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Direita à brasileira: 'Efeito Bolsonaro' será exportado a outros países da América Latina?

Em maio de 2014, Jair Bolsonaro recebe estudantes venezuelanos em Brasília - Reprodução/Facebook
Em maio de 2014, Jair Bolsonaro recebe estudantes venezuelanos em Brasília Imagem: Reprodução/Facebook

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

29/10/2018 04h00Atualizada em 29/10/2018 12h33

Com a vitória de Jair Bolsonaro (PSL), o Brasil integra oficialmente a guinada à direita vista nos últimos anos na América do Sul. Parte do crescimento mundial do conservadorismo e do populismo, o movimento pode alcançar mais países da região, dizem analistas ouvidos pelo UOL.

Mas, à diferença do que se viu na campanha aqui, é pouco provável que candidatos nas nações vizinhas incorporem o discurso radical que caracteriza a "direita à brasileira" promovida por Bolsonaro, afirmam os estudiosos.

Até o momento, a vitória de um discurso de extrema-direita é restrita ao Brasil. Bolsonaro é produto de um forte rechaço ao PT e ao sistema político atual

Carlos Malamud, historiador argentino e pesquisador principal do Real Instituto Elcano, na Espanha

Para os especialistas em política latino-americana, a onda conservadora no Brasil tem raízes no descontentamento contra o sistema político que, para muitos, perdeu representatividade e só age em benefício próprio --algo visto, em maior ou menor intensidade, nos países vizinhos. Esse efeito poderá ser sentido em 2019, com Argentina, Bolívia e Uruguai indo às urnas.

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"Se ele fosse basicamente um conservador, seria algo comum no continente nos últimos anos", diz Paulo Velasco, cientista político da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), se referindo ao chileno Sebastián Piñera e ao colombiano Iván Duque, eleitos neste ano.

Mas, apesar das agendas econômicas similares, o tom dos discursos vistos aqui deve ter pouca acolhida entre os vizinhos.

Legenda: "TV na Argentina fala em 'efeito Bolsonaro'" - Reprodução/Telefe - Reprodução/Telefe
Na Argentina, jornais e TVs já falam em "efeito Bolsonaro"
Imagem: Reprodução/Telefe

"Mauricio Macri [presidente argentino] e Piñera respeitam o sistema democrático, e nenhum deles disse, nem mesmo em campanha, as coisas que Bolsonaro tem falado contra homossexualidade, porte livre de armas, contra a ONU ou duvidando da mudança climática. No Chile e na Argentina, defender coisas tão extremas resultaria em perda de apoio, e não na possibilidade de ganhar uma eleição", diz o historiador Malamud.

O cientista político uruguaio Francisco Panizza, da LSE (London School of Economics), concorda. "É normal que os governos mudem da centro-esquerda para a centro-direita e vice-versa, mas Bolsonaro representa uma extrema-direita, por sua defesa da tortura, de execuções extrajudiciais, misoginia e outras posições incompatíveis com o imaginário democrático", afirma.

Isso porque, nas outras nações do Cone Sul, houve um trabalho "mais competente em termos de memória histórica e repele-se muito fortemente a era da ditadura militar. Um candidato com o discurso de Bolsonaro, de louvar os torturadores, dizer que não houve ditadura, não teria espaço na Argentina, no Chile ou no Uruguai", acrescenta Velasco, da Uerj.

A repercussão negativa desse tipo de discurso pode impor empecilhos na integração com os demais líderes.

14.abr.2018 - Os presidentes da Argentina, Mauricio Macri, Peru, Martin Vizcarra, o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, o premiê das Bahamas, Hubert Minnis, o presidente brasileiro Michel Temer, e o chileno Sebastián Piñera, posam durante a Cúpula das Américas, em Lima; ao fundo, o vice-presidente dos EUA, Mike Pence (Donald Trump não participou do evento) - Cris Bouroncle/AFP - Cris Bouroncle/AFP
Onda conservadora: a partir da esq., Macri, da Argentina, o peruano Martin Vizcarra, o brasileiro Michel Temer (penúltimo) e o chileno Sebastián Piñera (à dir.). Ao fundo, o vice-presidente dos EUA, Mike Pence (de cabelos grisalhos) --Trump não participou
Imagem: Cris Bouroncle/AFP

"Para os governos democráticos de centro-direita, como Macri na Argentina e Piñera no Chile, existe o dilema de não se identificar com um presidente de extrema-direita com o qual eles estão interessados em manter boas relações, principalmente comerciais", diz o pesquisador uruguaio.

