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À espera de mudança na lei, apoiadores de Bolsonaro treinam tiro para poder comprar arma

Instrutor ajuda Natalia Ortega durante sua prática de tiro em uma academia de treinamento de armas em São Paulo - Gabriela Portilho/The New York Times
Instrutor ajuda Natalia Ortega durante sua prática de tiro em uma academia de treinamento de armas em São Paulo Imagem: Gabriela Portilho/The New York Times

Shasta Darlington

Em São Paulo

04/12/2018 04h00

Para Natalia e Rubens Ortega, a única pergunta que resta é: Glock ou Taurus?

O jovem casal se inscreveu em um curso de treinamento com armas em um clube de tiro em São Paulo poucos dias depois que Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, foi eleito o próximo presidente do Brasil, sob a promessa de reverter a situação geral e combater o crime.

Para uma população indignada com os últimos anos de turbilhão político e econômico e preocupada com a escalada de violência, a promessa de Bolsonaro de quebrar a atitude restritiva do país em relação às armas e facilitar para que os "cidadãos de bem" possuam armas foi especialmente importante.

"Queremos voltar a treinar para podermos comprar um revólver quando isso acontecer", disse Rubens Ortega, que aderiu à onda de brasileiros que se preparam para o esperado relaxamento das restrições ao uso de armas. "Só não decidimos ainda qual vai ser."

A posição firme de Bolsonaro contra a criminalidade ajudou a projetá-lo como líder de uma disputa apertada, em um país que sofre um nível recorde de violência epidêmica. No ano passado houve aproximadamente 175 homicídios por dia no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Com frequência simulando dar tiros com os dedos durante seus discursos de campanha, Bolsonaro disse que combaterá a epidemia de homicídios abrandando as leis sobre armas e dando à polícia mais liberdade para atirar contra suspeitos.

"Temos de parar essa coisa do politicamente correto, dizer que desarmar todo mundo vai tornar o Brasil um lugar melhor. Não vai", afirmou Bolsonaro em sua primeira entrevista à televisão após a eleição, apontando que os regulamentos rígidos hoje em vigor não conseguiram conter o fluxo de armas de fogo para as mãos dos criminosos.

Esses regulamentos foram criados na virada do século 21, quando a sociedade civil, diante da crescente violência e da explosão do tráfico de cocaína no Brasil, aumentou a pressão sobre o governo para registrar armas de fogo e regulamentar seu uso.

O Congresso reagiu. Uma lei restritiva conhecida como Estatuto do Desarmamento, aprovada em 2003, exige que os solicitantes tenham pelo menos 25 anos, sem histórico criminal, deem prova de emprego e residência fixos, passem em um teste psicológico e tenham treinamento com armas.

23.ago.2018 - Jair Bolsonaro (PSL) segura chave simbólica da cidade de Araçatuba (SP) como se fosse uma arma - Marcelo Ferraz/UOL - Marcelo Ferraz/UOL
Bolsonaro segura chave simbólica da cidade de Araçatuba (SP) como se fosse arma
Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

O regulamento também deu aos brasileiros duas opções: eles podem tirar licença para uma arma de autodefesa, que deve ser guardada exclusivamente em casa ou num local de trabalho; ou uma arma esportiva, que pode ser guardada em casa e levada a clubes de tiro autorizados, sempre com toda a documentação. No caso de uma arma de fogo para autodefesa, o solicitante também deve declarar formalmente por que a arma é necessária e ter esse argumento aprovado pela polícia.

Diante de um processo de registro tão oneroso, muitos proprietários preferiram entregar suas armas.

O índice de homicídios no Brasil caiu 12% nos quatro anos após a aprovação do estatuto. Mas então os crimes começaram a aumentar de novo, estabelecendo um recorde em 2017, de 30,8 por 100 mil habitantes, segundo o FBSP. (Os EUA tiveram 5 homicídios por 100 mil habitantes em 2015, o ano mais recente para o qual há dados disponíveis, contra 8 por 100 mil em 1996. Até o México teve um índice de assassinatos menor, de 25 por 100 mil no ano passado.)

A venda de armas de fogo ilegais, que também diminuiu imediatamente depois da adoção do Estatuto do Desarmamento, disparou anos depois. Em 2017, houve 42.387 novas armas registradas na polícia, comparadas com 5.159 em 2004.

