oito anos; foto foi tirada em hospital, dois dias depois de seu resgate   - Reprodução/CBS News/AP
Shasta Groene, que foi sequestrada em 2005 aos oito anos; foto foi tirada em hospital, dois dias depois de seu resgate Imagem: Reprodução/CBS News/AP

Juliana Carpanez*

Do UOL, em São Paulo

30/06/2018 04h01

“Como você prefere morrer? Você pode escolher entre ser estrangulada ou tomar um tiro, como aconteceu com seu irmão.” A oferta foi feita a uma criança de oito anos por um homem que já havia matado sua mãe, seu padrasto e seus dois irmãos. Três dessas vítimas a marteladas.

Testemunha e única sobrevivente desse crime, que durou 47 dias em 2005 e teve enorme repercussão nos EUA, a jovem --que escolheu tomar um tiro, mas escapou-- contou ao UOL detalhes de sua história, que planeja transformar em livro. 

Seu nome é Shasta Groene. Em 16 de maio de 2005, aos oito anos, ela foi acordada aos chacoalhões por sua mãe, Brenda Groene, 40, na casa onde moravam, em Coeur D’Alene (Idaho, EUA). A mulher chorava. Era por volta das 5h30. Todos os moradores --lá também viviam o noivo e outros dois filhos de Brenda-- se reuniram na sala, obedecendo às ordens de um desconhecido. Tratava-se de Joseph Edward Duncan 3º, na época com 42 anos. 

Shasta se lembra de tê-lo considerado parecido com um policial. Mas concluiu estar enganada quando ele usou lacres de plástico para amarrar as mãos de todas as vítimas, deitadas no chão --se fosse um policial, pensou, usaria algemas. As ordens de Duncan ganhavam força com um revólver, que não era sua única arma. Ele tinha também um martelo --“daqueles para construir casas”, descreve Shasta--, com o qual matou Brenda, Mark McKenzie, 37, e Slade, 13.

Eu vi tudo, eu vi tudo. Ele assassinou minha mãe, meu padrasto e meu irmão. Bateu repetidamente na cabeça deles até morrerem 
Shasta Groene

Em seguida, o criminoso fugiu com os irmãos Dylan, 9, e Shasta, que só foi resgatada em 2 de julho, 47 dias depois de ter visto Duncan pela primeira vez. Nesse período, marcado por frequentes abusos sexuais, Dylan morreu de maneira trágica, em um trecho da história que fez Shasta se emocionar durante a entrevista ao UOL e será contado mais adiante. 

Casa onde as vítimas foram mortas; Duncan teria observado a família por dias antes do ataque  - 25.mai.2005 --Jeff T. Green/Getty Images - 25.mai.2005 --Jeff T. Green/Getty Images
Casa onde as vítimas foram mortas; Duncan teria observado a família por dias
Imagem: 25.mai.2005 --Jeff T. Green/Getty Images

O fato de a única sobrevivente ter testemunhado os assassinatos dentro de sua própria casa está entre os detalhes pouco conhecidos de sua história, que ela pretende contar em um livro feito com sua amiga Jamie Sedlmayer, escritora e fotógrafa. Se a campanha de financiamento coletivo para arrecadar US$ 15 mil (cerca de R$ 58 mil) der certo, a primeira edição será lançada em outubro deste ano. 

Shasta Groene com seu filho mais velho, Lorenzo  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Shasta em foto atual com seu filho mais velho, Lorenzo, de dois anos
Imagem: Arquivo pessoal

“Quis escrever porque acho que vai me ajudar, porque não superei totalmente o que aconteceu. Durante anos procurei formas de lidar com isso, mesmo que fosse tentando esquecer tudo, mas acho que será bom contar minha versão de maneira completa, como nunca me senti à vontade para fazer”, diz Shasta, 21, mãe de dois filhos, um de dois anos e outro de dez meses, grávida do terceiro e funcionária de uma lavanderia na rede hoteleira Holiday Inn.

Na conversa em vídeo por Skype, explicou que sua terceira e mais recente tatuagem no rosto é o apelido do noivo, Midnight, com quem se relaciona há seis meses. A cruz embaixo do olho representa sua família e a frase "fear God" (tema a Deus), próxima à sobrancelha, foi escrita para não esquecer a quem deve satisfações de sua vida. 

