Tomar uma cerveja ou andar sem camisa viram motivos para prisão nas Filipinas
Quando seis policiais à paisana, com as mãos firmes nas armas nos coldres, desceram pelos becos sinuosos da favela onde Edwin Panis mora, ele não imaginou que pudessem estar à sua procura.
Panis, 45, bebia cerveja com amigos perto de seu barraco, num morro com vista para a baía de Manila, nas Filipinas. Um estivador e segurança do bairro, ele não se encaixava no perfil dos viciados e traficantes de drogas que são visados pela polícia desde que o presidente Rodrigo Duterte assumiu o cargo, em uma repressão sangrenta que Panis apoiou, assim como muitos filipinos.
Mas momentos depois ele e seus três amigos estavam presos, com as mãos algemadas às costas. Sua infração: tomar cerveja em público. "A guerra às drogas se tornou uma guerra aos bêbados", disse Panis com amargura, dias depois de ser solto de uma cela superlotada.
Com dois anos de governo Duterte, depois de milhares de mortes cometidas por policiais e vigilantes na repressão aos narcóticos, a campanha do governo contra o crime assumiu uma nova direção.
No mês passado, ele autorizou a polícia nacional a começar a prender pessoas por infrações como beber ou urinar nas ruas, ou mesmo estar sem camisa em público. Essas são violações que antes eram reprimidas por seguranças de bairro como Panis.
Desde então, mais de 50 mil pessoas foram detidas por essas ofensas menores.
Não houve banho de sangue do tipo visto na operação de Duterte contra as drogas, mas pelo menos um detido morreu sob a custódia da polícia. Nas favelas de Manila, onde ocorreu a maioria das mortes na guerra às drogas, muitos hoje temem que a menor infração possa custar suas vidas.
"Não há como não estar assustado", disse Amy Jane Pablo, 37, que mora perto de Panis na favela de Tondo e presenciou sua detenção.
Em um discurso no início de junho, depois da morte de uma advogada grávida na região de Manila e de um padre que foi morto a tiros na igreja de uma cidade pequena, Duterte disse que havia "simplesmente crimes demais" e prometeu "mudanças radicais nos próximos dias". E afirmou que as pessoas desocupadas nas ruas eram "potenciais problemas para o público".
A repressão começou imediatamente depois. Em uma semana, a polícia nacional tinha detido 7.000 pessoas, entre elas Panis, por vadiagem, consumo de bebida em público e outras supostas violações dos regulamentos de bairros.
A nova política tem semelhanças com a abordagem policial de "janelas quebradas" adotada há uma geração em algumas cidades dos EUA, segundo a qual reprimir visivelmente infrações menores levaria à queda dos grandes crimes. O inspetor Adonis Sugui, investigador-chefe da delegacia de Tondo, defendeu a campanha dizendo que "a maior parte de nossos crimes começa com bebida em locais públicos".
"Eles tomam uma, assaltam pessoas, matam, causam confusão", disse Sugui. "O presidente Duterte está certo. Quando eles começam a beber, a mente deles fica alterada."
Carlos Conde, um pesquisador da Human Rights Watch em Manila, disse que a campanha na verdade “expandiu a guerra às drogas a outros crimes, usando os mesmos métodos —apenas a força bruta da polícia”.
"Eles dizem que cometemos crimes mesmo quando não cometemos", disse Pablo, a vizinha de Panis, na porta de sua casa no mesmo beco onde ocorreu a prisão. "Eles estão simplesmente tirando as pessoas das ruas."
Depois de sua prisão, Panis foi colocado em uma cela ao ar livre, tão cheia que ele passou a noite de pé, encostado em dúzias de outros homens detidos. No dia seguinte, foram levados de ônibus à prefeitura para uma audiência e depois liberados, com o aviso para aguardarem intimação para ir ao tribunal.
"Se eles não gostam do que você está fazendo, eles o prendem", disse Panis.
Alguns compararam a batida com a lei marcial, um assunto delicado nas Filipinas, onde os anos de regime militar sob o ditador Ferdinand Marcos ainda são lembrados. Duterte, um admirador de Marcos, impôs a lei marcial no sul das Filipinas depois de um levante islâmico no ano passado.
A nova repressão de Duterte não é a lei marcial, que envolveria a suspensão da lei normal e a imposição do regime militar. Mas José Manuel Diokno, reitor da Universidade De La Salle em Manila, disse que a comparação é "muito apropriada".
Segundo ele, a lei marcial de Marcos, que durou de 1972 a 1981, começou com a imposição de "regras ridículas". Homens com cabelos compridos tinham a cabeça raspada à força e pessoas que violavam o toque de recolher eram apanhadas e punidas.
"Acabou com a prisão, tortura e desaparecimento de muitos jovens que foram rotulados de inimigos do Estado", disse Diokno.
Em uma noite de sexta-feira em Don Bosco, um bairro de Tondo, oito policiais em motocicletas patrulhavam a favela densamente povoada. Seus moradores vivem tanto nos becos quanto em suas casas minúsculas improvisadas, e estavam ao ar livre tarde da noite, jogando bingo, cantando karaokê, cozinhando e matando tempo.
Os oficiais disseram às crianças para irem para casa e perseguiram os homens que se reuniam ao redor de garrafas de cerveja ou gim. Em meia hora, tinham detido dois homens por estarem sem camisa e outros quatro por beber na porta de casa.
"Estou só me refrescando, senhor", protestou timidamente um homem sem camisa, mas o policial o mandou subir na garupa da moto para ser levado à delegacia.
Houve forte reação pública à repressão, alimentada em parte pelo que pareciam ser prisões especialmente exageradas. Um vídeo em circuito fechado da polícia prendendo um homem que tinha saído por alguns instantes sem camisa viralizou.
A morte sob custódia de outro homem preso por estar sem camisa —a ofensa específica é "causar alarme e escândalo"— levou a pedidos de uma investigação do Senado. A polícia disse inicialmente que o homem, Genesis Argoncillo, 25, que foi detido diante de sua casa, tinha sufocado porque a cela estava superlotada.
Mas uma foto do cadáver mostrou hematomas graves, e uma autópsia confirmou que ele tinha morrido de trauma por força bruta. Os detentos mais tarde disseram que Argoncillo foi espancado por outros prisioneiros e que ficou caído no chão por várias horas antes de ser levado ao hospital. Dois detentos foram acusados do seu assassinato.
O diretor-geral, Oscar Albayalde, chefe da Polícia Nacional das Filipinas, demitiu alguns policiais envolvidos em incidentes altamente divulgados, mas disse que a repressão vai continuar.
Depois da reação contra a campanha, Duterte disse que prender desocupados é "tolice" e que ele não deu essas ordens à polícia. Ele disse que apenas mandou que eles desbaratassem as reuniões. (A polícia, que chamava a campanha de Operação Vadiagem, logo mudou seu nome.)
Diokno, o advogado, disse que o recuo de Duterte é um exemplo de sua tática de ofuscação.
"Isto simplesmente mostra a verdade nua sobre o tipo de poder que ele usa. Não é um poder baseado na lei, mas um baseado no medo e na violência", disse Diokno, advertindo sobre "dias sombrios" à frente.
"Acho que podemos esperar mais repressão, mais confusão, mais declarações contraditórias do presidente", afirmou ele. "Ao ponto de que nem seus homens terão certeza do que devem fazer."
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