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Como hackers ligados ao governo russo invadiram a eleição americana

Kevin Lamarque/Reuters
Imagem: Kevin Lamarque/Reuters

Eric Lipton, David E. Sanger e Scott Shane

Em Washington (EUA)

14/12/2016 16h19

Quando o agente especial do FBI Adrian Hawkins telefonou para o Comitê Nacional Democrata em setembro de 2015 para transmitir notícias perturbadoras sobre sua rede de computadores, ele foi transferido, naturalmente, ao setor de atendimento.

Sua mensagem foi curta, mas alarmante. Pelo menos um sistema de computadores pertencente ao comitê tinha sido comprometido por hackers que investigadores federais chamam de "Dukes", uma equipe de contraespionagem ligada ao governo russo.

O FBI sabia muito bem: tinha passado os últimos anos tentando afastar os Dukes do sistema de e-mails não sigilosos da Casa Branca, do Departamento de Estado e até do Estado-Maior, uma das redes mais protegidas do governo americano.

Yared Tamene, o funcionário terceirizado de apoio tecnológico do comitê democrata que atendeu ao telefonema não era especialista em ciberataques. Suas primeiras medidas foram verificar os "Dukes" no Google e realizar uma busca superficial do sistema de computadores do comitê democrata em busca de pistas de uma ciberinvasão. Segundo seu próprio relato, ele não examinou direito mesmo depois que Hawkins ligou diversas vezes ao longo de várias semanas --em parte porque ele não tinha certeza se a pessoa era um verdadeiro agente do FBI e não um impostor.

"Eu não tinha meios para distinguir o telefonema que eu recebi de um 'trote'", escreveu Tamene em um memorando interno, obtido pelo "The New York Times", que explicou seu contato com o FBI.

Foi o primeiro sinal crítico de uma campanha de ciberespionagem e guerra de informações destinada a interferir na eleição presidencial de 2016, a primeira tentativa do gênero por um governo estrangeiro na história dos EUA. O que começou como uma operação de obtenção de informações, segundo autoridades da inteligência, afinal se transformou em um esforço para prejudicar uma candidata, Hillary Clinton, e inclinar a eleição para seu adversário, Donald Trump.

Assim como outro famoso escândalo eleitoral dos EUA, começou com uma invasão do comitê democrata. A primeira vez, 44 anos atrás, nos antigos escritórios do comitê nos edifícios Watergate, os invasores plantaram equipamentos de escuta e vasculharam um armário de arquivos. Desta vez o assalto foi conduzido de longe, dirigido pelo Kremlin, com e-mails falsos para obter informações e códigos de computador.

Um exame feito pelo "Times" da operação russa --com base em entrevistas com dezenas de atores visados no ataque, autoridades de inteligência que o investigaram e membros do governo Obama que avaliaram qual seria a melhor reação-- revela uma série de sinais que não foram levados em conta e uma constante subestimativa da seriedade do ataque cibernético.

O encontro atrapalhado do comitê democrata com o FBI seria a melhor oportunidade de deter a invasão russa, mas se perdeu. O fracasso em entender o âmbito dos ataques minou os esforços para minimizar seu impacto. E a relutância da Casa Branca a reagir significou que os russos não tiveram de pagar um alto preço por seus atos, uma decisão que poderia ser crítica para evitar futuros ataques cibernéticos.

A abordagem discreta do FBI fez que os hackers russos vagassem livremente pela rede do comitê durante quase sete meses antes que autoridades graduadas do Partido Democrata fossem alertadas sobre o ataque e contratassem especialistas para proteger seu sistema. Enquanto isso, os hackers seguiram para alvos fora do comitê, incluindo o presidente da campanha de Hillary, John D. Podesta, cuja conta privada de e-mail foi invadida meses depois.

Até mesmo Podesta, uma figura importante de Washington que havia escrito em 2014 um relatório sobre privacidade no ciberespaço para o presidente Barack Obama, não compreendeu realmente a gravidade da invasão.

No último verão, os democratas viram com fúria impotente seus e-mails privados e documentos confidenciais aparecerem online dia após dia --obtidos por agentes da inteligência russa, postados no WikiLeaks e em outros sites, depois citados na mídia americana, incluindo o "Times". Trump citou com júbilo durante sua campanha muitos dos e-mails saqueados.

Entre as consequências estão a renúncia da deputada Debbie Wasserman Schultz, da Flórida, da presidência do Comitê Nacional Democrata, e da maioria de seus principais assessores. Democratas importantes foram postos de lado no auge da campanha, silenciados por revelações de e-mails embaraçosos ou consumidos pelas dificuldades para reagir à invasão. Embora pouco notados pelo público, documentos confidenciais obtidos pelos hackers russos da organização irmã do comitê democrata, o Comitê de Campanha para o Congresso Democrata, apareceram em disputas legislativas em uma dúzia de Estados, manchando alguns deles com acusações de escândalo.

Nos últimos dias, um presidente-eleito cético, os órgãos de inteligência do país e os dois principais partidos se envolveram em uma extraordinária disputa pública sobre se há evidências de que o presidente russo, Vladimir Putin, passou da mera espionagem a tentar deliberadamente subverter a democracia americana e escolher o vencedor da eleição presidencial.