A promessa de Bolsonaro de facilitar os regulamentos sobre armas e dar à polícia maior liberdade para atirar está preocupando alguns especialistas, que afirmam que mais armas alimentam a violência e que a agressão da polícia precisa ser contida, e não incentivada. A polícia matou 5.144 pessoas no Brasil em 2017, um aumento de 20% em relação ao ano anterior.

A vasta maioria das armas de fogo usadas por criminosos foram adquiridas legalmente em algum momento e as armas de fogo também causam muitas mortes em consequência de acidentes, de abuso doméstico e discussões que saem de controle, disse Ivan Marques, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, que trata de questões de segurança.

Estudos mostram que ter mais armas de fogo em circulação aumenta o número de mortes, mas "não há soluções mágicas", segundo Ilona Szabó, diretora do Instituto Igarapé, um grupo de pesquisa que enfoca questões de segurança. "Precisamos de medidas sustentáveis que tornem nosso país mais seguro."

Apesar do entusiasmo por Bolsonaro e da irritação com a crise de segurança pública, a maioria dos brasileiros, 55%, segundo pesquisa feita pelo Datafolha pouco antes da eleição, acha que a propriedade de armas por civis deve ser proibida, embora esse número tenha caído de 68% em 2013, quando o Datafolha fez a primeira pesquisa sobre essa questão.

Natalia Ortega prepara sua arma durante treinamento de tiro, em São Paulo - Gabriela Portilho/The New York Times - Gabriela Portilho/The New York Times
Natalia Ortega prepara sua arma durante treinamento de tiro, em São Paulo
Imagem: Gabriela Portilho/The New York Times

Luciana Burr, advogada em São Paulo, diz que foi assaltada por bandidos armados seis vezes. Na primeira ela tinha 15 anos. Mais tarde, foi mantida em seu carro num sequestro relâmpago com seu filho de 5 anos. Eles foram levados pela cidade durante duas horas, enquanto adolescentes armados os obrigavam a retirar dinheiro de caixas automáticos. Mas ela ainda é contra permitir que os cidadãos portem armas, afirmando que estar armada não teria ajudado.

"Eu fui pega de surpresa em todas as vezes", disse ela, acrescentando: "Não quero que algum 'cidadão de bem' decida interferir com uma arma. Não quero que alguém tome essa decisão por mim. O risco é muito grande".

Diversas propostas apoiadas pela "bancada da bala", um grupo de legisladores, foram apresentadas no Congresso em uma tentativa de abrandar as restrições às armas. Dias depois da vitória de Bolsonaro, deputados ávidos para impressionar o presidente eleito pressionaram para se votar uma lei, apresentada pela primeira vez em 2012, que permitiria que o limite da idade para possuir uma arma seja de 21 anos, e não exigiria que os interessados provem a necessidade de andar armados.

Parece provável que eles votarão o projeto depois de 1º de janeiro, quando Bolsonaro e seus novos aliados no Congresso tomarão posse. Os conservadores de seu Partido Social Liberal (PSL) ganharam 52 assentos, contra oito anteriores, tornando-se o segundo maior partido na Câmara.

As ações da fabricante brasileira de armas de fogo Forjas Taurus subiram mais de 400% antes da eleição presidencial, pela expectativa de que uma vitória de Bolsonaro abriria caminho para um estouro nas vendas. Mas preocupações financeiras sobre a companhia erodiram parte desses ganhos.

A euforia ao redor da ascensão de Bolsonaro nas pesquisas também provocou uma enxurrada de telefonemas à academia de tiro Centaurus, de pessoas interessadas em cursos, orientação sobre como as leis mudariam ou para a prática de alvo na casa de dois andares transformada em sala de aula e quatro raias de tiro.

"Houve um grande aumento na procura graças ao meu homem, Bolsonaro", disse Nelson de Oliveira Jr., um ex-policial que abriu a academia de tiro em São Paulo em 2003, pouco antes de o governo brasileiro, então de esquerda, adotar o Estatuto do Desarmamento.

Entre eles estão os Ortega, que se inscreveram para treinamento na academia e veem a capacidade de portar uma arma como um fator de dissuasão para o tipo de assalto armado que Natalia Ortega diz que sofreu dois meses antes da eleição.

"Hoje só os criminosos têm armas", disse ela. "Não vou andar pela rua com uma arma na mão, mas um criminoso vai pensar duas vezes se os cidadãos comuns puderem estar armados."