“Os demônios tomaram controle”

Voltemos aos crimes, cometidos quando Shasta ainda era criança. Duncan nunca explicou por que fez o que fez. As respostas, no entanto, ficam um tanto evidentes se considerados a sua ficha criminal e um blog, que atualizou até três dias antes de invadir a casa dos Groene --a página saiu do ar, mas é possível acessá-la na versão de arquivo. 

Joseph Duncan durante audiência em tribunal no condado de Kootenai (Idaho), em 2006  - 16.out.2006 - Kathy Plonka-Pool/Getty Images  - 16.out.2006 - Kathy Plonka-Pool/Getty Images
Joseph Duncan durante audiência em tribunal no condado de Kootenai (Idaho)
Imagem: 16.out.2006 - Kathy Plonka-Pool/Getty Images

Em 1980, aos 16, foi condenado a 20 anos de cadeia por ameaçar com um revólver e estuprar um garoto de 14 anos. Cumpriu pena até 1994, quando saiu em liberdade condicional, enfrentando depois novas acusações. Todos os casos estão ligados a pedofilia, crime também cometido contra Shasta e Dylan. Após se declarar culpado pelos abusos sexuais e assassinatos, foi condenado à morte em 2008. A data da execução, no entanto, continua em aberto. Em 2016, a Suprema Corte dos EUA rejeitou um apelo de Duncan para que fosse novamente ouvido pela Justiça. 

Além do histórico criminal, existe o blog. Nele, esse homem que dizia trabalhar como engenheiro de software falava das suspeitas que sempre recaíam sobre um ex-detento, de problemas com a Justiça, de abusos sexuais.

“Posso dizer honestamente que não tinha ideia do impacto de minhas ações nas vítimas, na sociedade, em mim. Como já mencionei antes neste blog, fui abusado, até estuprado, com muita frequência e por tantas pessoas diferentes que pensei ser como fumar maconha. Todos faziam, mas ninguém admitia abertamente”, escreveu ao comentar sua primeira condenação. Dias antes dos assassinatos e sequestros em Coeur D’Alene, ele fez um post intitulado “os demônios tomaram controle”.

Estou com medo, sozinho e confuso e minha reação é atacar a fonte de minha infelicidade, a sociedade. Minha intenção é ferir a sociedade o máximo que eu conseguir e então morrer
Joseph Duncan, em post de 11 de maio de 2005

O criminoso não morava perto da família Groene e nunca ficou claro por que escolheu aquelas vítimas. Shasta afirma que, dois ou três dias antes de tudo acontecer, ele já observava ela e seu irmão mais novo brincando --Duncan teria lhe contado que usou até binóculos para observar os hábitos da família. Testemunhas disseram que no domingo, um dia antes do assassinato, a família havia feito um piquenique em seu quintal. “Aquela foi a casa em que sempre vivi e estávamos sempre juntos, tínhamos uns aos outros”, lembra.

"Não tenho mais meu irmão"

Para fugir com as crianças, Duncan usou um Jeep Grand Cherokee roubado, que havia estacionado próximo à casa onde cometeu os assassinatos. Após a descoberta dos corpos, em 17 de maio, o FBI (polícia federal norte-americana) entrou na investigação e foi dado o alerta Amber, um sistema de notificação de crianças desaparecidas. 

Broche estampava fotos de Shasta e Dylan quando as crianças estavam desaparecidas; fotos ajudaram no reconhecimento e resgate de Shasta  - 25.mai.2005 - Jeff T. Green/Getty Images - 25.mai.2005 - Jeff T. Green/Getty Images
Broche estampava fotos de Shasta e Dylan quando as crianças estavam desaparecidas
Imagem: 25.mai.2005 - Jeff T. Green/Getty Images

Elas foram levadas a uma enorme área florestal no estado vizinho de Montana, a cerca de 250 km, onde mudaram de localização ao menos três vezes. Lá, foram sexualmente abusadas todos os dias. Dormiam dentro do carro ou em um colchão inflável. Shasta lembra ter ficado amarrada a uma árvore, pelo tornozelo, e de passar dias sem ter o que comer. Tudo o que Duncan lhes dava, afirma, era fruta enlatada.

Em uma conta imprecisa, que envolve a memória e a percepção de uma criança em situação de estresse, ela calcula ter passado quatro semanas na companhia de seu irmão --e agora vem aquele momento da entrevista quando Shasta se emociona, fazendo um relato cheio de pausas.

