Inteligência dos EUA fracassou em prever avanços nucleares da Coreia do Norte
No início da presidência de Donald Trump, as agências de inteligência americanas disseram ao novo governo que apesar da Coreia do Norte ter construído a bomba, ainda havia bastante tempo (até quatro anos) para desacelerar ou deter seu desenvolvimento de um míssil capaz de atingir uma cidade americana com uma ogiva nuclear.
Segundo as agências disseram ao novo governo, o jovem líder norte-coreano, Kim Jong Un, enfrentava uma série de problemas, o que deu a Trump tempo para explorar negociações ou adotar contramedidas. Um funcionário que participou das primeiras revisões de políticas disse que as estimativas sugeriam que Kim seria incapaz de atacar o território continental dos Estados Unidos antes de 2020, talvez até mesmo 2022.
Kim testou oito mísseis de alcance intermediário em 2016, mas sete explodiram na plataforma de lançamento ou se despedaçaram em voo, o que algumas autoridades atribuíram em parte a um programa de sabotagem americano acelerado pelo presidente Barack Obama. E apesar da Coreia do Norte ter realizado cinco testes atômicos subterrâneos, a comunidade de inteligência estimou que ela ainda levaria anos para desenvolver um tipo de arma mais poderosa conhecida como bomba de hidrogênio.
Em poucos meses, essas avaliações tranquilizadoras tornaram-se extremamente desatualizadas.
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Em uma velocidade que pegou desprevenidas as autoridades de inteligência americanas, Kim apresentou uma nova tecnologia de mísseis e, em rápida sucessão, demonstrou alcances capazes de atingir Guam, depois a Costa Oeste e então Washington.
E no primeiro domingo de setembro, ele detonou uma sexta bomba nuclear. Após uma hesitação inicial entre os analistas, surgiu o consenso de que se tratava do primeiro teste bem-sucedido pela Coreia do Norte de uma arma de hidrogênio, com força explosiva cerca de 15 vezes superior a da bomba atômica que destruiu Hiroshima.
A CIA (Agência Central de Inteligência) e outros serviços de inteligência americanos previram que isso futuramente ocorreria. Por décadas, eles projetaram de forma precisa a trajetória do programa nuclear da Coreia do Norte. Mas a incapacidade deles em prever os rápidos avanços norte-coreanos ao longo dos últimos meses agora figura entre os fracassos mais significativos de inteligência dos Estados Unidos, disseram atuais e ex-autoridades em entrevistas recentes.
Essa desconexão (eles viram que aconteceria, mas não estimaram corretamente o prazo) ajuda a explicar a confusão, os sinais ambíguos e o alarme que definiram a forma como a equipe de segurança nacional inexperiente de Trump respondeu à crise nuclear.
Em entrevista, o general de exército H. R. McMaster, conselheiro de segurança nacional de Trump, reconheceu que a corrida de Kim até a linha de chegada "foi mais rápida e em um prazo muito mais curto do que a maioria das pessoas acreditava".
Como resultado, ele argumentou, "temos que fazer tudo o que estamos fazendo com maior grau de urgência, e temos que acelerar nossos próprios esforços para solucionar a questão sem que ocorra um conflito".
Importantes autoridades de inteligência disseram que começaram a investir em maior peso na aquisição de informação sobre os programas de armas da Coreia do Norte em 2012, colhendo os benefícios ao longo dos últimos dois anos. Mas reconheceram que fizeram duas suposições cruciais que provaram estar erradas.
Elas presumiram que a Coreia do Norte precisaria de tanto tempo para solucionar a ciência de foguetes quanto outros países durante a Guerra Fria, subestimando o acesso dela tanto a modelos avançados por computador quanto a perícia estrangeira. Elas também subestimaram Kim, 33 anos, que assumiu o controle do regime dinástico no final de 2011 e deu ao programa de armas uma maior prioridade que seu pai ou avô.
Obama alertou Trump durante a transição, há um ano, que a Coreia do Norte seria a ameaça mais urgente à segurança nacional, e quase imediatamente o presidente recém-empossado começou a repetir, de forma pública e privada, que tinha herdado "uma confusão" na Coreia do Norte, pois seus antecessores não fizeram o bastante.
Ex-funcionários do governo Obama contestam isso. Mas alguns reconhecem que o levantamento falho pela comunidade de inteligência a respeito do progresso norte-coreano resultou em uma menor pressão para reforço das defesas antimísseis, imposição mais vigorosa de sanções ou considerar uma maior ação secreta.
Não está claro se mesmo com um maior alerta prévio os governos Obama ou Trump poderiam ter feito algo para desacelerar o progresso de Kim.
A fragilidade da inteligência a respeito da Coreia do Norte lança uma sombra sobre as opções de Trump à frente. Muitos no Pentágono veem o fracasso em antecipar os recentes avanços da Coreia do Norte como um lembrete ominoso de quanto pode der errado.
Um ataque preventivo bem-sucedido, por exemplo, exigiria conhecimento preciso das localizações das instalações de fabricação, usinas nucleares e áreas de depósito, e confiança de que ciberataques e ataques eletrônicos debilitariam a capacidade de Kim de retaliar.
Mas Trump não ficou perturbado com a ausência de um alerta, disse McMaster. "Ele entende a natureza humana e entende que nunca contará com inteligência perfeita a respeito de capacidades e intenções."
Desdobramentos cruciais não percebidos
Desde que os Estados Unidos começaram a monitorar os esforços da Coreia do Norte para obtenção de uma arma nuclear, um padrão se repetiu: as agências de inteligência demonstravam excelência em prever a direção e prazo geral do programa, porém sem perceber desdobramentos cruciais.
