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Retrospectiva 2012: Um espaço para a religião

Muitos jovens árabes querem uma cultura que não vire as costas à religião nem se limite aos seus mandamentos. A Grande Mesquita, em Djenne, em Mali, é Patrimônio da Humanidade - Damon Winter/The New York Times
Muitos jovens árabes querem uma cultura que não vire as costas à religião nem se limite aos seus mandamentos. A Grande Mesquita, em Djenne, em Mali, é Patrimônio da Humanidade Imagem: Damon Winter/The New York Times

Roger Cohen*

Do New York Times

11/12/2012 06h00

Somos muito rápidos para associar religião a atraso e modernidade com secularismo, tanto no Oriente Médio como no Ocidente. A Primavera Árabe pede algo novo.

Durante uma visita recente ao Cairo, conheci uma jovem jornalista chamada Asmaa Loffi na praça Tahrir. Estava de jeans, camisa escura e, por baixo do véu que lhe cobria a cabeça e o pescoço, seus olhos brilhavam. Disse que usava o hijab desde os 12 anos de idade.

"Ninguém me impôs nada", ela garante, “mas eu queria obedecer ao Profeta”.

Ela me contou que se sente "sufocada" quando ouve os longos discursos do presidente egípcio, Mohamed Mursi, membro da Irmandade Muçulmana; que se preocupa com os direitos das mulheres e que, depois de muito pensar, votou contra ele nas primeiras eleições presidenciais livres do Egito, em junho. Preferiu apoiar o candidato mais secular, Ahmed Shafik, ex-primeiro-ministro de Hosni Mubarak.

Asmaa odiava Mubarak.

Ela contou, com entusiasmo, que os egípcios viviam reprimidos e reagiram, livrando-se dos grilhões numa "explosão" de desafio, na praça Tahrir, há quase dois anos. Votou relutante em Shafik por uma questão de ser "o menor dos males".

Pois bem, ali estava uma egípcia com diploma universitário, devota, que optou pelo candidato anti-Irmandade, que defendia com paixão a liberdade de discurso e de imprensa, mas defendia também o que chamava de "serenidade interna" que o hijab lhe dava.

Em outras palavras, Asmaa Loffi era a personificação do repúdio a todos os conceitos intelectuais banais que o mundo usou para abordar o choque entre o religioso e o secular e o confronto entre as civilizações na tentativa de assimilar a Primavera Árabe, o conflito entre o Ocidente e o Islã e o lugar da religião na vida política.

"Por que", ela me pergunta, "no Ocidente, vocês associam o véu com o fanatismo? O Egito era um país muçulmano muito anos de existir um partido religioso. Eu uso o véu porque assim me sinto mais à vontade".

Ela prosseguiu alegando que, durante as três décadas do regime autocrata de Mubarak, apoiado por Washington, os EUA consideraram a Irmandade um bando de islâmicos fanáticos. "E agora o grupo é bem aceito e os salafis é que são os fanáticos - e vocês ainda falam com eles!"

As antigas barreiras, ela sugeriu, erguidas para reforçar o autorretrato de Mubarak como o último defensor do Ocidente contra o extremismo jihadista, eram falsas e retrógradas.

É hora de repensar a relação que o Ocidente é tão rápido em fazer entre a religião e o atraso, de um lado, e secularismo e modernidade de outro. Para o Oriente Médio, que aos poucos vai se livrando da tirania que tinha o aval ocidental, o secularismo não é necessariamente a solução de todos os problemas.

Deveria ser mais fácil para os EUA perceber isso; afinal, a religião é intrínseca à sua definição como país. Porém o surgimento de uma religião politizada e militante - seja no Egito, nos EUA ou na Rússia - geralmente enfatiza as percepções e ofusca as muitas Asmaas Loffis espalhadas pelo mundo, que são devotas, mas convencidas de que é preciso haver uma separação entre a igreja e o Estado.

O Oriente Médio tentou a secularização rápida - seja sob Ataturk, na Turquia, a dinastia Pahlavi no Irã, Bourguiba na Tunísia, Nasser no Egito ou os vários regimes do Partido Baath no Iraque e na Síria - só para vê-la gerar uma reação islâmica forte e às vezes violenta, em parte porque repressão e controle da religião provaram ser nada além do que uma forma de despotismo.

