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Análise: Você é brasileiro? Este texto pode complicar a sua resposta

Taiye Selasi é escritora, fotógrafa e viajante, e seu livro de estreia em 2013 foi "Ghana Must Go" - The New York Times
Taiye Selasi é escritora, fotógrafa e viajante, e seu livro de estreia em 2013 foi "Ghana Must Go" Imagem: The New York Times

Taiye Selasi

24/12/2014 06h00

Em um mundo de cidadãos sem raízes, o sentido de nacionalidade ainda significa alguma coisa?

No mês de setembro, durante uma semana, participei de dois festivais na Itália. O primeiro foi em Pantelária, a maior das ilhas satélites da Sicília, a cerca de 160 km da costa da Itália e 60 km da Tunísia. O segundo foi na aldeia de Lana, uma "comuna" nas montanhas a cerca de 120 km ao sul do bucólico Tirol austríaco. No domingo, quando sai de Pantelária, estava usando chinelos. Naquela noite, quando jantei em Lana, estava usando luvas. Em apenas algumas horas, eu tinha ido dos biquínis e praias para os cachecóis e as montanhas sem sair da Itália -- e, o mais impressionante, sem encontrar qualquer italiano.

Quando perguntei a meus anfitriões em Lana se eles se consideravam italianos, todos riram. "Não. Somos tiroleses do sul", disseram. Quando perguntei o mesmo aos meus anfitriões em Pantelária, eles riram ainda mais. "Não. Somos pantescos". De alguma forma, apesar de ter vivido em Roma, indo e vindo desde 2011, eu nunca questionara o fato de que as cidades que dão para a Tunísia e a Áustria pertenciam a uma única Itália. Agora eu me perguntava: se meus anfitriões sicilianos e tiroleses não estavam convencidos de sua italianidade, quem é italiano então? O que é a Itália?

Em Lana, a resposta foi mais complicada por causa da língua. Até sua anexação pela Itália em 1919, o Tirol do Sul pertencia ao Império Austro-húngaro. Noventa e cinco por cento da população de Lana ainda fala alemão como primeira língua. É apenas um acaso que cem por cento deles tenham passaportes italianos. O complicador em Pantelária é a cor. Quando souberam que eu estava indo para Lana, homens de pele mais escura do que a minha lamentavam o racismo que tinham experimentado no norte. Eu me lembrei de uma amiga de Nápoles que uma vez disse que os italianos do norte "acham que tudo o que fazemos é cantar, dançar, roubar e comer melancia". Eu cresci em Boston (EUA), uma cidade repleta de tensão racial, e achei a descrição tristemente familiar: pessoas de pele escura são todas parecidas, de acordo com quem é do sul de Boston e do Tirol do Sul.

Mas o que mais me incomodou, e não pela primeira vez, foi a questão de nação. Aparentemente, não havia a ideia de Itália -- na noção da nação -- capaz de substituir as realidades de língua, classe social e cor. Na volta para Berlim, minha casa mais recente, não consegui parar de pensar: quando falamos de nacionalidade, então, o que realmente queremos dizer?

Guiné - Nadia Shira Cohen/The New York Times - Nadia Shira Cohen/The New York Times
Mulheres da Guiné compram peixe em banca do novo Mercado Esquilino, em Roma, que atende imigrantes
Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

No nível intelectual, sempre tive problemas com o conceito. Nunca vou me esquecer de quando descobri, no início de meus estudos de pós-graduação em Relações Internacionais, que o Estado-nação não esteve sempre conosco. Foi em 2002. Os Estados Unidos travavam sua segunda guerra contra o Iraque. Vim para a Inglaterra para um curso de pós-graduação especialmente para entender o porquê. Jornais e livros se referem a essas entidades -- Afeganistão, Estados Unidos, Inglaterra, Iraque -- como uma ocorrência natural, singular, quase coisas antropomórficas.

Eu estava convencida. Intimamente, nunca acreditei muito em nações. Elas haviam desaparecido (Tchecoslováquia), aparecido (Timor-Leste), dado errado (Somália). Minha própria nacionalidade foi em grande parte um acidente da história; nasci em Londres, cresci em Boston, tenho passaporte britânico e americano, com base em leis revogadas em 2002. Meu pai ganês viveu na Arábia Saudita, minha mãe nigeriana em Gana, ambos cidadãos de países que não existiam quando eles nasceram. De alguma forma, a ideia de que era preciso desenvolver nosso sentido de "eu" a partir das nações -- essas coisas que se expandem, acabam, se reinventam -- me parecia absurda.

Então um dia, na Universidade de Oxford, descobri o Estado. Antes de começar a pós-graduação, eu usava as palavras "nação", "Estado" e "país" sem diferenciá-las; por exemplo, a ONU é composta por Estados-membros, com países eleitos para os conselhos. Agora sei que os termos são distintos. A nação é uma entidade cultural e linguística, o Estado, uma entidade política e geopolítica. A ideia do Estado-nação moderno -- um Estado soberano que rege uma nação cultural -- era apenas isso: uma ideia de 350 anos que não esconde a idade.

Não há nada eterno sobre as nações, nada de biológico sobre a nacionalidade. Em alguns poucos Estados, um grupo étnico ainda compõe mais de 95% da população (Islândia, Japão e Malta, para citar alguns). No resto, a "nação" enquanto Estado-nação teve de ser inventada. Para se atingir essa singularidade imaginada em face às complexidades históricas -- guerras civis, mudanças de fronteiras, uma miríade de línguas e aparências diferentes -- foi necessária a prevalência da cultura de certas nacionalidades sobre outras.

