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'Aprendi minha lição': a 2ª chance de um fã de rock condenado à prisão perpétua nos EUA

Timothy Tyler foi condenado à prisão perpétua; ele passou 26 anos preso e, em 2018, conseguiu a liberdade  - Arquivo pessoal
Timothy Tyler foi condenado à prisão perpétua; ele passou 26 anos preso e, em 2018, conseguiu a liberdade Imagem: Arquivo pessoal

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

05/08/2018 04h01

Timothy Tyler tem cabelos loiros, compridos, usa camisetas com visual hippie e curte a banda Grateful Dead, formada em 1965 na Califórnia (EUA). Em 2018, Tyler está aprendendo a usar um telefone celular, grava tudo o que vê pela frente e impressiona-se com tecnologias já bem conhecidas (“você tira uma foto e manda para o outro lado do mundo de um jeito simples, fácil”). Aos 49 anos, parece que o norte-americano nascido em Connecticut passou as últimas décadas parado no tempo. E, de certa forma, foi isso o que aconteceu.

Um resumo de sua história, nas palavras do próprio. “Em 1992 eu ia a uma apresentação da Jerry Garcia Band, do líder do grupo Grateful Dead. Estávamos na estrada para Los Angeles quando o carro do cara quebrou. Eu tinha tomado LSD e, com muito calor, tirei as roupas. A polícia parou, perguntou nossos nomes e, quando disse o meu, fui preso. Em vez de ir ao show, recebi duas condenações à prisão perpétua. Se hoje tenho a sorte de estar aqui, dando essa entrevista, é principalmente porque minha irmã nunca desistiu de mim.” Voltaremos a esse episódio mais para a frente.

A conversa por telefone foi na casa de sua irmã, Carrie, na cidade de Las Vegas, no último dia 30 de julho. Mais precisamente 26 anos após sua prisão. Ou oito dias após Tyler ser solto --até 30 de agosto deste ano, quando estará oficialmente livre, ele ainda terá horários controlados de saída e usará uma tornozeleira eletrônica. Nada demais para quem ficou metade da vida preso, sem nenhuma perspectiva de soltura durante décadas. 

Timothy Tyler jovem - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Tim acompanhou os fãs em seis shows, do lado de fora, antes de finalmente ver a banda
Imagem: Arquivo pessoal

A grande família

A história começa em 1988, quando Tim (assim ele é chamado), aos 19, viu os fãs do Grateful Dead acampados em Hartford para três shows na primeira semana de abril, todos esgotados. Ele não assistiu às apresentações, mas curtiu a movimentação do lado de fora. Na semana seguinte, viajou de carona com um amigo até Boston e acompanhou novamente os fãs acampados para outros três shows, ainda sem saber o que aqueles músicos tocavam.

Foi lá que comprou o ingresso para uma apresentação em Illinois, também em abril, onde acabou indo de carona com caminhoneiros que encontrou no caminho. Pela forma como conta, dá a entender que foi fácil percorrer aqueles 1.500 km: “Fui até as paradas de caminhão e, viajando com apenas dois caminhoneiros, cheguei ao destino em tempo recorde”.

Quando finalmente entrou no show do Grateful Dead --o primeiro de dezenas que viria a assistir nos próximos quatro anos--, alguém logo lhe ofereceu LSD (ácido lisérgico) gratuitamente. Ele tomou, sua vida mudou. “Parece que encontrei algo que estava buscando desde os meus 11 anos. Foi como se eu tivesse encontrado uma família da qual eu sentia saudades, mas nem conhecia. Daquele dia em diante, aquela era a minha vida.”

Essa família tinha sobrenome. Eram os Deadheads, fãs do Grateful Dead que deixavam suas antigas vidas para trás e formavam uma comunidade itinerante, com ares hippie, em plenos anos 80 e 90. No documentário “The Other One: The Long Strange Trip of Bob Weir” (O Outro: A Longa e Estranha Viagem de Bob Weir, em tradução livre), da Netflix, o cofundador e guitarrista fala sobre o uso de ácido, comum entre os integrantes da banda. E também explica quem eram os Deadheads, grupo que Tim adotou e pelo qual foi adotado. 

