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"Foi a 1ª vez que chorei": o médico que separou siamesas sabendo que uma ia morrer

Allan Goldstein (esq.) e Brian Cummings discutem estratégia usando um modelo de gêmeos ligados pela estrutura óssea - Stephanie Mitchell/Harvard University
Allan Goldstein (esq.) e Brian Cummings discutem estratégia usando um modelo de gêmeos ligados pela estrutura óssea Imagem: Stephanie Mitchell/Harvard University

29/01/2018 12h02

Quando o cirurgião pediátrico Allan Goldstein entrou na sala de operação para separar gêmeas siamesas, ele o fez com o conhecimento de que uma teria que morrer para que a outra pudesse ser salva. Ele recorda dos enormes desafios cirúrgicos e éticos.

Allan Goldstein, 50 anos, é o cirurgião chefe do Hospital Infantil do Massachusetts General Hospital, em Boston. Após realizar uma operação para separar gêmeas siamesas, sua filha de 14 anos perguntou: "Você violou seu juramento de Hipócrates?" Ele teve que admitir que não sabia a resposta para a pergunta. O procedimento altamente complexo para separação das gêmeas siamesas de 22 meses foi tema de um longo artigo no ano passado na "New England Journal of Medicine". Goldstein também compartilhou com "Der Spiegel" seu relato pessoal sobre os desafios cirúrgicos e éticos envolvidos.

Foi a primeira vez que chorei em uma sala de operação. Eu confrontei a morte de uma forma que raramente experimentamos em uma cirurgia pediátrica.

Durante a operação eu tive que tomar uma decisão muito difícil, talvez a mais difícil da minha carreira como médico. Sou muito grato por ter recebido apoio ético enquanto lidava com este caso que era medicamente fascinante, tecnicamente desafiador, mas também muito doloroso para mim.

Tudo começou com um e-mail da África. O agente de uma fundação me contatou perguntando se poderíamos ajudar as gêmeas siamesas das quais ele estava cuidando. Ele também enviou fotos. Elas mostravam duas meninas de um ano e meio ligadas pouco abaixo das costelas. Elas tinham duas cabeças, quatro braços, uma barriga, uma pélvis e três pernas.

Elas nasceram em um vilarejo no Leste da África. Não citarei o país, pois isso poderia colocar a família em risco. As pessoas ali consideram bebês anormais como essas gêmeas como sendo uma monstruosidade, um sinal do demônio. Os pais sofreram ostracismo, pedras eram atiradas neles e agora, após a cirurgia, eles temem por suas vidas, com razão, temo dizer.

Nós analisamos cuidadosamente as fotos, nos perguntando se poderíamos separar as duas crianças. Não parecia para mim um caso sem solução. Apenas posteriormente descobri que 20 outras clínicas nos Estados Unidos tinham rejeitado o caso. Provavelmente foi melhor que eu não soubesse.

É claro, já li a respeito de gêmeos siameses na literatura médica. Mas nunca tinha realizado pessoalmente uma cirurgia de separação. Para um cirurgião, tal operação significa um desafio enorme e muito fascinante. Todo caso é único, e toda intervenção precisa ser planejada e preparada de forma diferente.

Fora as fotos, tínhamos apenas uma tomografia computadorizada rudimentar e um relatório por escrito. Posteriormente, revelou ser de importância particular o fato de ninguém ter examinado os dois corações mais atentamente. Eu não sabia o que teríamos feito se soubéssemos quão fraco uma delas era. Talvez não teríamos aceitado o caso. Sem ter mais informações, concordamos em ajudar.

Então a família tomou um voo para Boston. Do aeroporto eles me enviaram uma mensagem de texto. Eles estavam muito empolgados por estarem nos Estados Unidos. Dois ou três dias depois, eles vieram para a primeira visita ao meu consultório. Os pais estavam desesperados: eles amavam as filhas, mas a situação era insuportável. Eles não sabiam como cuidar das gêmeas. Como alimentá-las ou vesti-las? Carrinhos de bebês personalizados desse tipo nem mesmo existem. E como imaginar andar por aí com as gêmeas siamesas, com quatro braços e três pernas?

Demos início aos exames. As duas meninas estavam ligadas lado a lado. Elas não podiam caminhar, mas uma delas começou a falar. Ela era um pouco maior e também a mais animada das duas.

'Elas abraçavam uma à outra'

Elas tinham personalidades muito diferentes, apesar de ambas serem, como todos gêmeos siameses, geneticamente idênticas: uma era ativa e extrovertida, a outra mais arredia. Mas pareciam se dar bem: elas brincavam juntas e abraçavam uma à outra.

Tínhamos que descobrir o máximo de detalhes possível de como estavam ligadas. Elas claramente tinham dois corações, dois pulmões e dois estômagos. Mas seus intestinos estavam unidos? Como a pélvis comum estava organizada? Que partes contavam com os nervos e artérias de que corpo?

Durante a separação, é importante seguir a corrente sanguínea. Aprendemos que teríamos que dar a terceira perna, apesar de malformada, para a maior e mais forte das meninas, pois era seu corpo que fornecia o sangue para ela.

Foi no ecocardiograma e na tomografia computadorizada cardíaca que descobrimos que a menor e mais fraca das duas irmãs sofria de doença cardíaca congênita. O conteúdo de oxigênio de seu sangue era muito baixo. Além disso, sua compleição não era saudável. Ambas eram negras, mas uma tinha uma cor mais rosada, robusta, enquanto sua irmã parecia mais pálida.