De certa forma, sempre entendi isso. Desde criança, ficou claro que, apesar dos passaportes que eu tinha, ninguém que usasse os termos "jovem britânica" ou "garota americana" iria estar se referindo a mim. Se a história criou nações, o poder criou culturas nacionais. Em 2002, a revelação era esta: as pessoas, não os passaportes, determinam a associação.

Cerca de 10 anos mais tarde, quando saí de Lana, revisei o assunto novamente. Minha pergunta original (Quem é italiano?) me conduziu a uma mais importante: quem pertence à Itália? O que meus anfitriões sicilianos lamentavam era a mentira de pertencer a uma nação: o passaporte italiano não oferece nenhuma garantia de igualdade de tratamento na Itália. O mesmo acontece em todo o mundo.

No dia em que viajei de Pantelária para Lana, quebra-quebras eclodiram no Missouri (EUA), onde centenas foram protestar contra policiais americanos que mataram adolescentes americanos. Darren Wilson, o policial de 28 anos que matou Michael Brown, de 18 anos, pode não ter percebido sua vítima como "um companheiro americano". Não ouvimos falar da violência de americanos contra americanos como ouvimos falar de crimes de negros contra negros, o que sugere que, ao contrário do que é dito, a identidade "americana" não engloba todas as comunidades. Simplesmente, Michael Brown não era um membro da cultura dita americana. Ele tinha a nacionalidade do Estado (e foi sua vítima), mas não era totalmente visto como "um americano".

Quando ouvi italianos descrevendo o modo com que foram destratados por outros italianos, a distinção tornou-se clara. O cidadão desfruta da sensação de pertencer e da segurança pessoal que vem com ela; a nacionalidade fornece apenas o passaporte. Ironicamente, para aqueles que já estão pessoalmente seguros, a cidadania não precisa significar muito. No Tirol do Sul, uma das regiões mais ricas na União Europeia, a ideia de ser um cidadão (austríaco, italiano ou outro) não significa muito. Em Pantelária, como em Ferguson, essa falta de significado tem um custo.

Roma - Nadia Shira Cohen/The New York Times - Nadia Shira Cohen/The New York Times
Uma mulher de Bangladesh percorre um empório na Piazza Vittorio, que floresce no coração da Roma multiétnica
Imagem: Nadia Shira Cohen/The New York Times

Muitas vezes, quem paga esse preço consente com a cobrança. Durante um almoço em Pantelária, aviões vasculharam o mar tranquilo "à procura de refugiados africanos", me disseram. Ninguém na mesa parecia perceber, ou querer discutir, o óbvio: que a discriminação vivida por refugiados de pele escura que migram para o ocidente e italianos de pele escura que migram para o norte é a mesma. Em nossa conversa, a palavra "italiano" era usada não para definir a identidade nacional, mas para delimitá-la. A pessoa é pantesca quando a alternativa é italiana. E é italiana, quando a alternativa era nigeriana.

Eis a questão. A amiga de Nápoles que mencionei antes, nunca viveu fora da Itália. Ela fala italiano e napolitano fluentemente. Seus pais nasceram na Nigéria. O fato de que poucas pessoas na Itália a aceitam como italiana é no mínimo irônico, dado que ninguém na Itália concorda com uma ideia de italianidade. A nacionalidade, apesar de ser um conceito sutil no contexto da identidade pessoal, persiste no discurso público para justificar as barreiras à cidadania. Nos lugares onde a história exige que a nacionalidade seja mais flexível, ela é mais tenazmente defendida como algo biológico.

Por vergonha. Os Estados que considero como minhas casas -- Estados Unidos, França, Itália, e agora a Alemanha -- todos têm o tipo de história que expõe a identidade nacional como produto de narrativa. Alguém poderia pensar que o tirolês do sul, sua própria cidadania sendo o produto arbitrário da geopolítica, entenderia isso. Quem melhor do que o italiano falante de alemão para se opor à suposta artificialidade do turco de língua alemã, do somali de língua italiana, do americano de língua espanhola? Quem melhor do que o cidadão italiano, o americano, o berlinense do leste, para entender que um país que está sempre se expandindo para incluir novas cores de pele, palavras e políticas pode (ou melhor, deve) se expandir mais um pouco?

Teoricamente, a reconstrução da nacionalidade para acomodar a migração nesses países deveria ser fácil. Se as próprias palavras -- americano, italiano, alemão -- já significaram coisas tão diferentes ao longo da história e continuam a significar coisas tão diferentes e para diferentes cidadãos hoje, então certamente elas podem acomodar os seres humanos que agora chegam em solo americano, italiano e alemão.

Como a história nos obriga a  aceitar a natureza construída de nacionalidade -- aceitar que a italianidade de um marinheiro da Sicília, um fazendeiro de Lana e um imigrante da Somália são igualmente imaginárias -- é aceitar que todos podem ser cidadãos. Essas são questões de poder, percepção e política, não de possibilidade. Porque a possibilidade sempre existiu. A Itália, como qualquer nação moderna, e qualquer nação moderna, como a Itália, são frutos da imaginação e podem agora ser reimaginadas.