Começamos a entender que nossos fãs eram diferentes quando passamos a ver os mesmos rostos na primeira fila em todas as noites de uma turnê. Ficou mais claro quando começamos a ver barracas montadas no estacionamento. Percebemos que tínhamos um séquito meio cigano [...], que nos seguia e criou sua própria sociedade
Bob Weir, guitarrista do Grateful Dead 

Apresentação da banda Grateful Dead no Ano Novo de 1978, em San Francisco  - Michael Zagaris/AP - Michael Zagaris/AP
Apresentação da banda Grateful Dead no Ano-Novo de 1978, em San Francisco
Imagem: Michael Zagaris/AP

Psicodelismo em preto e branco

O padrasto de Tim lhe deu um caminhãozinho velho, com o qual ele cruzou o país seguindo a banda. Sua nova “família” lhe apresentou o veganismo --dieta que mantém até hoje, mesmo tendo passado tanto tempo na prisão, onde a base de sua alimentação era aveia e maçãs. No acampamento dos Deadheads, vendia bolinhos fritos. Às vezes os dava ou cobrava quanto seus “irmãos e irmãs” pudessem pagar. “Eu vendia várias coisas, era uma espécie de empreendedor. Aquilo era a única forma de liberdade real, dava para ganhar o suficiente. Ou pelo menos você viajava com aquela grande família.”

Enquanto isso, usava LSD. “Não era todo dia nem para ficar chapado. Eu considerava algo sagrado, como a ayahuasca, e tomava para ampliar a visão. Fazia nos shows, pois a música e as luzes eram para isso. Às vezes eram 50 mil pessoas, todas juntas, o que amplificava essas sensações.” Tim --com histórico de bipolaridade-- também vendia a droga, que havia se tornado ilegal nos Estados Unidos décadas antes.

É aí que essa história cheia de música e cores, com jeitão psicodélico, começa a desbotar. 

Em seus anos de Deadhead, Tim havia sido detido duas vezes por vender ácido a amigos da Flórida, estado onde passou a infância, e logo foi solto em liberdade condicional. O problema é que a terceira detenção, em 1992, foi considerada grave e, na época do julgamento, em julho de 1994, havia entrado em vigor uma lei chamada “three strikes”. Ela previa punição severa para uma terceira condenação --no caso de Tim, que recebeu sua sentença aos 25 anos, foi a prisão perpétua sem possibilidade de condicional.

Ou seja: o fã de Grateful Dead que pensava então viver “a única forma de liberdade real” estava condenado a passar o resto de sua vida preso. 

Tim tyler amigos - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Com os Deadheads, Tim Tyler acreditava viver 'a única forma de liberdade real'
Imagem: Arquivo Pessoal

Perdão é a chave para todas as portas

Essa terceira detenção, com elementos de filme policial narrados por Tim, merece ser detalhada. Quando as autoridades o encontraram em uma estrada da Califórnia --recapitulando: fora do carro quebrado, pelado, sob influência de LSD, indo ao show de Jerry Garcia--, ele já era procurado. E sabia disso. Duas semanas antes, autoridades da Flórida prenderam pessoas que haviam recebido envelopes de Tim com doses de LSD. Entre eles, seu pai, também chamado Timothy. 

Tim conta que, como essa droga era comum no ambiente em que vivia, ele vendia a amigos. “Não era pelo dinheiro, pois considerava aquilo sagrado. Depois aprendi que não vale a pena fazer nada ilegal”, contou ao telefone, dizendo-se arrependido do que fez. Afirmou também que seu pai não tinha envolvimento com drogas, mas pegou o envelope para entregar a seus próprios conhecidos. 

No meio dessa história tinha Jeff, um amigo que estava cooperando com a polícia para reduzir sua própria condenação. Durante meses, ele pediu LSD a Tim e disse que não havia recebido as encomendas, possivelmente extraviadas. Foram quatro lotes de mil doses, monitorados pelas autoridades. “Eu mandei mais mil doses porque ele disse que as outras não haviam chegado. Pelo nosso acordo, foram US$ 3.000 por 5.000 doses”, lembra. “Eles não queriam apenas me prender, queriam que eu fosse condenado por muito tempo.”

