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Cidade de "Making a Murderer" reage à série da Netflix e foge da repercussão

A propriedade da família Avery, mostrada no documentário da Netflix, no Condado de Manitowoc - Lauren Justice/The New York Times
A propriedade da família Avery, mostrada no documentário da Netflix, no Condado de Manitowoc Imagem: Lauren Justice/The New York Times

Monica Davey

Em Manitowoc, Wisconsin (EUA)

30/01/2016 06h00Atualizada em 03/02/2016 12h40

No departamento de turismo de Manitowoc, onde os funcionários estão habituados a ouvir perguntas sobre as melhores trilhas de jogging e as praias da cidade, as consultas de repente se tornaram sombrias: como se pode promover o turismo em uma cidade tão corrupta? Por que alguém a visitaria?

O furor --por telefone, e-mail e nas redes sociais-- também invadiu o Departamento de Polícia do Condado de Manitowoc, o gabinete do delegado, a Prefeitura e quase todos os lugares que levam o nome Manitowoc.

Até a diretora da Sociedade Histórica da cidade, Amy Meyer, teve de atender telefonemas para que os voluntários, mais preparados para indagações educadas sobre a história dos estaleiros da região e sua reivindicação de ter criado o "sundae" de sorvete, não tenham de escutar "tantos gritos, xingos e ameaças". Um comentário na página da Sociedade Histórica no Facebook dizia: "Pena que sua história inclua arruinar a vida de dois inocentes".

O lançamento no mês passado de uma série de documentários na Netflix, "Making a Murderer", sobre um caso de assassinato ocorrido dez anos atrás, revolucionou o município de cerca de 80 mil habitantes junto ao lago Michigan (norte dos EUA).

Há dez anos, quando vim aqui pela primeira vez, Steven Avery, o morador que hoje está no centro dos dez episódios da Netflix, que duram mais de dez horas, tinha sido preso sob suspeita de assassinato alguns dias antes.

O passado de Avery foi o que me trouxe a Manitowoc em novembro de 2005: durante meses, ele tinha sido mostrado em Wisconsin como o símbolo de tudo o que há de errado no sistema judicial, depois de passar 18 anos na prisão por uma agressão sexual que, mais tarde, exames de DNA ligaram a outro homem.

Depois que foi libertado, Avery moveu um processo de US$ 36 milhões contra as autoridades que o enviaram à prisão por engano. Então ele foi acusado pelo assassinato de Teresa Halbach, uma fotógrafa de 25 anos que viera tirar fotos do depósito de carros velhos de sua família para a revista "Auto Trader".

Avery - Divulgação/Netflix  - Divulgação/Netflix
Imagem: Divulgação/Netflix

Na época, enquanto eu dirigia até a sede do município pelas áreas rurais próximas ao depósito, encontrei uma comunidade muito unida que lamentava a morte da jovem e uma série de defensores de Avery surpresos com os últimos acontecimentos.

Alguns estudantes de cinema de Nova York leram a reportagem que escrevi e dedicaram a década seguinte ao que se tornou a série da Netflix. No final, Avery e seu sobrinho Brendan Dassey, com 16 anos na época da morte de Halbach, foram condenados pelo assassinato, resultado que alguns que assistiram à série ficaram convencidos de que foi mais um exemplo dos erros do sistema judicial.

Aqui, muitas pessoas que tinham observado o caso em tempo real por meio da intensa cobertura da mídia local em geral o consideravam resolvido. Mas com um público muito maior agora consumindo vorazmente a visão dos cineastas e levantando perguntas sobre se os condenados eram realmente culpados, ou se as autoridades plantaram provas e forjaram a investigação, uma avalanche de postagens nas redes sociais e telefonemas está obrigando Manitowoc a rever o passado.

"Vivemos isso dez anos atrás", disse Jason Rig, presidente do Departamento de Turismo e Convenções da Região de Manitowoc, atrás de um balcão coberto de mapas e folhetos.