Onde há espaço para esse discurso

Apesar das diferenças, avalia-se a expectativa de que o discurso de Bolsonaro se espalhe pela região.

"Talvez na Guatemala ou em El Salvador, em que a insegurança e a violência são problema sério, haja espaço para um discurso linha dura. Mas, no restante dos países, não vejo como", diz Malamud. 

Mas a avaliação não é consensual, e nos países vizinhos já há "preocupação", nas palavras de Velasco, da Uerj.

"Pode abrir portas para movimentos similares no entorno. Na Argentina, por exemplo, insatisfeita com o governo Macri, poderia surgir alguém que se apresente como 'salvador da pátria' e abrace uma agenda incomum na América Latina, a da extrema-direita, hoje muito comum na Europa", diz.

Para o historiador argentino Malamud, o potencial de exportação dependerá do êxito econômico do novo governo no Brasil.

"O impacto da vitória de Bolsonaro na região vai depender muito da gestão dele. Se ele vai se transformar numa anedota ou em um modelo a ser exportado", diz.

04.mai.2006 - Os presidentes Néstor Kirchner, da Argentina, Evo Morales, da Bolívia, Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil e Hugo Chávez, da Venezuela - Anotnio Scorza/AFP - Anotnio Scorza/AFP
O fim da guinada à esquerda: os presidentes Néstor Kirchner, da Argentina, Evo Morales, da Bolívia, Lula, do Brasil, e Hugo Chávez, da Venezuela, em maio de 2006
Imagem: Anotnio Scorza/AFP

Análise: Brasil perde capacidade de liderar a América Latina

Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, em Washington, e especialista em política externa latino-americana, afirma que, com Bolsonaro, o Brasil perderá poder de influência.

"De direita ou esquerda, líderes extremistas deixaram os países piores. Será um longo caminho a partir do papel que o Brasil, com FHC ou Lula no comando, poderia desempenhar na América do Sul ou no hemisfério. O status do Brasil também cairá com um presidente que não respeita a democracia e os direitos humanos", afirma Hakim.

Em seu programa de governo, Bolsonaro destaca uma página às relações internacionais no qual propõe "aprofundar nossa integração com todos os irmãos latino-americanos que estejam livres de ditaduras". 

"Sabe-se lá o que ele entende por este conceito de ditadura... Abalaria o diálogo com a Bolívia de Evo Morales, eventualmente com o Equador? Isso escaparia um pouco do perfil brasileiro na região, que sempre foi tolerante", diz Velasco.

Ex-presidente do Uruguai, Jose Mujica, visita Lula na sede da PF em Curitiba - Reprodução/Lula.com.br - Reprodução/Lula.com.br
Ex-presidente do Uruguai, Jose Mujica visita Lula na sede da PF em Curitiba
Imagem: Reprodução/Lula.com.br

Após a confirmação da vitória, Bolsonaro recebeu felicitações do presidente da Argentina, Maurício Macri, que defendeu a continuidade do trabalho entre as duas nações. Sebastian Piñera, presidente chileno, convidou Bolsonaro para ir ao Chile. Empossado recentemente, o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, parabenizou o povo brasileiro e o candidato eleito pelas eleições de hoje. Enrique Peña Nieto, presidente do México que deixará o cargo em dezembro, elogiou o processo eleitoral que culminou na vitória de Bolsonaro.

O presidente da Bolívia, Evo Morales, saudou "o povo irmão do Brasil por sua participação democrática no segundo turno das eleições" e disse "reconhecer" a vitória de Bolsonaro. "Bolívia e Brasil são povos irmãos com laços profundos de integração", acrescentou.