Houve também as entregas remetidas ao comércio de um amigo, John, que depois se tornou informante. Para ele, mil doses. Outro conhecido chamado Frank e Timothy pai foram detidos ao buscar suas encomendas no local --500 e 2.000 doses, respectivamente. O primeiro pegou cinco anos de prisão, e o segundo, dez anos. Havia ainda mais mil doses para uma quinta pessoa, não identificada: “Nunca contei a ninguém quem era”.

Tim tornou-se procurado até ser detido na Califórnia, dias depois. Foi então enviado de avião à Flórida, onde preso aguardou seu julgamento por dois anos. Pai e filho cumpriram parte da pena juntos, mas Timothy pai morreu em abril de 2001, aos 53 anos, quando faltavam 18 meses para a liberdade.

Eu perdoo aqueles que me entregaram à polícia. Há uma música do Grateful Dead, ‘Broken Chain’, que diz: o perdão é a chave para todas as portas. Pensei que, se pudesse perdoá-los, alguém faria o mesmo por mim. E foi o que aconteceu
Timothy Tyler

A vida atrás das grades

Foi assim que o fã de Grateful Dead virou o prisioneiro #99672-012, sendo transferido algumas vezes durante o cumprimento da pena. “Saí de um ambiente de paz e amor, com os Deadheads, e fui para a penitenciária de Atlanta, considerada muito violenta. Logo nos primeiros meses, seis pessoas foram mortas por lá.”

Ele afirma que as mudanças dependiam de diversos fatores. Em um dos casos, a penitenciária onde estava fechou. Em outro, uma reportagem sobre ele na CNN garantiu a vaga em um centro de detenção na Geórgia, o melhor onde ficou: podia exercitar-se e tomar sol das 6h às 15h, além de usar computador com acesso restrito a email. 

Tim e sua mãe, Lura, durante uma visita quando ele estava preso  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Tim e sua mãe, Lura, durante uma visita quando ele estava preso
Imagem: Arquivo pessoal

Tim calcula ter passado dois anos em solitárias, dos 26 que ficou na prisão. Uma das vezes, segundo ele, foi porque um detento queria ser transferido e o acusou de extorsão, criando uma situação de conflito. “Eles deixam você lá por até 90 dias quando estão investigando algo. Dependendo de como você encara, pode ser o pior lugar do mundo. É do tamanho de um banheiro pequeno e você fica louco, sabendo que não pode sair. Quando sai, como para tomar banho três vezes por semana, será algemado com as mãos para trás”, lembra.

Em 1995, ele estava em uma dessas pequenas celas com chuveiro, mas sem ar-condicionado. Para aguentar o calor, lembra, enxaguava suas roupas e as vestia molhadas. Foi lá que recebeu a notícia da morte de Jerry Garcia, vítima de um ataque cardíaco em um centro de reabilitação. Carrie mandou ao irmão revistas que repercutiram a morte e, com elas, o detento criou em sua solitária um altar para o ídolo.

Por 20 anos, o fã de Grateful Dead não teve acesso às músicas que queria. A forma que encontrou para matar as saudades --a US$ 3 cada 15 minutos-- era usando o telefone. Do outro lado da linha, Carrie (sempre ela) colocava aquilo que ele queria escutar. “Em 2012, foi autorizado o uso de toca-MP3 e eu não podia acreditar naquilo: dava para ouvir minhas músicas na prisão. Eu levava o meu tocador para a cela e não acreditava no que eu tinha comigo”, conta.

Tim fala muito da pressão das gangues e de outros detentos --“eles podem mandar você bater em alguém, é uma mentalidade esquisita”--, mas garante que se manteve longe de problemas. O fato de ter recebido clemência (já chegaremos lá) é prova disso. Esse tipo de perdão só é concedido nos Estados Unidos a detentos sem histórico de violência, sem associação com grupos criminosos na prisão, que apresentem bom comportamento e que já tenham cumprido ao menos dez anos.

Família, esperança e handebol

Do lado de fora, Carrie tentava de tudo para que a sentença do irmão fosse revista. “Se ela tivesse de lutar pela reforma prisional como um todo, para que todos fossem soltos e eu estivesse entre deles, ela faria isso”, resume Tim. Carrie criou um abaixo-assinado, por exemplo, com o qual conseguiu 423.301 assinaturas pedindo a soltura do irmão ao presidente dos Estados Unidos. Além disso, associou-se a diversas organizações que defendem a liberdade de indivíduos nos EUA. 

