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"Montanha sagrada" alimenta lenda da família de Kim Jong-un e atrai devotos

A montanha, conhecida como Baekdusan, em coreano, e Changbaishan, em chinês, e o lago de cratera de 10 quilômetros quadrados, chamado Cheonji, em coreano, e Tianchi, em chinês - Gilles Sabrie/The New York Times
A montanha, conhecida como Baekdusan, em coreano, e Changbaishan, em chinês, e o lago de cratera de 10 quilômetros quadrados, chamado Cheonji, em coreano, e Tianchi, em chinês Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

Choe Sang-Hun

Em Changbaishan (China)

28/09/2016 06h00

A densa neblina que envolvia a montanha durante toda a manhã repentinamente dispersou, revelando um lago de água esmeralda e provocando empolgação entre os andarilhos reunidos no cume.

"Consigo ver! Consigo ver!", gritaram alguns.

Park Jae-hee, 50 anos, uma escritora sul-coreana que em meio à neblina matinal subiu a montanha, conhecida como Baekdusan, em coreano, e Changbaishan, em chinês, deu alguns poucos passos cautelosos na direção do penhasco com vista para o lago, com os olhos marejados.

"No instante em que o vi, perdi meu fôlego, contive as lágrimas em meus olhos, senti um calor vindo de meu coração", disse Park. "Só coreanos entenderão como me senti."

A 2.190 metros acima do nível do mar, o lago de cratera de 10 quilômetros quadrados, chamado Cheonji, em coreano, e Tianchi, em chinês, foi criado há 1.000 anos em uma das maiores erupções vulcânicas da história.

Assim como o lago Ness na Escócia, o lago de mais de 380 metros de profundidade também é lar de um monstro mítico. Pessoas na China relataram ter visto criaturas gigantes como uma foca, com escamas ou chifres, nadando no lago, apesar dos cientistas dizerem que a água é fria demais para grandes animais.

Mas para os coreanos tanto do Sul quanto do Norte, Cheonji e o monte Baekdusan, com 2752 metros de altitude, são muito mais que maravilhas naturais. Eles são vistos com reverência quase religiosa e são considerados o lar espiritual de suas respectivas nações.

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Turistas posam diante do lago da cratera Baekdusan
Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

A Coreia do Norte envia cadetes e soldados em peregrinações à montanha para jurarem sua lealdade ao seu líder, Kim Jong-un, que alega ser da "linhagem Baekdu". O lago também tem proeminência na propaganda do Norte. Quando o pai e antecessor de Kim, Kim Jong-il, morreu no inverno de 2011, a mídia de notícias norte-coreana alegou que o gelo espesso no lago rachou "de forma tão ruidosa que pareceu sacudir os céus e a Terra".

Na Coreia do Sul, o hino nacional começa com uma referência a Baekdusan, e as paredes das repartições públicas são decoradas com imagens panorâmicas de Cheonji. Baekdusan figura regularmente na lista dos lugares que os sul-coreanos gostariam de visitar antes de morrer.

Mas por décadas após a Guerra da Coreia, no início dos anos 50, que terminou com a Coreia dividida por uma fronteira fechada, os sul-coreanos foram impedidos pela Coreia do Norte e pela China, a aliada dos norte-coreanos na Guerra Fria, de visitar a montanha. Segundo um tratado de fronteira de 1962, a Coreia do Norte e a China possuem cerca da metade da montanha e de Cheonji cada.

A porta só foi aberta em 1992, quando a China e a Coreia do Sul estabeleceram relações diplomáticas.

Os sul-coreanos passaram a seguir para Baekdusan, escalando as encostas chinesas da montanha. Fora uma reunificação das duas Coreias ou uma decisão repentina do Norte de abrir uma rota por terra cruzando a Península Coreana (ambas pouco prováveis, dadas a tensão elevada na península), a rota pela China é a única forma de poderem visitar sua "montanha sagrada".

Mas essa devoção não é isenta de problemas.

