Censura, segurança, homofobia: brasileiros contam como é a vida na Hungria
Laila Nery
Colaboração para o UOL, em São Paulo
29/03/2024 04h00
Brasileiros que vivem em Budapeste relatam que o avanço da extrema direita na Hungria foi marcado por censura, políticas anti-imigração, perseguição à comunidade LGBTQIA+ e contraste entre o interior, fortemente conservador, e a capital, mais liberal. Por outro lado, eles elogiam a segurança pública e a hospitalidade locais. Para eles, o primeiro-ministro, Viktor Orbán, adotou o radicalismo como tática para abafar casos de corrupção em seu governo.
O que aconteceu
Foi a embaixada húngara no Brasil que recebeu o ex-presidente Jair Bolsonaro após operação da PF. O ex-presidente é aliado de Orbán, a quem considera "praticamente um irmão". Apesar do papel insignificante da Hungria no cenário internacional, Brasília colocou Budapeste na rota de ministros do antigo governo brasileiro.
Há 14 anos no poder, Orbán é o chefe de governo há mais tempo em exercício na União Europeia, desde 2010. Ele é considerado referência por bolsonaristas, pela forma como controlou Judiciário, Parlamento e imprensa e pelo seu cerco à sociedade civil.
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"Orbán foi avançando aos poucos e conseguiu dominar tudo", diz o brasileiro Guilherme Cintra, que mora em Budapeste há dez anos. "Avançou inclusive para tirar a atenção da corrupção e dos desvios de verba." Doutor em ciência política, ele se mudou para o país após se casar com uma húngara e conseguir uma bolsa de doutorado. Agora, está de mudança definitiva para o Brasil.
Ser um brasileiro que vive na Hungria é mais fácil quando se é branco, hétero, com uma família em teoria cristã. Eu estava estudando, e os húngaros entenderam que não fui competir com eles por trabalho. Consegui a cidadania, dominei a língua, me casei, tive uma filha. Naquela época, mais gente saía do país do que imigrantes chegavam, então as pessoas tinham muita curiosidade por eu ser um brasileiro lá. Não é tão comum.
Guilherme Cintra, doutor em ciência política
O trabalho do diretor de cinema Sousa Haz, também há dez anos na capital, já foi afetado pela censura. O brasileiro com cidadania espanhola conta que um canal de TV voltou atrás no acordo de apresentar um videoclipe de uma banda de rock.
O diretor do programa percebeu que o clipe fazia uma crítica ao governo. Preferiu se blindar e optou por proibir a reprodução na emissora, pois sabia que aquela exibição iria custar o seu emprego.
Sousa Haz, diretor de cinema
Apesar disso, Haz diz que a capital húngara é uma das cidades europeias mais receptivas onde ele já morou. "Cheguei aqui em um dia de manifestação da extrema-direita. Conversei com alguns manifestantes e eles eram surpreendentemente legais", afirma. Ele também elogia a segurança pública na cidade.
Me sinto seguro aqui. A violência não é uma questão, nunca vi algo do tipo. Ninguém foi preconceituoso comigo nestes dez anos, nunca tive dificuldades para burocracias, por exemplo, sempre aluguei apartamentos com facilidade. Quando falo que sou brasileiro os sorrisos se abrem.
Sousa Haz, diretor de cinema
O engenheiro Rodrigo Donato, 38, também destaca a segurança na Hungria. Ele e a mulher, também brasileira, moram há quase três anos em Budapeste.
A capital é uma exceção. É um dos poucos colégios eleitorais que não são dominados pela extrema-direita. Temos muitas universidades, uma comunidade internacional maior, multinacionais. É uma cidade mais tranquila para imigrantes.
Rodrigo Donato, engenheiro
Mas o tratamento que o imigrante recebe depende da sua raça e do seu gênero, diz o brasileiro. "Minha esposa é uma mulher negra, e a experiência dela e de outras mulheres negras é bem diferente da minha. Existem relatos de perseguição no supermercado por seguranças e muita aspereza nos serviços públicos, principalmente para quem não sabe falar húngaro."
A vida também é bem mais difícil para quem é LGBTQIA+, visto que o governo adota políticas contra os direitos dessa população. Rodrigo conta que amigos frequentemente saem do país pela falta de acolhimento e por rejeição dos familiares. "Dois amigos decidiram mudar de país pela pressão familiar, por serem gays. Mesmo que não exista uma repressão violenta, as pessoas não se sentem acolhidas. É complicado", diz.
Em uma Copa do Mundo, a seleção da Alemanha jogou aqui usando uma braçadeira com o arco-íris, em apoio ao movimento LGBTQIA+. Um amigo muito próximo me surpreendeu comentando que os jogadores deveriam manifestar esse apoio na Alemanha, mas não na Hungria.
Rodrigo Donato, engenheiro
A presença de uma comunidade internacional e de universidades em Budapeste ajuda a explicar o contraste com o interior. Boa parte da população da Hungria não domina outros idiomas e não consegue consumir notícias de outros países. Os meios de comunicação de massa passam pelo crivo do Estado, ou seja, a veiculação de notícias, dentro da Hungria, também é dominadas por Orbán. A percepção de Guilherme, porém, é de que existe reação às políticas de Orbán.
Na vida cotidiana em Budapeste, a pauta anti-gay não fez muito efeito. Acho que as pessoas estão até saindo mais do armário, se sentem motivadas a se posicionar contra essas leis. Ele mexeu num vespeiro.
Guilherme Cintra, doutor em ciência política
Para ele, as novas gerações apoiam os LGBTQIA+ e defendem direitos individuais. Mas os mais velhos, diz, têm muita dificuldade para compreender pautas liberais
Os brasileiros afirmam que as pautas conservadoras são uma cortina de fumaça para esconder escândalos de corrupção. Eles também destacam a religiosidade da Hungria, onde o catolicismo mais ortodoxo é forte, principalmente fora da capital. Sousa Haz acredita que a estratégia populista de Orbán para angariar votos da população conservadora não deve se manter por muito tempo. "Budapeste é anti-Orbán", diz.
Milhares de húngaros pediram a renúncia de Orbán na quarta-feira. Eles foram às ruas em Budapeste para protestar contra o governo, abalado por escândalos de corrupção e acusações de interferência no Judiciário.
Para especialista, Orbán usa o medo do novo para dominar a população. "Algumas dessas pautas conservadoras, Orbán só adotou há pouco tempo, quando se aliou à coalizão de lideranças da extrema-direita mundial —que agora está cada vez mais articulada", diz Julia Almeida, especialista em extrema-direita pela USP (Universidade de São Paulo).
No século 20, o país foi muito disputado por fascismo e comunismo. Durante a Guerra Fria, políticas de ódio encontraram ali um terreno fértil. Por isso, o país é tão conservador. Extremamente patriarcal, a Hungria não debate pautas de gênero, raça e sexuais. A masculinidade e o estereótipo de homem forte fazem parte da construção histórica. Esse tempo de disputa durante a Guerra Fria também faz da Hungria um país que demorou para se abrir para o liberalismo.
Julia Almeida, da USP