Duncan havia lhes dito que voltariam para casa, e os dois deram as mãos, sorrindo um para o outro. Em seguida a garota ouviu um estampido, sem entender o que era. Quando Dylan soltou sua mão e começou a gritar, entendeu que ele havia tomado um tiro na barriga. O assassino aproximou-se do garoto e atirou novamente. Desta vez, na cabeça.

Shasta afirma que foi obrigada a arrastar Dylan para outra área, colocar gasolina no corpo e depois, fogo --a polícia teve de recorrer à análise de DNA para identificar os restos mortais. Quando foi resgatada e as autoridades a questionaram sobre o paradeiro do irmão, ela disse “está no céu”, antes de informar que isso tudo aconteceu na floresta nacional Lolo.

“Eu me apavorei, achei que ele ainda estava vivo, que eu precisava apagar o fogo. Não sei se foi pelo choque, mas juro que ainda conseguia ouvir meu irmão gritando. Você entende o que eu quero dizer?”, perguntou Shasta durante a entrevista, ficando nesta hora sem resposta. “De um segundo para o outro fomos de ‘vamos voltar para casa’ a ‘não tenho mais meu irmão’. Não entendi o que aconteceu.” 

Eu me convenci de que aquilo tudo não era verdade. Estava tudo bem, porque não era real. Achava que meu irmão voltaria, continuaria vivo, que tudo ficaria bem
Shasta Groene 

Os irmãos Slade, Dylan e Shasta Groene - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Os irmãos Slade, Dylan e Shasta Groene viviam em Coeur D'Alene com a mãe, Brenda
Imagem: Arquivo pessoal

"Como você prefere morrer?"

Após a morte do irmão, Duncan quis mudar novamente de lugar na floresta. E Shasta conta que começou a chorar, pois de certa forma achava que estava abandonando Dylan.

A garota passou dias sem falar: apenas balançava a cabeça para concordar com o criminoso. Quando voltou a conversar, Duncan explicou que a morte do garoto havia sido um acidente. “Eu sabia que estava mentindo, mas joguei seu jogo. Não demonstrava medo, emoções, não o deixava bravo. Fazia de tudo para que não quisesse me machucar.”

Ainda assim, chegou o dia em que Duncan lhe mostrou uma arma, uma corda e fez a pergunta do começo do texto: como a garota de oito anos preferiria morrer? 

Brenda Groene tinha 40 anos quando sua casa foi invadida por um desconhecido; ela acordou a filha, Shasta, aos chacoalhões  - Getty Images/Departamento de polícia de Kootenai  - Getty Images/Departamento de polícia de Kootenai
Brenda Groene tinha 40 anos quando sua casa foi invadida por um desconhecido; ela acordou a filha, Shasta, aos chacoalhões
Imagem: Getty Images/Departamento de polícia de Kootenai

Aqui existe uma contradição. Em uma das entrevistas à TV norte-americana concedidas em 2015, dez anos após os crimes, Shasta disse ter optado pela corda, pois teria tempo de convencê-lo a mudar de ideia. Ao UOL, falou que escolheu a arma, pois seria mais rápido. O assassino teria apontado o revólver para sua cabeça por um longo tempo e então desistido, dizendo que não conseguiria. A partir daí, a história é a mesma: ele a deitou no chão e enrolou com força a corda em seu pescoço, estrangulando-a.

“Ficou tudo branco e me lembro de ter visto minha mãe falando comigo. Ela dizia que não era minha hora de ir. De repente, comecei a enxergar de novo, as imagens foram voltando, e ele estava em cima de mim, chorando. Ele queria saber o que eu tinha dito, mas eu não lembrava.”

Soube depois que ela pediu para parar e o chamou de “Jet”, o apelido de infância de Duncan, que nunca tinha ouvido antes. “Talvez tenha sido esse o som que saiu quando eu estava engasgando, não sei o que aconteceu. Mas foi isso que fez ele me soltar.”

