Após esposa morrer no parto, haitiano cuida de gêmeas e quer reunir família
O sorridente haitiano Jonhy Alorient, 27, aparece na imagem do celular, meio sem jeito, durante a entrevista remota ao UOL, no quarto da casa onde vive em Toledo, no interior do Paraná.
Há motivos para se alegrar: as duas filhas gêmeas, Samya e Samantha, nascidas aos oito meses, estão saudáveis. Com três semanas de vida, vestem macacão e um delicado adereço de cabeça, enquanto dormem uma de frente para a outra.
Mas não tem sido fácil. No dia 21 de julho, quando a vida em dose dupla surgiu na maternidade do Hospital Bom Jesus, o auxiliar de produção viveu uma dor sobre a qual, segundo ele, ainda é muito difícil falar.
Econômico nas palavras por causa do idioma —ele fala crioulo e um pouco de francês—, Jonhy se emociona ao contar que, por volta das 9h daquela quarta-feira, quando ganhou as duas filhas, perdeu Evena, 26, sua companheira por 14 anos.
Eu não consigo entender o que aconteceu. Todos os dias em que fomos ao hospital, tudo parecia bem, mas no final aconteceu isso. Nunca vou entender. Minha vida hoje são minhas filhas.
Jonhy Alorient, refugiado viúvo e pai de gêmeas
Com quadro de hipertensão, Evena teve uma gravidez considerada tranquila, cumpriu todas as fases do pré-natal, recebendo acolhimento e afeto no SUS (Sistema Único de Saúde) da cidade. Contudo, uma inesperada parada cardíaca durante o parto, logo após a anestesia, separou para sempre o casal.
Jonhy é um dos milhares de pessoas que deixaram o Haiti e migraram para outros países, entre eles o Brasil, em busca de melhores condições de vida. Em 2004, o então presidente Jean-Bertrand Aristide sofreu um golpe de Estado, jogando o país em uma crise política e econômica, que construiria, ao longo de décadas, o cenário de calamidade humanitária.
Segundo dados da Acnur (Agência da ONU para Refugiados), no ano passado, 28.899 estrangeiros pediram refúgio no Brasil. Destes, 6.613 vieram do Haiti. Jonhy está entre os mais de 3.000 haitianos entre 25 e 39 anos, maior faixa etária nessa condição.
Viver no Haiti não é vida para ninguém. É muito difícil. Tem fome, tem doença, não tem trabalho.
Jonhy Alorient, refugiado viúvo e pai de gêmeas
Assim ele tenta explicar, com bastante sotaque, algumas das motivações que o fizeram abandonar seu país. Não só sua terra natal. Entre o final de 2017 e o início de 2018, Jonhy deixou as três filhas, de 13, 8 e 5 anos, com Evena e migrou para o Chile, onde passou quatro meses. Por lá, as coisas não deram muito certo.
"Foi complicado conseguir trabalho. A dificuldade com a língua acaba sendo um obstáculo", relatou.
Sem se recordar da data exata, conta que chegou ao Brasil "mais ou menos em março" de 2018 e foi para o Paraná. Foi parar em Toledo, cidade de pouco mais de 142 mil habitantes e distante 150 km de Foz do Iguaçu. Conseguiu o emprego de auxiliar de produção em uma empresa de recicláveis, onde trabalha registrado até hoje.
Casal se descobre 'duplamente grávido'
No final do ano passado, após poupar seu salário por um bom tempo, conseguiu trazer Evena para o país. Pouco mais de um mês depois, o casal descobriu que estava esperando um filho. O seguinte exame de ultrassom mostraria que eram dois bebês.
"Gastei uns R$ 8.000, R$ 9.000 no total para conseguir trazer minha esposa", revela. Os valores para sair de um país em situação crítica variam e, muitas vezes, podem estar submetidos a esquemas de coiotes, corrupção e até exploração do desespero.
Em Toledo, ele conseguiu algo mais que o emprego. Uma mão estendida a ele e a suas pequenas neste momento difícil: a fundadora e presidente da Embaixada Solidária, Edna Nunes da Silva, 36.
Criada há cinco anos, a entidade trabalha voluntariamente com imigrantes e refugiados. "A maioria são haitianos e africanos. Queremos ser o abraço para quem chega, criar vínculo, dizer: 'Olha, você não está sozinho'. Aqui a gente assume o papel do poder público que está ausente", explica.
