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Como a emancipação de uma mulher pode ajudar outras 120 milhões

Em Bangalore, mulheres aguardam para fazer entrevista de emprego - Ruth Fremson/The New York Times
Em Bangalore, mulheres aguardam para fazer entrevista de emprego Imagem: Ruth Fremson/The New York Times

Melinda Gates*

05/01/2014 06h00

Eu conheci Sharmila Devi quando a caçula de seus quatro filhos, Babita, tinha quatro meses. Depois que a menina nasceu, Sharmila tomou uma decisão corajosa que lhe garantiria mais chances de um futuro melhor.

Depois de conversar com uma funcionária do posto de saúde, ela resolveu aplicar o DIU para evitar engravidar novamente antes da hora. Foi um passo e tanto para uma mulher pobre no norte da Índia.

O marido e a sogra se opuseram à decisão. Eles queriam que ela seguisse a tradições de inúmeras gerações segundo a qual teria que assumir várias gravidezes, uma após a outra, e só depois se esterilizar.

Sharmila acabou convencendo o companheiro, mas não a mãe dele. Em muitas famílias indianas a sogra tem autoridade sobre as decisões relacionadas à criação dos filhos, mas a moça simplesmente não se curvou à norma social; seguiu em frente e fez o que achava melhor para si e para a família.

Pelo que ouço das inúmeras mulheres que conheci, para que elas tenham verdadeira autonomia precisam ter o poder de decidir a hora de engravidar; só assim terão condições de manter suas famílias saudáveis, bem nutridas e educadas. E, no ano que se aproxima, muitas terão a chance de exercê-lo pela primeira vez.

Há apenas alguns anos, a maioria das mulheres como Sharmila não compreendia os perigos de se ter um filho atrás do outro, não conheciam o DIU nem outros contraceptivos reversíveis e duradouros e nem poderiam recebê-los no postinho de saúde nem que soubesse o que eram. Agora o governo indiano está investindo bilhões de dólares para garantir que tenham acesso a informações sobre planejamento familiar e a um sistema de saúde decente.

O fato da determinação de Sharmila ter respaldo num compromisso das autoridades de seu país é um agente de mudança para as mulheres dos países pobres: em 2014, milhões delas, que nunca tiveram acesso a contraceptivos de qualquer espécie, vão poder começar a planejar a família. O resultado? Milhões de crianças mais saudáveis e estudando mais, gerando prosperidade em proporções gigantescas.

Há quase um ano e meio, em julho de 2012, ajudei a organizar um encontro sobre planejamento familiar em Londres. A prova era clara: há anos o mundo tem relegado o investimento na área, com consequências graves para as mulheres, suas famílias e comunidades. Convidamos líderes de dezenas de países, organizações de saúde mundiais e empresas privadas, além de profissionais da saúde para tentar voltar a atenção global às necessidades da mulher. Foi muito emocionante ver ativistas mais velhas, que deram a vida pela causa, passar o bastão para a geração mais nova. E os participantes se comprometeram com um objetivo ambicioso: ajudar 120 milhões de mulheres que não tinham acesso ao planejamento familiar a conquistá-lo até 2020.

O encontro não alterou automaticamente as vidas de mulheres como Sharmila. Os países doadores fizeram promessas; os em desenvolvimento começaram a fazer planos, com valores em dólares, de como atender às necessidades de seus cidadãos. Hoje, depois de quase um ano e meio, a semente plantada em Londres está começando a dar frutos para mulheres em pelo menos 25 países, de Bangladesh a Burkina Faso. Nos próximos seis anos, a história de Sharmila Devi será repetida mais de cem milhões de vezes.

Pela primeira vez, poderemos também observar o progresso já que, conforme escrevo este artigo, um projeto pioneiro de coleta de dados sobre planejamento familiar está tendo início.
Estatísticas nunca são glamorosas (embora uma colega minha tenha uma camiseta onde se lê: “Fale de dados comigo”), mas essa é uma iniciativa importante que vai auxiliar muitos países a cumprirem suas promessas para mulheres como Sharmila. A análise de dados em tempo real é a única maneira de administrar o desempenho de qualquer projeto ou organização. Às vezes Bill e eu imaginamos como teríamos trabalhado na Microsoft se tivéssemos os pouquíssimos dados de que dispõem os programas de países pobres. Resposta: não muito bem.

Até agora, as únicas informações disponíveis eram as de pesquisas feitas a cada quatro ou cinco anos ? que, na verdade, fazem apenas algumas perguntas a respeito do assunto misturadas com dezenas de outras, relacionadas a grupos demográficos e problemas de saúde. Podem até registrar com precisão o número de mulheres que usam contraceptivos, mas não oferecem informações atualizadas que os governos podem usar para melhorar os serviços de planejamento familiar.

Bocar Mamadou Daff, diretor do programa de no Senegal, conversou comigo sobre a questão da falta de dados. Há alguns anos, ele recebeu um telefonema anônimo no qual a pessoa dizia que as mulheres que viviam ao norte do Doué estavam atravessando o rio para comprar contraceptivos injetáveis porque na clínica que deveriam adquiri-lo estava em falta.

Daff resolveu investigar por conta própria ? ligando para o posto do outro lado do rio para descobrir que, sim, eles estavam vendendo um número bem elevado de injeções contraceptivas. Aí visitou a Farmácia Nacional, fornecedora das farmácias de todo o país e descobriu que o estoque estava bem abastecido. Só que as amostras não estavam chegando às clínicas.

Daff não sabia porque não havia um banco de dados que lhe dissesse o que havia no estoque. Agora que implementou um sistema adequado, eliminou o problema.

Neste exato momento oito países africanos (e dois asiáticos) estão colocando no ar sistemas de dados para evitar o mesmo problema. Centenas de funcionárias estão sendo treinadas para conduzirem pesquisas detalhadas sobre cada mulher, clínica e farmácia. Os dados serão enviados imediatamente, por celular, a uma central, tornando-se disponível em tempo real. As atualizações serão feitas mais de uma vez por ano, permitindo que os governos administrem o desempenho do programa continuamente. Qualquer discrepância ? clínicas atendendo um número muito grande ou muito pequeno de pacientes ? vai permitir uma apuração e solução mais rápidas. Como diz o ditado, o que pode ser contado é sempre realizado.

Acredito na premissa que diz que se você investe na mulher e na menina, investe nas pessoas que investem em todo mundo. Oferecer o poder de decisão e controle a elas é um objetivo fundamental para a realização de outros planos, para homens, meninos e meninas. Em 2014 vamos começar a lutar pela meta global de garantir a 120 milhões de mulheres o acesso a contraceptivos ? e ainda acompanhar esse processo.

Entretanto, o que interessa não é um número gigantesco como 120 milhões ou a tecnologia por trás da disseminação dos dados, mas sim indivíduos como Sharmila Devi e as senegalesas que atravessaram o Doué , arriscando tudo o que têm para dar aos filhos a chance de uma vida melhor. Finalmente estamos fazendo a nossa parte para que a coragem delas valha a pena.

* Melinda Gates é co-presidente da Fundação Bill & Melinda Gates