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Depoimento: Como é meu cotidiano vivendo diante do medo do terrorismo

Pessoas rezam em torno de memorial improvisado para homenagear as vítimas do ataque com caminhão na cidade francesa de Nice - Valery Hache/ AFP
Pessoas rezam em torno de memorial improvisado para homenagear as vítimas do ataque com caminhão na cidade francesa de Nice Imagem: Valery Hache/ AFP

Ullrich Fichtner

Em Paris (França)

29/07/2016 06h00

Quando o medo do terrorismo se infiltra na vida cotidiana, isso muda a pessoa. Assim que a sensação de segurança é perdida, o improvável de repente parece possível, e é assim que o terrorismo funciona. Ele depende das pessoas perderem de vista as probabilidades.

Em 16 de novembro de 2015, meu filho e eu nos tornamos símbolos anônimos de como a vida continua apesar de tudo. Era uma segunda-feira, três dias após os ataques terroristas em Paris, com 130 mortos em cafés de rua e na casa de espetáculos Bataclan. Em frente à nossa escola no centro de Paris, não distante do cenário dos ataques, uma equipe de cinegrafistas chegou na Noruega ou da Austrália, não consigo mais me recordar de onde.

Eles filmaram os pais chegando com seus filhos e por acaso estávamos entre eles. Na ocasião, imaginei como seríamos retratados no noticiário noturno de que país fosse como parisienses arquetípicos, pessoas em crise. Eu imaginei os repórteres falando sobre uma "calma tensa", ou mesmo "vidas cotidianas de medo". Com frequência me pergunto qual seria uma descrição precisa de nossa condição naquele momento.

De novo neste mês, na noite de 14 de julho, eu me vi em uma cobertura parisiense com amigos franceses diante de uma vista grandiosa da Torre Eiffel próxima. Os fogos do Dia da Bastilha podiam ser vistos ao fundo, a cidade estava brilhando por toda a parte de uma forma que apenas Paris consegue. Nós ríamos, bebíamos, tirávamos fotos borradas. Mas então os celulares começaram a tocar com os primeiros alertas das notícias que chegavam de Nice. Logo estávamos sentados em silêncio diante de um televisor assistindo a contagem de corpos aumentar incessantemente. Naquela noite em particular, ela parou em 84.

Franceses prestam um minuto de silêncio às vítimas de Nice

AFP

O efeito do terrorismo

Agora sou forçado a contemplar o que números como esses, noites como essas e essas impressões causam em uma pessoa. Paris e a França se transformaram em meu lar adotivo desde 2003. Eu me recordo muito bem de quão bobos os repórteres da "CNN" pareciam em 2005, em seus coletes à prova de balas, enquanto cobriam os distúrbios nos subúrbios de Paris e descreviam grandes partes do centro de Paris como zonas proibidas em condições como as de uma guerra.

Como repórter que já esteve nessas zonas no Iraque e no Afeganistão, posso assegurar que não há comparação ao nosso mundo asseado aqui na Europa Ocidental. Apesar disso, uma sensação se infiltrou na França durante o ano passado, uma que só conhecia por meu trabalho em zonas de guerra.

Medo não é a palavra certa para isso. Uma expectativa ominosa, uma ameaça constante ou algo assim também seriam um exagero. Mas os terroristas foram bem-sucedidos em ancorar em nossas mentes a ideia difusa de que coisas terríveis sempre são possíveis. Eles adicionaram uma camada de risco desconfortável, imprevisível, à vida de uma sociedade que não é tão arriscada como costumamos pensar.

Isso ficou aparente mais recentemente enquanto o circo da Eurocopa de futebol cruzava a França, completo com grandes aglomerações, zonas de torcedores e festas de rua. O tempo todo, foliões e torcedores mantinham no fundo de suas mentes um pequeno pensamento persistente: e se?

Isso é o que o terrorismo propriamente dosado e perfeitamente planejado consegue: ele desnatura a vida cotidiana. Ele não a destrói completamente, mas a sobrecarrega com uma preocupação sutil e constante com nossos filhos, parceiros e amigos.

Ele destrói a despreocupação que sempre foi o sentimento predominante em nossa sociedade civil pacífica. Tudo o que fazemos agora exige um pouco mais de energia do que antes; as vidas que antes tínhamos como certas agora são uma série de decisões conscientes e avaliações de risco. Também exige mais energia para permanecermos civilizados, perseverar, fazer amigos e afastar nossas tristezas.