Segundo Edna, Toledo é bastante procurada por imigrantes, mas pouco tem a ver com o fato de estar perto da fronteira com o Paraguai. Tem mais a ver com oportunidades de trabalho.
"O frigorífico BRF, um gigante do setor, absorve muito esse tipo de mão de obra 'chão de fábrica', porque não precisa nem saber falar português. Além disso, tem a [questão da] qualidade de vida, cidade pequena, custo de vida menor", afirma.
É na casa de Edna que Jonhy está vivendo com as duas filhas, enquanto tenta driblar a tristeza e passar o mais rápido possível pelo luto.
No dia em que Evena morreu, a equipe médica ligou para Edna dar a notícia. "Foi muito triste. Eu me lembro dele com as mãos na cabeça, abraçando uma outra voluntária. Eu disse: 'Não consigo tirar essa dor que você está sentindo, mas você e as bebês vão morar na minha casa e a gente vai passar por isso juntos'", conta.
'Vi um herói nascer'
A amizade da família com Edna veio quando Evena engravidou. A primeira coisa foi organizar o enxoval. "Mobilizamos muita gente. Até o último momento, uma das bebês não dava para visualizar com 100% de certeza se era menina ou menino", lembra.
No quarto onde Jonhy está montando seu lar é possível ver o resultado da campanha de doações: uma prateleira repleta de fraldas. "Expliquei para ele que vai usar muito!", brinca Edna.
Estava muito preocupada com a situação. Uma pessoa, fora de seu país, perde a mulher de forma trágica e fica com duas vidas. Mas vi um herói nascer. O amor dele e a maneira como ele é guerreiro são, para mim, grandes lições.
Edna Nunes da Silva, fundadora da Embaixada Solidária
Afastado pela licença-paternidade por 120 dias, Jonhy só vai voltar ao trabalho em novembro. Enquanto isso, vive em função das filhas. "Elas querem mamar, eu já vou preparar o leite. Aí faz cocô, xixi, eu troco. Passo as roupinhas, organizo tudo. Coloco para ninar e só aí descanso. Mas logo tudo começa de novo", ri.
Não esqueço dela [Evena] nenhum dia. É difícil, mas eu preciso seguir em frente. Tenho duas filhas para cuidar.
Jonhy Alorient, refugiado viúvo e pai de gêmeas
Projeto cria vínculo familiar com estrangeiros
Não foi a primeira vez que Edna acolheu um estrangeiro. Conta que o acolhimento dentro da própria casa é feito também por outros voluntários da Embaixada.
"A nossa ideia é construir esse vínculo, trazer para o eixo familiar, sentar à mesa com essas pessoas. A bandeira da Embaixada é de paz entre os povos. [Aqui em casa] Já teve venezuelano, africano. Mas nessa condição peculiar foi a primeira vez", diz.
A voluntária conta que, diariamente, fazia o trajeto Toledo-Cascavel. Conheceu uma haitiana que ia fazer bicos na cidade e, algumas vezes, lhe deu carona. "Uma vez, na rodoviária, ela me contou, chorando, que tinha ido trançar o cabelo de uma pessoa que não apareceu. Ia voltar sem dinheiro para a casa e estava desesperada por causa do filho", diz. Mãe de Daniel, 6, Edna sugeriu doar uma quantia em dinheiro à moça.
"Ela disse que só aceitaria se eu deixasse ela trançar meu cabelo. Eu achei tão digno", conta.
Depois Edna descobriu que a nova amiga acolhia três outras mulheres estrangeiras em sua casa. Todas grávidas. "Eu saí de lá me achando a pior pessoa do mundo e decidi que eu tinha que fazer alguma coisa."
Assim, nasceu a Embaixada Solidária, que tem hoje na linha de frente entre 15 e 20 voluntários. Atualmente, a entidade atende aproximadamente 2.300 haitianos, cerca de 300 africanos e pessoas de outras nacionalidades.
Por enquanto, depende de doações. Como a que está sendo mobilizada para Jonhy conseguir trazer para o Brasil as três filhas e a irmã. Para isso, serão necessários de R$ 45 mil a R$ 47 mil. Edna tem ajudado. Já Jonhy afirma buscar fortalecer sua fé, dia após dia, para reconstruir sua família.
Como contatar a Embaixada Solidária
Instagram: https://www.instagram.com/embaixadasolidaria.toledo/
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