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Uma cidade de Bangladesh nas garras do tráfico humano

Ellen Barry

Em Shah Porir Dwip (Bangladesh)

24/07/2015 06h00

De sua loja com vista para o píer, nesta ilha próxima da fronteira com Mianmar, Mohammad Hossain assistiu ao crescimento do contrabando humano.

Com o passar dos anos, o gotejar gradualmente se transformou em uma corrente sem fim. Os clarões de luz tarde da noite, sinalizando que a costa está livre para que os barcos sejam lançados ao mar, se multiplicaram até parecer iluminação de verão. O fato das embarcações não estarem transportando peixe é um segredo aberto aqui: certo dia, quando uma traineira afundou ao zarpar, a água ficou repleta de corpos humanos flutuando.

A população de Shah Porir Dwip –pescadores, comerciantes, policiais e chefões do crime– foi toda atraída, seja como participantes ou observadores preocupados, a um negócio de tráfico humano multimilionário com raízes profundas neste canto empobrecido de Bangladesh.

O mundo exterior tomou conhecimento do contrabando há pouco tempo, por meio de uma série de revelações terríveis. Covas rasas foram descobertas em campos improvisados na Tailândia, perto da fronteira com a Malásia, onde os contrabandistas abusavam de seus cativos e os deixavam passar fome, exigindo até US$ 3.000 de suas famílias para a soltura. Embarcações eram abandonadas no meio do oceano, lotadas de pessoas à beira da fome.

Aqui, não houve horror e nem surpresa.

As pessoas descrevem uma operação que, em seus primórdios, prometia grandes recompensas, levando milhares a trocar os meios tradicionais de ganhar a vida, como a pesca e a extração de sal, pelo contrabando. Mas com a expansão da escala da operação, agentes começaram a usar táticas de alta pressão para lotar um número crescente de embarcações, recrutando caçadores de fortunas bengaleses assim como os refugiados rohingya, em fuga da perseguição em Mianmar.

Os emigrantes que fizeram a jornada para a Malásia começaram a atrair parentes e amigos, ao estilo de um esquema de pirâmide, embolsando taxas maiores à medida que novos corpos eram adicionados à rede. Histórias de abdução se tornaram comuns. A operação cresceu, encoberta pelo silêncio.

Assisti-la se tornou um fardo para o comerciante Hossain, que falava com os emigrantes por alguns poucos minutos enquanto compravam pacotes de biscoito a caminho das casas onde ficariam escondidos, aguardando pelo sinal para embarcar. A loja dele era a última parada antes da jornada e isso passou a pesar sobre ele.

"Eu dizia a alguns desses jovens, 'Não vá'", ele disse em uma entrevista recente. "Eu lhes dizia que muitos barcos afundavam no caminho. Mas não me davam ouvidos. Eles tinham um sonho. Eles queriam ganhar dinheiro no exterior."

A história da rota de contrabando também é a história de pessoas aprisionadas.

A maioria das pessoas fugindo é rohingya, um grupo étnico muçulmano que anos antes fugiu de Mianmar, onde o governo os considera intrusos de Bangladesh. Mas a vida deles não era muito melhor em Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo, onde muitos de seus vizinhos os desprezam e também os consideram forasteiros.

Foi uma dessas pessoas apátridas, um pescador rohingya nascido em Mianmar chamado Tazer Muluk, que em 2000 encontrou uma saída, uma rota pelo mar para a Malásia que podia ser feita em menos de uma semana, concluiu a polícia bengalesa em uma investigação no ano passado. Em 2014, a rede cresceu, incluindo pelo menos 600 contrabandistas e 1.600 agentes e barqueiros.

Mohammad Ataul, um rohingya de 26 anos que cresceu em um dos campos, ocupava a posição mais baixa entre os 15 níveis de agentes, aquele cujo trabalho era persuadir as pessoas a fazerem a jornada. Seu argumento começava com uma matemática simples: um dia de trabalho na Malásia renderia três vezes mais que as 300 tecas (cerca de US$ 4) que trabalhadores sem documentos podem ganhar em Bangladesh. Muito pouca persuasão era necessária, ele disse, e segurança nunca foi a principal preocupação.

"Não há garantia no mar", ele disse. "Eu lhes dizia, se vocês não morrerem no mar, acabarão encontrando um emprego."

Em um ano e três meses, ele e seu parceiro recrutaram cerca de 400 pessoas, dividindo uma taxa que varia de cerca de US$ 40 a US$ 65 por pessoa, de modo que, como ele colocou, "se eu conseguir mais pessoas, eu ganho um bom dinheiro". Três dias antes de cada jornada, os agentes rotineiramente entregam um pagamento por cabeça à polícia ou aos agentes de fronteira.