Desafiando a ameaça

Por esse ponto de vista, os franceses merecem nossa admiração. Desde o ataque ao jornal satírico "Charlie Hebdo" em janeiro de 2015, uma enorme onda de violência organizada varreu o país deles e não parece que recuará tão cedo. Mas em vez de se entocarem, ou de mudarem seus hábitos, esta sociedade sitiada em grande parte continuou vivendo como antes.

Celebrações e festivais são realizados e os restaurantes e cafés de rua estão lotados. Nenhum dos ataques até agora (além dos grandes, há também múltiplos ataques menores) incitou nem mesmo uma pequena dose da histeria que tomou a Alemanha após a notória violência do Ano Novo em Colônia.

Na França, você não encontrará os tipos de protesto ou amplo apoio a organizações que se opõem à suposta "Islamização do Ocidente", como visto na Alemanha com o (movimento islamofóbico) Pegida ou o partido Alternativa para a Alemanha. Não há caça a bichos-papões e até o momento poucos chegaram ao ponto de suspeitar que todo muçulmano é um radical islâmico em potencial.

Por mais paradoxal que possa soar, minha impressão é de que os ataques terroristas acalmaram essas tendências, ao menos por ora. No seu âmago, os populistas de extrema direita e os partidos e grupos extremistas sob o rótulo da Frente Nacional permanecem tão xenofóbicos como sempre, mas no momento parecem temerosos em explorar a violência em benefício próprio.

Sim, depois de Nice surgiram os primeiros sinais de uma feia retórica de campanha em relação ao terrorismo, mas o sentimento predominante parece ser o de que os políticos se sairão melhor na promoção da unidade nacional.

"Uma verdadeira carnificina": sobreviventes relembram ataque em Nice

New York Times

Impotência

Mais abaixo, temos que nos perguntar qual efeito esses eventos estão tendo sobre nossos filhos. Tenho observado com que frequência meus filhos fingem ser policiais antiterror, algo que pode ter uma importância profunda ou não significar nada. A brincadeira deles fez com que me recordasse de meu próprio entusiasmo na juventude, quando as famosas forças especiais alemãs tomaram o avião sequestrado da Lufthansa nos anos 70, em Mogadício.

Fora isso, como pais, sempre tentamos estar preparados para ouvir. Se as crianças querem conversar, nós conversamos. Há uma pergunta que elas fazem repetidas vezes: por que ninguém está fazendo nada contra o Estado Islâmico? Por que podem travar uma guerra contra nós, mas não podemos fazer o mesmo contra eles?

Eu então respondo devidamente que a França está travando guerra na Síria, assim como os Estados Unidos e a Rússia, mas que tudo é muito complicado. Não sou totalmente convencido por minhas respostas.

Ultimamente, percebi uma impotência em mim mesmo com a qual não estou acostumado. Também temo que a proximidade do terror está mudando minha atitude em relação ao mundo, que parte da racionalidade está se perdendo e que meu pensamento está se misturando com raiva.

Por ora, fico muito mais agitado em torno dos fracassos políticos. Diante da situação atual, fico extremamente frustrado com o fato de a troca de dados policiais na Europa ainda não estar funcionando. Também fico furioso por ninguém estar falando sobre as condições e estrutura organizacional interna de nossas prisões, que se transformaram em escolas vocacionais do terror islâmico.

E às vezes me faço as mesmas perguntas que meus filhos me fazem: estamos realmente fazendo o suficiente? Ou estamos fracassando como geração? A situação na Síria e ao seu redor, com o Estado Islâmico e o açougueiro Assad, exige um tipo totalmente diferente de intervenção militar?

Eu perdi meu senso de segurança e de alguma forma isso me deixa mais manso. Por ora, os cálculos inteligentes de probabilidade me ajudam, aqueles que lhe dizem que você tem uma probabilidade maior de se ferir andando de bicicleta, correndo ou cortando lenha do que por um ataque terrorista. Com certeza isso é verdade, mas não ajuda as vítimas em Paris, Nice, Istambul, Bagdá, Cabul, Bruxelas, Madri, Londres ou Wurzburg, e não ajuda aqueles entre nós que precisam viver constantemente nossas vidas neste mundo frágil.

Não ajuda o fato de a probabilidade de perder seu filho, mãe ou marido, ou vê-los feridos em um ataque, ser baixo. O terrorismo depende de perdermos de vista essas probabilidades e, em vez disso, acreditarmos que o insuportável pode recair sobre nós, por mais improvável que seja.