Então ela adoeceu, uma infecção no trato respiratório. Geralmente isso não seria muito severo, mas o corpo dela não era capaz de tolerar, pois seus pulmões contavam com pouco suprimento de sangue. As gêmeas tiveram que dar entrada na unidade de terapia intensiva. O conteúdo de oxigênio no sangue dela caiu para um nível muito baixo, colocando sua vida em risco, e ela passou a ter uma cor azulada. Àquela altura, percebemos que ela morreria. O coração dela era fraco demais para cuidar do corpo dela sozinho. Ela dependia de sua irmã.

Risco à vida

Mas o que aquilo significava para a operação? Para uma menina, sua irmã gravemente doente representava um risco à sua vida. Se ela morresse, a outra viveria apenas mais algumas poucas horas. Para a outra, entretanto, a irmã com saúde estava como suporte à vida. O modelo 3D que fizemos do esqueleto e dos vasos sanguíneos das gêmeas mostrava claramente a artéria correndo de um corpo para o outro pela parte inferior do peito, fornecendo a ele o sangue rico em oxigênio. Nós sabíamos que se as separássemos, nós teríamos que cortar essa ligação vital.

Nós buscamos orientação junto ao comitê de ética pediátrica de nosso hospital. Em muitas longas conversas, eu aprendi quão importante é saber emoldurar uma situação dessas: nossa intenção não era encerrar a vida de uma menina, mas sim salvar a outra. A diferença é sutil, porque o resultado seria o mesmo: levaríamos duas crianças vivas para a sala de operação e sairíamos com apenas uma.

Nem todos nós aceitamos esse argumento. Três médicos (dois cirurgiões e um anestesiologista) recuaram. Eles disseram que não poderiam participar de algo assim. A ideia de que nossa intervenção provavelmente levaria ao óbito da menina mais fraca parecia inaceitável para eles. Nós respeitamos essa decisão.

Também discutimos o caso longamente com os pais. Tínhamos que nos certificar de que queriam a separação, mesmo que significasse a morte de uma de suas filhas. E nos perguntamos como a própria menina teria decidido: se fosse morrer, ela iria querer que sua irmã permanecesse viva? Ou preferiria morrerem juntas? Apesar de que nunca saberei a resposta, me conforta acreditar que agi de acordo com o interesse dela.

Para a operação, montamos uma equipe de cerca de 50 cirurgiões, anestesiologistas, enfermeiros e técnicos. Quando demos início à incisão na pele, sabíamos que as chances de sobrevivência para a irmã mais fraca seriam baixas. Mas não estávamos desesperançosos: quem sabe poderíamos manter a menina estável por, pelo menos, algumas horas após a separação, para que seus pais pudessem se despedir dela.

Momentos dramáticos

A operação transcorreu como planejado. Separamos o fígado fundido das gêmeas, dividimos o intestino delgado e separamos a pélvis organizada de forma complexa. No caso da pele, era difícil determinar exatamente quais partes pertenciam a cada criança. Injetamos um contraste fluorescente nos vasos da menina mais forte. Então apagamos a luz e marcamos a área reluzente. As partes reluzentes pertenceriam à menina mais forte.

Finalmente, passadas mais de 13 horas as crianças já estavam quase que totalmente separadas, exceto por alguns tecidos e pele na lateral. E a condição de ambas ainda era impressionantemente boa. A esperança das pessoas aumentava: pensamos, uau, pode ser que ambas sobrevivam!

Entretanto, deixamos a transecção da artéria crucial para o final, porque não queríamos o risco desnecessário de morte prematura da irmã mais fraca. Mas agora, àquela altura, o corte precisava ser feito. Primeiro, apertamos o vaso como teste. A pressão sanguínea no corpo da irmã menor caiu imediatamente. O efeito foi dramático.

Não me recordo de quem fez o corte crucial, mas fui eu quem a suturou. Na verdade, ela morreu abruptamente. O anestesiologista tentou estabilizar a condição dela com fluidos e medicação. Mas logo tivemos que desistir.

Foram precisos mais 15 ou 20 minutos para os cirurgiões plásticos cortarem os músculos das costas. Então levamos o corpo morto para uma sala de operação vizinha. Lá, nós fechamos o corpo e o embalamos de uma forma que os pais só pudessem ver o rosto, cuja aparência era boa.

Uma equipe veio para levar a menina aos pais. Eu busquei refúgio em uma terceira sala de operação e chorei ali.

A menina sobrevivente está se saindo muito bem. Ela está feliz. Ela tem apenas um grande problema: uma de suas pernas é chamada de "perna duplicada". O pé termina em um grande dedo, com três dedos menores de cada lado dele. A perna também tem duas tíbias e não tem articulação do joelho. Ela nunca poderá usá-la.

Após a operação, nós recomendamos a amputação. Nós dissemos aos pais que crianças nessa idade aprendem a usar uma prótese quase tão bem quanto seu próprio membro. Mas para os pais, não havia dúvida: "Essa é a última coisa que faremos", eles disseram. De novo, percebi que esse caso é desafiador não apenas por motivos cirúrgicos e éticos, mas também devido ao complicado componente cultural.

Nós a vemos regularmente para exames. Certa vez, quando ela nos visitou cerca de três meses após a operação, eu lhe dei um bicho de pelúcia. Ela sorriu e disse algo para o pai. Ele traduziu para mim: "Ela diz: 'Esta é minha irmã'".

No fundo, ela parecia lembrar que antes havia uma irmã gêmea com ela.