"Fizemos nosso julgamento e ele chegou ao fim, e a maioria da população local o apoiou", afirmou Rig. "Agora voltou, sem a opção ou a ação de ninguém nesta comunidade."

"Então esse é o primeiro ponto de injustiça", acrescentou ele. "Que tenhamos de vivê-lo mais uma vez."

No centro de Manitowoc, a sede do condado, as pessoas curiosas e falantes que eu havia encontrado uma década antes não estavam mais surpresas --ou minimamente contentes-- ao ver mais um repórter. Muitas evitavam qualquer conversa sobre "Making a Murderer", ou simplesmente viam meu caderno de anotações e se afastavam. O prefeito não quis dar entrevista. Empresários se recusaram a conversar a respeito. Uma delas disse que leu na internet sobre uma convocação de protesto na cidade e estava preocupada com sua segurança.

"Olhe, já vivi tudo isso como jurada", disse Suszanne Fox, que mora perto da cidade, enquanto comia um hambúrguer no Fat Seagull. "Ele foi muito culpado."

Muitos espectadores do seriado discordam. Centenas de milhares de pessoas assinaram petições para que o presidente Barack Obama perdoasse Avery e Dassey, ao que a Casa Branca respondeu que o presidente não pode emitir indultos em casos estaduais.

O governador Scott Walker há muito prometeu não dar anistias enquanto ocupasse o cargo, e deixou claro que não vê motivo para exceção neste caso.

A série deixou os espectadores com perguntas insistentes: o processo civil de Avery por ter sido condenado erradamente por agressão sexual levou as autoridades de Manitowoc a plantar evidência contra ele no segundo caso, por assassinato? Por que uma antiga amostra de sangue de Avery, que foi encontrada no carro da vítima, parecia ter sido alterada enquanto estava em poder das autoridades? Dassey, que era muito jovem e com um intelecto limitado, deveria ter sido interrogado sozinho por investigadores? O advogado que nomearam para ele trabalhou contra sua causa?

Mas Ken Kratz, que foi promotor nos casos contra Avery e Dassey, disse que a série foi tendenciosa e omitiu peças de evidência significativas, incluindo DNA de Avery na trava do capô do carro de Halbach, encontrado no depósito de Avery?

"Isso não é um documentário; é uma peça de defesa", disse Kratz em uma entrevista por telefone de Nova York, onde ele disse que estava sendo hospedado no Waldorf Astoria enquanto participava de entrevistas para a televisão e revistas sobre a série da Netflix.

As cineastas, Laura Ricciardi e Moira Demos, disseram acreditar que sua obra retrata acuradamente os argumentos essenciais apresentados pelos promotores. A questão, segundo afirmaram por telefone, foi examinar os casos de Manitowoc como uma janela para o sistema judicial americano.

"Sentimos empatia por Manitowoc porque sabemos que as pessoas têm sido grosseiras e publicado coisas sobre a cidade e o município", disse Ricciardi. "É uma reação infeliz, porque sempre quisemos que a série fosse construtiva, e não destrutiva."

Avery e Dassey, hoje com 53 e 26 anos, não viram o seriado, segundo seus advogados. Os prisioneiros não recebem Netflix. Mas enquanto Dassey espera a decisão de um tribunal federal sobre alegações de que sua confissão foi forçada e que ele tinha o direito de ter um advogado para montar sua defesa, os expectadores da Netflix o abarrotaram de cartas de apoio, disse sua advogada, Laura Nirider, do Centro para Condenações Erradas de Jovens, da Universidade Northwestern.

"Ele está incrivelmente esperançoso pela primeira vez de que quando as pessoas ouvirem o nome Brendan Dassey não pensem em um assassino, mas em alguém que foi vítima de erro", explicou ela.

E uma nova advogada, Kathleen T. Zellner, conhecida por assumir casos de erro de condenação, já se encarregou de conduzir o próximo passo de Avery na Justiça.