Desde 2000, o Conselho de Segurança Nacional foi notavelmente presciente a respeito da direção geral da Coreia do Norte, prevendo em um relatório não confidencial que "muito provavelmente" o país contaria com um míssil nuclear capaz de atingir cidades americanas até 2015.
Quatro anos depois, quando os Estados Unidos estavam atolados no primeiro ano da Guerra no Iraque, o conselho refinou sua previsão, dizendo que "a crise com a Coreia do Norte provavelmente chegará ao seu ápice em algum momento nos próximos 15 anos", isto é, até no máximo 2019.
Nada disso foi ignorado. O presidente George W. Bush iniciou um programa para interditar os navios que entregassem material para o programa de armas norte-coreano, e acelerou os esforços secretos para debilitar o programa, sabotando sua cadeia de fornecimento com peças ruins.
Mas o principal foco da CIA era o contraterrorismo, de modo que a cobertura por satélite da Coreia do Norte era com frequência desviada para manutenção da segurança das tropas no Oriente Médio.
Os Estados Unidos ficaram surpresos em 2006, quando foram informados pela China a respeito do primeiro teste nuclear subterrâneo da Coreia do Norte, apenas uma hora antes da detonação.
Eles foram surpreendidos de novo no ano seguinte, quando o chefe do Mossad, o serviço de inteligência de Israel, chegou à Casa Branca com fotos mostrando um reator nuclear em construção na Síria, semelhante ao reator de Yongbyon da Coreia do Norte.
Em 2010, a Coreia do Norte convidou Siegfried S. Hecker, o ex-diretor do Laboratório Nacional de Los Alamos, para uma visita e lhe mostrou uma usina completa de enriquecimento de urânio que construiu dentro de um antigo prédio de Yongbyon. Os norte-coreanos montaram a instalação, em um local sob vigilância constante por satélite, sem serem detectados.
As autoridades de inteligência disseram que há um bom motivo para esse retrospecto falho.
Governos estrangeiros quase nunca tiveram sucesso em recrutar cientistas norte-coreanos como fontes, pois eles raramente são autorizados a sair do país. A Coreia do Norte também parece ter descoberto os padrões de alguns satélites de espionagem americanos.
E apesar de documentos divulgados por Edward J. Snowden terem mostrado que a Agência de Segurança Nacional penetrou na Coreia do Norte, não se sabe se sua ciberespionagem extraiu qualquer coisa útil em uma nação com uma rede de computadores mínima.
Mudança rápida
No final de 2013, a comunidade de inteligência tinha em grande parte mudado sua posição a respeito de Kim.
Agora parece que Kim contava com vários programas de mísseis em andamento simultaneamente, e acelerou os esforços para produção local de peças e combustível de míssil, de modo que os Estados Unidos e seus aliados não puderam cortar o fornecimento.
Obama, cada vez mais preocupado, ordenou múltiplas revisões, incluindo uma no início de 2014, na qual ele autorizou a intensificação de ciberataques secretos e ataques eletrônicos contra o programa de mísseis norte-coreano.
O ritmo dos testes de mísseis acelerou, chegando ao pico de mais de duas dúzias em 2016. Mas pelo menos 10 lançamentos fracassaram naquele ano, incluindo sete de mísseis de alcance intermediário conhecidos como Musudan.
Ex-altos funcionários do governo Obama disseram que permanece não claro se o esforço de sabotagem contribuiu para os testes fracassados. Mas isto está claro: em outubro de 2016, Kim ordenou a suspensão dos testes dos Musudan, e o programa de mísseis rapidamente adotou uma direção diferente, concentrando-se em uma nova geração de motores mais confiáveis e mais potentes.
Por várias semanas, enquanto este artigo era preparado, as agências de inteligência se recusaram a comentar. Após sua postagem online no sábado, Brian P. Hale, o porta-voz do diretor nacional de inteligência, emitiu uma declaração dizendo que "qualquer sugestão de que não vimos que esses testes ocorreriam é extremamente errada".
"A comunidade de inteligência sempre avaliou que Kim Jong Un estava firmemente comprometido com o desenvolvimento de capacidade nuclear", acrescentou Hale. "Portanto, não ficamos surpresos com seu ritmo acelerado de testes nos últimos anos."
Previsões e física
No início de 2018, há vários debates dentro do mundo da inteligência a respeito das capacidades da Coreia do Norte.
A maioria das agências de inteligência diz que a Coreia do Norte conta com um arsenal de cerca de 20 a 30 armas nucleares, por exemplo, mas a Agência de Inteligência da Defesa coloca o número em acima de 50.
Isso é mais do que uma discussão acadêmica. Se o governo Trump tentasse destruir o arsenal, ou em caso de um colapso do governo norte-coreano, o desafio seria neutralizar as armas sem a ocorrência de um lançamento ou que alguma ogiva caia em mãos erradas. Quanto maior o número delas, mais difícil se torna a tarefa.
Mas após ter subestimado a Coreia do Norte, Washington agora enfrenta o risco de exagerar suas capacidades e intenções, argumentam alguns especialistas.
Hecker, o ex-diretor de Los Alamos, argumentou recentemente que a Coreia do Norte precisa "de pelo menos mais dois anos e muito mais testes de mísseis e nucleares" para aperfeiçoar uma arma capaz de ameaçar as cidades americanas.
Ainda há tempo para "iniciar um diálogo", ele disse, "em um esforço para redução das atuais tensões e evitar mal-entendidos que possam levar a uma guerra".
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