Esquerda perde espaço

Ao avaliar os prognósticos para as próximas eleições na região, Peter Hakim diz que "Argentina e Uruguai têm um histórico notável de independência política do Brasil".

"O Uruguai deve ter um governo moderado. O país tem desafios econômicos e outros problemas sérios, mas com o tempo tem se mostrado uma nação de sucesso. Seja de esquerda, centro ou direita, os governos do Uruguai governaram democraticamente, conseguiram manter um sólido registro de crescimento e manter o crime e a violência sob controle", diz Hakim.

Para o uruguaio Panizza, da LSE, o maior impacto no Uruguai é a derrota do PT. "Contribui para a narrativa de que o ciclo de centro-esquerda na região está chegando ao fim", afirma.

Na Argentina, a imprevisibilidade política e econômica desperta preocupações. "É um país que muda muito rapidamente. Parece que a centro-direita de Macri será desafiada por Cristina Kichner e talvez um outro peronista. Mas, se Macri, com ajuda do FMI [Fundo Monetário Internacional], puder demonstrar um ritmo razoável de recuperação econômica, no controle da inflação, na desvalorização do peso e nos déficits fiscais, ele tem boas chances de um segundo mandato", analisa Hakim.

"É difícil imaginar um candidato de extrema-direita na Argentina. Até poderia, eventualmente, surgir um candidato que não se vincule nem ao peronismo ou ao kirchnerismo, uma terceira alternativa, com discurso talvez próximo de Bolsonaro de rompimento da elite política", diz o professor Velasco

Mauricio Macri e Sebastián Piñera em Buenos Aires - Marcos Brindicci/Reuters - Marcos Brindicci/Reuters
Afinidade: Bolsonaro quer formar "bloco liberal" na América Latina, com Piñera e Macri
Imagem: Marcos Brindicci/Reuters

Na Bolívia, Evo Morales, no poder desde 2006, buscará o quarto mandato consecutivo. Ele deve enfrentar o ex-presidente Carlos Mesa, que como comandou o país entre 2003 e 2005.

Fronteira com a Venezuela na mira de Bolsonaro

Peter Hakim destaca ainda que Bolsonaro aproveitou habilmente o colapso da Venezuela para criar medo entre os brasileiros com relação a governos de esquerda.

"O abrupto declínio econômico do Brasil durante o governo de Dilma Rousseff (PT) foi suficiente para tornar esse aviso crível para os brasileiros comuns --muitos dos quais temem que o Brasil possa repetir o trágico curso da Venezuela", disse Hakim.

24.ago.18 - Fronteira de Pacaraima, entre Brasil e Venezuela, local da chegada massiva de refugiados venezuelanos em Roraima - Joan Royo/UOL - Joan Royo/UOL
Fronteira de Pacaraima, entre Brasil e Venezuela, local da chegada massiva de refugiados venezuelanos
Imagem: Joan Royo/UOL

"A primeira questão é se Bolsonaro começará a impedir que venezuelanos entrem. Seria consistente com a retórica nacionalista e sua admiração por Trump. Apesar de provavelmente enfrentar alguma resistência política e condenação dentro e fora do Brasil, pode ganhar apoio se o fluxo for grande o suficiente e ampliar os confrontos entre venezuelanos e brasileiros", avalia o presidente do Inter-American Dialogue.

"Não me surpreenderia se Bolsonaro adotasse, nos primeiros momentos do seu governo, alguma medida relacionada à fronteira em Roraima. O fechamento pode ser feito desde que seja justificado de alguma maneira", diz Paulo Velasco, da Uerj. 

Após o resultado da eleição, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro enviou "sinceras felicitações" à população brasileira pelas eleições deste ano, mas evitou parabenizar o capitão da reserva pela vitória. "O governo bolivariano aproveita a ocasião para exortar o novo presidente eleito do Brasil a retomar, como países vizinhos, o caminho das relações democráticas de respeito, harmonia, progresso e integração regional, pelo bem-estar de nossos povos", diz uma nota publicada pelo ministro das Relações Exteriores do país, Jorge Arreaza.

(Com agências internacionais)

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