O Islã era um refúgio, o resgate de um patrimônio perdido, uma fortaleza contra ideias importadas. O islamismo político, desde o tempo da fundação da Irmandade Muçulmana por Hassan al-Banna, em 1928, foi sempre uma reação contra o colonialismo ocidental na região e a tentativa de imposição do modelo secular de um mundo que não lhe dizia respeito.

Muito tempo se perdeu nas idas e vindas entre a secularização forçada e um Islã estático, mas esse vaivém não foi assimilado pelos jovens árabes: pelo contrário, o que eles exigiram na praça Tahrir e outros lugares foi algo novo, uma cultura ao mesmo tempo autêntica e moderna, tradicional e aberta.

Como Tariq Ramadan relata em seu livro "Islam and the Arab Awakening": "Os movimentos islâmicos são melhores em simplesmente se opor do que desenvolver propostas plausíveis para o futuro. Sua resistência histórica ao colonialismo, seu debate com os secularistas, sua rejeição do Ocidente (numa relação de atração/repulsa), a legitimidade resultante de sua hostilidade a Israel, tudo confere aos islâmicos a legitimidade de um contrapeso moral, mas essas mesmas conquistas não permitiram que fizessem uma análise objetiva de seu próprio programa político".

Pois agora, eles têm de criar um. Eles têm de agir.

A Irmandade conquistou o poder no Egito. Ennahda subiu ao poder na Tunísia. Ser anti-Ocidente não vai alimentar os famintos, educar os analfabetos ou criar empregos - nem os levantes gerados pela indignação das piadas do Ocidente com o Profeta. Se o Islã quer ser político, não pode se blindar às críticas e até ao ridículo.

Em vez de chamar os inimigos para a briga - seja o Ocidente ou Israel -, esses partidos terão de oferecer oportunidades para um grande número de jovens que querem liberdade, pluralismo, empregos para as mulheres e o fim da corrupção. Essas instituições têm de entender que a sharia pode ser aceita pela a maioria dos cidadãos se entendida como um conjunto de princípios de orientação e não um código penal cujas decisões são simplesmente impostas.

A Turquia, onde um partido de raízes islâmicas está no governo há dez anos, pode servir de modelo.

De certa forma, eles terão que se tornar pós-islamismo para criar um modelo que reúna fé e inclusão democrática e deixar a resistência de lado para investir na política da boa vizinhança. Morsi pode causar muitos estragos se ignorar gente como Asmaa Loffi, muçulmana praticante que também luta pela modernização, ao tentar levar o país adiante.

O Ocidente também deve pensar no exemplo da moça para se conscientizar de que classificações como “islâmico” e “secular” são inadequadas.

O próprio secularismo ocidental por vezes parece se retrair - ao ponto de o líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, Ed Miliband, declarar que é "uma pessoa de fé; não uma fé religiosa, mas, mesmo assim, de fé". Ele disse o que nenhum aspirante à política admitiria hoje nos EUA. Miliband sugeriu que sua forma de fé era aquela que "muitos religiosos reconheceriam" - uma crença de que "temos o dever de deixar esse mundo melhor do que o encontramos”, que "não podemos virar as costas à injustiça” e que “podemos superar qualquer dificuldade se nos unirmos apenas como pessoas”.

Ainda assim, algo assim jamais poderia ser dito nos EUA.

Na Rússia, onde ao longo de 70 anos o comunismo tentou reprimir "o ópio das massas", quando Lênin declarou, ao subir ao poder, que "quanto mais representantes do clero reacionário e da burguesia conseguirmos executar nessa ocasião, melhor", o sucessor dos “commissars” agora toma partido da igreja: Vladimir Putin, ex-agente da KGB, condenou duas integrantes da banda punk Pussy Riot a trabalhos forçados por fazer uma apresentação "blasfema" na principal catedral de Moscou.