Quanto a deixar os demônios irem embora, tarde demais. Eles trancaram o 'Joe Feliz' no mesmo calabouço que o 'Joe Feliz' os prendeu por tantos anos. Eles estão soltos e tenho medo. De agora em diante, vou me referir ao 'Joe Feliz' como 'Jet' e aos demônios como 'Bogeyman' [bicho-papão]
Joseph Duncan, em post de 11 de maio de 2005 

Letreiros em estradas alertaram sobre o desaparecimento de Shasta e Dylan   - 25.mai.2005 - Jeff T. Green/Getty Images - 25.mai.2005 - Jeff T. Green/Getty Images
Letreiros em estradas alertaram sobre o desaparecimento de Shasta e Dylan
Imagem: 25.mai.2005 - Jeff T. Green/Getty Images

De volta para casa

O criminoso e a refém deixaram a floresta, segundo ela para visitar a mãe de Duncan. Na estrada, pararam em um posto de gasolina e foram filmados em uma loja de conveniência, onde a garota passeou por um corredor. Mais tarde, por volta da 1h40 do dia 2 de julho, foram a um restaurante Denny’s na estrada interestadual 90, o último lugar que visitariam juntos. 

câmera de segurança gravou Duncan e Shasta em loja de conveniência  - Reprodução/CBS News/AP - Reprodução/CBS News/AP
Câmera de segurança gravou Duncan e Shasta em loja de conveniência, um dia antes de a garota ser resgatada
Imagem: Reprodução/CBS News/AP

Shasta foi reconhecida por dois clientes, que fumavam ao lado de fora, por causa das muitas fotos espalhadas da garota e de seu irmão desaparecidos. David Chapman e Chris Donlan avisaram a garçonete Amber Deahn, que falou com a gerente Linda Olson, responsável pela ligação à polícia. Enquanto aguardavam as autoridades, Amber tentou manter o homem e a garota no restaurante: Shasta ganhou lápis de cor, uma máscara promocional do filme “Madagascar” e um milk-shake (a garçonete falou todos os sabores disponíveis para que ela escolhesse).

Quando a polícia chegou, cerca de dez minutos após a ligação, Duncan foi preso sem resistir. Nas primeiras reportagens sobre o resgate, o crédito foi dado principalmente a Amber Deahn, mas Shasta discorda: “Foi Chapman quem me identificou, quando o olhei fixamente como se dissesse ‘por favor, me ajude’. Depois mantive contato com ele por muito tempo”. Em setembro daquele ano, a agência de notícias Associated Press informou que as quatro testemunhas dividiram uma recompensa do FBI no valor de US$ 100 mil (cerca de R$ 377 mil).

Depois do ‘final feliz’

Resgatada, Shasta foi viver com seu pai, Steven Groene, nessa história que parece resistir a um final feliz. Hoje os dois não se falam, segundo ela por terem “visões muito diferentes e discordarmos de como as coisas devem ser feitas”. 

Shasta Groene em foto recente; ela planeja trabalhar na área de estética  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Selfie feita por Shasta, que planeja trabalhar com estética: "Gosto de fazer as pessoas se sentirem bem"
Imagem: Arquivo pessoal

Aos 12 anos, ela diz ter sido internada em um centro de reabilitação privado em Salt Lake City (Utah) porque, naquela idade, já tinha problemas com bebidas. Ficou lá por dois anos. Aos 14, começou a usar metanfetamina --vício que perdurou, segundo ela, até engravidar do primeiro filho. Aos 15, foi parar em um centro de detenção juvenil de Idaho, onde permaneceu por três anos, por causa de seu envolvimento com drogas e simulação de assalto. “Fui uma adolescente muito má”, avaliou ao falar sobre esse período de sua vida.

Com a repercussão do crime cometido por Duncan, Shasta disse ter recebido muitas doações, a ponto de comprar uma casa em Coeur D’Alene. O imóvel está à venda e hoje ela mora em Boise (Idaho) com o noivo, seus dois filhos e os dois filhos dele: um menino de quatro anos, uma garota de seis. “Estou mais feliz do que nunca, tenho uma família. Tenho meus filhos, meu noivo, vamos nos casar em breve. Estamos juntos há pouco tempo, mas isso para mim não importa: quando você sabe que algo está certo, então está certo.”

Estou viva hoje porque sei que existem pessoas que precisam de mim, como meus filhos. Quando fico chateada e penso no que aconteceu comigo, tudo o que preciso fazer é olhar para eles. Imediatamente eu me sinto melhor
Shasta Groene

Para o futuro, Shasta planeja trabalhar com estética, pois “gosta de fazer as pessoas se sentirem bem”. Também aposta na publicação do livro, que pode servir de base para um documentário. Se isso acontecer, diz o texto na campanha de financiamento coletivo, a garota pretende visitar Joseph Duncan no corredor da morte, onde ele espera pela execução de sua sentença.

* Com informações de arquivo da Associated Press