Quando chegam ao topo da montanha, muitos sul-coreanos se sentem compelidos a exibir sua bandeira nacional, dando vivas com braços erguidos e cantando seu hino nacional, o que irrita os guardas de fronteira norte-coreanos nas proximidades. Em 2008, um elenco de celebridades de um popular reality show da TV coreana viajou para Baekdusan com garrafas de água coletadas de cantos remotos da Coreia do Sul e as despejando no Cheonji, no que chamaram de gesto simbólico de unir de novo a Coreia dividida.

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Turista é levado para o topo da montanha Baekdusan
Imagem: Gilles Sabrie/The New York Time

Hoje, guias locais, a maioria chineses de etnia coreana, recitam a rígida proibição do governo chinês a essas atividades.

"Por favor, nada de bandeiras nacionais no cume", disse um deles. "Este não seu Monte Everest."

Esses gestos em grande parte terminaram nos últimos anos, com muitos guardas de parque chineses circulando pelo local para assegurar o cumprimento da proibição.

"Há algo sobre Baekdusan que torna todos os coreanos patrióticos", disse Lee Byong-chul, membro sênior do Instituto para a Paz e Cooperação, em Seul, que visitou a montanha no ano passado com um grupo de ex-autoridades do governo sul-coreano e acadêmicos. "Lá, os coreanos sentem que voltaram às suas raízes."

Aviões da Coreia do Sul geralmente pousam em Yanji, sede do Distrito Autônomo Coreano de Yanbian, no nordeste da China, que é lar de uma grande comunidade de etnia coreana, a maioria descendentes de coreanos que fugiram do governo colonial japonês no início do século 20. Em Yanbian, todas as placas de lojas são tanto em chinês quanto em coreano. O won sul-coreano é aceito tanto quanto o yuan chinês.

Em Yanbian, os turistas sul-coreanos visitam locais históricos associados a patriotas coreanos que lutaram pela independência nacional do governo colonial japonês ou de reinos antigos no norte da China, que os coreanos veem como parte de sua história.

Apesar de não serem autorizados a se aproximarem da fronteira altamente armada do país com a Coreia do Norte, os sul-coreanos em Yanbian também podem ver a Coreia do Norte de perto. Em Tumen, uma cidade à margem do rio que faz fronteira com a Coreia do Norte, os turistas do Sul tiram fotos de si mesmos tendo a Coreia do Norte como cenário de fundo.

Do outro lado do rio estreito, o falecido pai de Kim e seu avô, Kim Il Sung, que governou antes do primeiro, sorriem em grandes retratos pendurados em um prédio voltado para o rio. Atrás deles, se encontra a decrépita cidade norte-coreana de Namyang. Pouca atividade humana era visível.

"Tirar fotos, jogar coisas ou gritar para o lado norte-coreano é estritamente proibido!", diz um aviso em coreano colocado pelas autoridades chinesas, um alerta aos turistas coreanos que fazem passeios de barco por US$ 20 (cerca de R$ 65) pelo rio, para chegarem mais próximos da Coreia do Norte e que são conhecidos por jogar comida e dólares aos norte-coreanos.

Park Jong-ae, 29 anos, uma coreano-chinesa que ganha a vida como guia para turistas sul-coreanos em Baekdusan, disse que os recentes alertas pelo governo da Coreia do Sul de possíveis ataques terroristas pela Coreia do Norte reduziram o número de visitantes à montanha. Atualmente, a grande maioria das pessoas que descem da frota de ônibus ou vans Mercedes de 10 lugares para subir a pé o curto trajeto até o topo da montanha é chinesa, ela disse.

Park Jae-hee, a escritora, disse que as recentes tensões de seu país com a China devido à decisão da Coreia do Sul de aceitar a instalação de um sistema de defesa antimísseis americano, e os rumores de que a China pode endurecer as restrições de visto aos sul-coreanos, fizeram com que ela se apressasse.

Além disso, ela está iniciando uma nova carreira como escritora de viagens. Ela queria a bênção de Baekdusan.

"Quanto mais velha ficava, mais queria visitar Baekdusan", ela disse. "Então me apressei, antes que fosse tarde demais. Não há garantia de que poderei vir e ver Cheonji de novo antes de morrer."

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AFP