O apoio da irmã e da mãe, que dizia não ter criado um filho para passar a vida atrás das grades, foi o que o fez Tim continuar. “Eu me mantinha o mais saudável e feliz possível por elas. Criei minha própria realidade e tentei viver da melhor forma possível.” Isso incluía a prática de handebol, que chegava a jogar três horas por dia.

Nunca desisti. Continuei minha vida, sabendo que algum dia, de alguma forma, alguém perceberia que aquela condenação não estava certa. A sentença que recebi não se encaixava com o crime que cometi
Timothy Tyler

Parte da esperança vinha do próprio Grateful Dead. Tim lembra que Jerry Garcia falava sobre o calendário maia, segundo o qual o ano de 2012 traria uma grande transformação. Antes disso, em 2008, a banda desfeita em 1995 se reuniu para apoiar o então candidato à Presidência Barack Obama. “Quando ganhou as eleições, achei que poderia fazer alguma coisa por mim. O Grateful Dead nunca havia apoiado um político, então era uma pessoa especial.” A manifestação de apoio não estava associada especificamente à prisão de Tim, sobre a qual os músicos nunca comentaram abertamente.

O resultado do ativismo de Carrie tornou-se concreto em 30 de agosto de 2016, quando Obama concedeu clemência a 111 detentos. Entre eles, Timothy Tyler. O comunicado dizia que ele seria solto dali a dois anos, em 30 de agosto de 2018, após internação em um centro para se reintegrar à sociedade (chamado halfway house, algo como “casa intermediária”). Tim foi transferido a um desses centros em Nevada no final de maio, onde permaneceu até ser encaminhado para a casa de sua irmã em 22 de julho. 

Timothy Tyler  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Tim e Carrie Tyler, em frente à TV onde hoje assistem aos shows do Grateful Dead
Imagem: Arquivo pessoal

Viagem de volta

A viagem da prisão na Geórgia até o centro de reintegração em Nevada foi feita de ônibus, na companhia de um primo e de um documentarista que planeja contar sua história. “Eles precisaram me ajudar, porque era tudo muito assustador: os ônibus, as estações, as pessoas. Tudo ainda é muito impressionante para mim.”

Durante uma das paradas, um Deadhead que sabia do percurso o presenteou com uma versão vegana do sorvete Ben & Jerry’s. O sabor escolhido, possivelmente não por coincidência, foi o Cherry Garcia. “É inacreditável que hoje exista esse tipo de coisa. Um sorvete vegano! Agora tem dois potes desses no freezer da minha irmã.”

Instalado no centro de reintegração, criou sua página no Facebook. Desde então, ele e seus amigos vêm postando pequenas descobertas da sua nova vida. Como o conserto de um carro, a montagem de prateleiras, o banho de piscina, a ida à sauna, o passeio no parque (onde deu comida aos gansos) e a descoberta de uma TV gigante, na casa da irmã, na qual assiste aos shows do Grateful Dead. Os antigos e também aqueles transmitidos ao vivo, na turnê Dead & Company, que os integrantes originais fazem com o músico John Mayer. “Ele está no lugar de Jerry Garcia e é muito talentoso. É aquele que namorou a Kate Perry”, explica à reportagem. 

Timothy Tyler grande - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Tim vai trabalhar com sua irmã e pretende ajudar outros detentos
Imagem: Arquivo pessoal

Nesse processo de volta, o que mais o impressionou foi a tecnologia. Quando detido, usava um pager. Hoje, consegue assistir a shows usando óculos de realidade virtual com vídeos em 360º. “Você olha em volta e nem está mais aqui, está em outro lugar. Outro mundo ou num passeio de montanha russa. Descobri isso há três dias, não podia acreditar que aquilo existia.” Ele também considera grande a transformação na oferta de comidas veganas. E vem se fartando com alimentos que não chegavam até ele: no momento, seus favoritos são alho e abacate.

Para o futuro, os planos são ajudar a irmã em seu site de comércio eletrônico e também batalhar para que mais pedidos de clemência sejam concedidos. “Aprendi minha lição e não quero estar errado nem ao atravessar a rua. Estou solto, mas não faria nada que pudesse prejudicar aqueles que esperam para conseguir sua liberdade de volta. Se eu fizer algo por eles, vai ser apenas para ajudá-los.”