"Todos ganham dinheiro com isso", ele disse. "Todo mundo sabe."

É difícil dizer exatamente quando o negócio se tornou predatório, mas Abdul Hamid, que é dono de uma farmácia na cidade de Ukhia, a cerca de 65 quilômetros ao norte daqui, lembra de uma noite abafada no verão passado em que, enquanto ele fechava sua loja, um homem apavorado correu para dentro e se agarrou às pernas de Hamid.

Hamid notou algumas flutuações em seus negócios: ele estava vendendo quantidades incomuns de pílulas para dormir e fita cirúrgica. Agora, ele olhava para o homem aos seus pés, com hematomas em suas costas e ombros, que dizia ter escapado dos contrabandistas enquanto tentavam forçá-lo a embarcar. Quando Hamid começou a fazer perguntas pelas redondezas, ele ficou surpresa ao descobrir quantos homens locais tinham desaparecido; sequestrados, como supõe Hamid.

"Quando passamos a conhecer o quadro, é extremamente assustador", disse Hamid, que começou a organizar comícios para condenar o contrabando humano. "Não se trata de tráfico. Está mais para compra e venda de pessoas. Como animais."

Os ativistas que monitoram o tráfico no Mar de Andaman, a oeste da Tailândia e Mianmar, também notaram um aumento de volume que teve início no final de 2013. Se antes uma ou duas embarcações grandes faziam a jornada, agora chegam até a 25 navios grandes ao mesmo tempo, disse Chris Lewa, diretor do Projeto Arakan.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados calcula que 25 mil emigrantes partiram da Baía de Bengala nos primeiros três meses deste ano, o dobro do número que partiu nos períodos equivalentes de 2014 ou 2013.

Cada vez mais os emigrantes que embarcam para a Malásia não são rohingyas apátridas, mas bengaleses comuns, que ouvem as histórias de enriquecimento na Malásia. No início deste ano, os bengaleses correspondiam a 40% a 60% dos emigrantes, segundo a agência de refugiados da ONU.

Durante os primeiros cinco meses deste ano, um período que terminou assim que as valas comuns foram descobertas na Tailândia, as autoridades bengalesas prenderam 340 pessoas sob suspeita de contrabando, segundo Mirza Abdullahel Baqui, que comanda a unidade de tráfico do departamento de investigações criminais de Bangladesh. Ele disse que a maioria era agente ou proprietário de barcos de pesca, homens que ficaram muito ricos recrutando emigrantes para a jornada.

Políticos, policiais ou forças de segurança de fronteira não foram presos. Como a rede estava ativa há muito tempo, "é provável que alguns indivíduos no governo e na polícia estejam envolvidos", disse Baqui, acrescentando que os investigadores estão analisando o envolvimento da polícia.

Em Shah Porir Dwip, a polícia chegava em pequenos barcos quase todo dia para levar pessoas identificadas como agentes de contrabando. Mas os homens que prendia eram pobres, ajudantes de pescadores e operários, e até mesmo o chefe de polícia local riu do baixo número de prisões.

Mas um dos presos não riu.

Em meados de maio, a polícia deteve Dholu Hossain, um pescador bengalês papudo descrito pelos vizinhos e autoridades como um dos chefões do contrabando em Shah Porir Dwip. A polícia o levou certa manhã, disse sua mulher, Amina Begum. Horas depois, eles disseram que Hossain sacou uma arma e morreu em um tiroteio.

Foi um dos cinco tiroteios que ocorreram sob circunstâncias misteriosas semelhantes. Baqui disse que as mortes ocorreram enquanto os policiais tentavam realizar prisões.

O comerciante, Mohammad Hossain, descreveu a morte de Dholu Hossain como um assassinato dirigido, mas ele disse que aprovou.

"Ficamos muito felizes", ele disse. "Se o governo matar 400 agentes, 160 milhões de bengaleses ficarão felizes."

E aqueles que sonham em escapar esperam pelos mares das monções se acalmarem em poucos meses, o relaxamento da pressão policial e o renascimento das redes.

Tahera Begum, uma mulher rohingya de 18 anos, estava em um depósito, aguardando pelo sinal para embarcar em um navio para a Malásia, quando o escândalo estourou em maio.

Agora ela aguarda no campo, esperando por outra chance. Ela ouviu as histórias dos emigrantes que sobreviveram à jornada, ela disse em uma entrevista, mas se os barcos voltarem, ela partirá em um instante.

"Vou tentar de novo", ela disse. "Tenho medo, mas mesmo assim vou tentar. Quero sair daqui."

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