Muitos dos assessores mais próximos de Hillary Clinton acreditam que o ataque russo teve um impacto profundo na eleição, embora admitam que outros fatores --a fraqueza de Hillary como candidata; seu servidor de e-mails privado; as declarações públicas do diretor do FBI, James B. Comey, sobre sua manipulação de informação sigilosa-- também foram importantes.

Embora não haja como ter certeza do impacto definitivo da invasão, isto está claro: uma arma de baixo custo e alto impacto que a Rússia havia testado em eleições da Ucrânia à Europa foi treinada nos EUA, com uma eficácia devastadora. Para a Rússia, com uma economia enfraquecida e um arsenal nuclear que não pode usar sem deflagrar uma guerra total, o poder cibernético se mostrou a arma perfeita: barata, difícil de perceber e de localizar.

"Não deveria haver nenhuma dúvida na mente de ninguém", disse o almirante Michael S. Rogers, diretor da Agência de Segurança Nacional e comandante do Comando Cibernético dos EUA, em uma conferência após a eleição. "Isto não foi algo feito casualmente, não foi algo feito por acaso, não foi um alvo escolhido arbitrariamente", afirmou. "Foi uma iniciativa consciente de um país para tentar alcançar um efeito específico."

Para as pessoas cujos e-mails foram roubados, essa nova forma de sabotagem política deixou um rastro de choque e danos profissionais. Neera Tanden, presidente do Centro para o Progresso Americano e uma importante apoiadora de Hillary, lembra de entrar nos agitados escritórios de transição de Hillary humilhada ao ver seu rosto nas telas de TV enquanto analistas discutiam um e-mail vazado em que ela chamou de "abaixo de ótimos" os instintos de Hillary.

"Era apenas um soco no estômago de traição todos os dias", disse Tanden. "Foi a pior experiência profissional da minha vida."

Os EUA também realizaram ataques cibernéticos, e em décadas passadas a CIA tentou subverter eleições estrangeiras. Mas o ataque russo é cada vez mais visto em todo o espectro político como um marco histórico terrível, com uma notável exceção: Trump rejeitou as conclusões dos órgãos de inteligência que em breve supervisionará como "ridículas", insistindo que o hacker pode ser americano ou chinês, mas que "eles não têm ideia".

Trump citou os relatados desacordos entre as agências sobre se Putin pretendia ajudar a elegê-lo. Na terça-feira (13), um porta-voz do governo russo repetiu a zombaria de Trump.

"Essa história de 'hacks' parece uma briga banal entre autoridades de segurança americanas sobre esferas de influência", escreveu no Facebook Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo.

Julian Assange, o fundador e editor do WikiLeaks, resistiu à conclusão de que seu site se tornou um atalho para os hackers russos que trabalham para o governo Putin ou que ele deliberadamente tentou minar a candidatura de Hillary. Mas as evidências em ambos os casos parecem fortes.

No fim de semana, quatro importantes senadores, dois republicanos e dois democratas, uniram forças para prometer uma investigação enquanto ignoravam as alegações céticas de Trump.

"Democratas e republicanos devem trabalhar juntos e através das linhas jurisdicionais do Congresso, para examinar esses incidentes recentes totalmente e criar soluções abrangentes para deter e defender-se de novos ciberataques", disseram os senadores John McCain, Lindsey Graham, Chuck Schumer e Jack Reed.

"Isto não pode se tornar uma questão partidária", continuaram. "As apostas são altas demais para nosso país."

Enquanto o ano chega ao fim, agora parece possível que haja diversas investigações sobre a invasão cibernética russa --a revisão da inteligência que Obama ordenou deve terminar em 20 de janeiro, dia em que ele deixará o cargo, e um ou mais inquéritos no Congresso. Eles vão se debater com, entre outras coisas, os motivos de Putin.

Ele tentou prejudicar a marca da democracia americana, evitar o ativismo antirrusso para os russos e seus vizinhos? Ou enfraquecer o próximo presidente americano, já que supostamente Putin não tinha motivo para duvidar das previsões americanas de que Hillary Clinton venceria com facilidade? Ou foi, como concluiu a CIA no mês passado, uma tentativa deliberada de eleger Trump?

Na verdade, o esquema russo atingiu esses três objetivos.

O que parece claro é que a invasão cibernética russa, diante de seu sucesso, não vai parar. Há duas semanas, o chefe da inteligência da Alemanha, Bruno Kahl, advertiu que a Rússia poderia visar as eleições alemãs no próximo ano. "Os perpetradores têm interesse em deslegitimar o processo democrático como tal", disse Kahl. Agora, acrescentou ele, "a Europa está no foco dessas tentativas de distúrbio, e a Alemanha em uma medida especialmente grande".

Mas a Rússia de modo algum esqueceu seu alvo americano. Um dia depois da eleição presidencial, a empresa de cibersegurança Volexity relatou cinco novas ondas de e-mails de "phishing", evidentemente de Cozy Bear --apelido de um dos dois grupos de hackers russos que a firma de cibersegurança CrowdStrike encontrou dentro da rede do comitê democrata-- visando grupos de pensadores e entidades sem fins lucrativos nos EUA.

Um deles seria da Universidade Harvard, com um trabalho falso anexado e intitulado "Por que as eleições americanas são imperfeitas".

* Kitty Bennett colaborou na pesquisa.