A religião, porém, não pode ser o tema intocável do regime em Moscou mais do que no Cairo ou Washington. A longa campanha eleitoral norte-americana envolveu os princípios religiosos dos candidatos - e em temas como o direito da mulher ao aborto, Deus foi invocado (geralmente pelos homens) como árbitro. Declarar-se ateu é uma das maneiras mais eficientes de acabar com uma carreira política naquela que se descreve como "uma nação dirigida por Deus indivisível, com liberdade e justiça para todos". A divisão da nação entre conservadores tementes a Deus e progressistas seculares se tornou fonte de imobilidade e disfunção.

A política norte-americana mudou muito desde a defesa de John F. Kennedy da separação entre igreja e Estado - posição a que o ultracatólico republicano Rick Santorum reagiu violentamente durante campanha, dizendo lhe dar vontade de "vomitar".

Há 50 anos, o catolicismo de Kennedy era visto como uma ameaça; hoje, a fé de Santorum, como o mormonismo de Mitt Romney, inspirada pelos evangélicos, se mistura ao movimento social de resgate dos "valores familiares" e dos papéis sexuais tradicionais. Essa pressão quase fanática contra o aborto, os direitos dos gays e a equidade matrimonial - ou contra a pauta liberal do que os texanos gostam de chamar de República Popular de Nova York (além de outras cidades costeiras) - se tornou o principal componente do cenário político norte-americano e ponto de divisão na cultura do país.

Tornou-se também um peso político para o Partido Republicano, a julgar pelos resultados as últimas eleições.

É inacreditável que o direito evangélico norte-americano seja justamente o que não hesita, nas paravras de Loffi, a igualar uma mulher de véu ao fanatismo islâmico, a ver a ameaça da sharia em todo lugar e rebaixar a Primavera Árabe a mais uma confusão da qual os extremistas jihadistas vão se locupletar.

  • Tomas Munita/The New York Times

    Muçulmanos rezam na praça Tahrir, no Cairo

Mesmo que coloquem Deus num lugar de grande importância na vida política dos EUA - a ponto de, em alguns casos, chegar a declarar que a gravidez resultante de um estupro é uma benção divina -, deploram um Islã político que estão decididos a pintar como um inimigo monolítico. Deus, ao que parece, pode ser uma autoridade legítima no Cinturão Bíblico, mas não na Babilônia.

De fato, o Islã é mais diverso, graças às culturas onde se desenvolveu, e nem pouco mais ou menos suscetível à divisão simplista mocinho/bandido que divide o cristianismo ou o judaísmo.

É claro que os radicais gritam mais alto; eles tendem a obscurecer a pluralidade e as sutilezas. A “fé” secular de Miliband é mais do que os salafis, o Tea Party ou os esquadrões de Deus de Putin podem assimilar, mas está alinhada ao “secularismo” religioso de Loffi e seu compromisso dedicado a uma sociedade governada por leis com direitos iguais para todos.

É possível ser devoto ou secular na crença de que os “assuntos humanos” são mais bem administrados aqui na Terra sem a interferência de Deus. A oportunidade nunca foi tão boa no Oriente Médio como agora, depois de tanto vaivém, de acabar com o modelo binário ultrapassado e criar democracias que não sejam nem islâmicas nem seculares.

É como Ali Mohamed, amigo de Loffi, me disse: “Construir uma democracia não é como cozinhar um ovo”. Não é mesmo; é um trabalho que leva uma geração e exige compreensão e apoio. Em teoria, sociedades como os EUA e Israel, onde a religião tem um papel tão importante, deveriam se posicionar para assumir o desafio - se as revelações divinas a seus seguidores mais fervorosos forem triviais e se o Oriente muçulmano for finalmente visto não como uma emancipação ocidental, mas como uma evolução islâmica.

"Estamos livres", disse Loffi. "Não importa o que aconteça, a situação nunca vai voltar ao que era."

* Roger Cohen já mandou telex de Beirute e se comunicou via satélite de Benghazi, além de testemunhar a união da Europa, o desenvolvimento da China e a Itália continuar do mesmo jeito. Ele escreve a coluna “Globalist” do International Herald Tribune. (Este texto faz parte da série "Fator de Mudança: Pauta Global 2013", com fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2012 que continuarão repercutindo em 2013.)