Cidades britânicas adotam o empreendedorismo como alternativa à austeridade
Em comunidades de todo o Reino Unido, a verba de Londres foi diminuindo até desaparecer totalmente, fórmula central da austeridade nacional. Mas aqui no decadente cinturão industrial do noroeste da Inglaterra, o município de Preston aproveitou a crise do corte orçamentário como ímpeto para um remodelamento de base.
Seguindo o modelo Preston, como ficou conhecido, o governo local e outras instituições começaram a direcionar os gastos governamentais para negócios locais. A prefeitura aumentou o salário dos servidores municipais, garantindo que eles ganhassem o suficiente para viver.
Dirigentes locais substituíram o projeto abortado de um shopping center por um mercado retrô-chic que se tornou um ímã para novos negócios. Eles ajudaram negócios de cooperativas, inclusive um café que compra de pequenos produtores, com o intuito de impulsionar o mercado para hortaliças locais ao mesmo tempo em que forma pessoas para trabalhos na indústria hoteleira.
Em suma, Preston aproveitou a austeridade como um catalisador para a autossuficiência.
Preston não foi o único município a se adaptar à austeridade através de experimentos radicais em governança. Outras comunidades apostaram em um capitalismo ainda mais agressivo, investindo em especulação imobiliária em busca de receita-uma história que não tem um final feliz garantido.
"Não parece muito prudente, na escala em que alguns municípios fizeram", diz Tony Travers, especialista em governos locais da London Schools of Economics. "Estou um tanto impressionado com o fato de o governo ter ficado satisfeito em simplesmente observar isso".
Os arquitetos da austeridade, a coalizão governamental liderada pelo Partido Conservador que assumiu o poder em 2010, a defenderam como um inevitável acerto de contas das dívidas deixadas por uma crise financeira global. Eles descreveram seu corte orçamentário como corajoso e até mesmo transformador: a diminuição da generosidade pública forçaria a inovação no governo, ao mesmo tempo em que incentivaria o empreendedorismo no lugar de uma dependência insalubre da esfera pública.
Discorda-se a respeito da validade dessa ideia e dos méritos das consequências, mas que a mudança é um fato está agora acima de qualquer discussão. A austeridade alterou, para o bem ou para o mal, o funcionamento básico do Reino Unido moderno.
Os gastos com serviços locais na Inglaterra caíram mais de 20% em média na última década, calculou o Instituto de Estudos Fiscais em um estudo recente, enquanto áreas especialmente problemáticas como o norte da Inglaterra sofreram cortes muito mais profundos.
Uma vez que há imperativos legais de se manter programas como assistência para idosos e crianças, os conselhos locais fizeram cortes mais profundos onde eles têm poder de decisão. Os gastos caíram mais de 60% em centros para jovens, mais da metade em programas de moradia e mais de 40% em estradas, transportes e programas culturais.
Alguns conselhos locais estão perigosamente próximos de exaurir suas reservas, e alguns poucos foram em direção à falência. Os sinais de mudança são palpáveis e onipresentes: os idosos esperam por ônibus dirigidos por voluntários que substituíram linhas públicas desativadas; pacientes aguardam por horas nos hospitais até poderem ser atendidos por algum médico sobrecarregado; administradores de escolas lutam para fornecer itens básicos como casacos de frio e absorventes para estudantes.
A maior parte do Reino Unido agora se vê em uma incômoda encruzilhada: ou aumentam os impostos, ou os serviços locais quase que certamente continuarão a diminuir.
Em Preston, cidade de 140 mil habitantes, a administração buscou um caminho que contornasse essa opção impalatável. Eles transferiram o foco dos gastos públicos para negócios locais, com a intenção de manter mais dinheiro dentro da comunidade em vez de enviá-lo para bancos internacionais ou gigantes do varejo global.
Esse remodelamento começou com o fim da abordagem adotada anteriormente para o desenvolvimento econômico, uma tentativa fracassada de mais de uma década de revigorar o centro abandonado com um novo centro comercial.
O fim veio em 2009, em um momento em que a austeridade começava a forçar cortes em serviços de saúde mental e para a juventude, e enquanto a prefeitura se via sobrecarregada pelo desemprego, pela falta de moradia e pelo desespero.
"Foi horrível", lembra Matthew Brown, líder do Conselho Municipal de Preston, e despudorado membro de esquerda do Partido Trabalhista. "Ficamos totalmente limitados em nossa capacidade de ajudar as pessoas".
Em uma noite de março de 2012, Brown foi até o pub do bairro para se encontrar com um especialista de uma instituição de pesquisa focada em reavivar a sorte de comunidades locais. O fruto da conversa foi o diagrama para o modelo de Preston.
O modelo opera não pela força da lei, mas sim como um pacto social. Em troca de um fluxo constante de dinheiro público, as instituições locais prometem considerar mais do que o lucro ao construir novas instalações, empregar e pagar funcionários e contratar serviços.
No começo, alguns dos colegas de conselho de Brown resistiram às suas ideias, que viam como caprichos idiossincráticos. Mas à medida que a austeridade esgarçava o tecido social, suposições ideológicas básicas passaram a ser reconsideradas.
"É uma mudança sistêmica", diz Neil McInroy, CEO da instituição de pesquisa Center for Local Economic Strategies e o homem que Brown encontrou no pub. "Havia um clima geral de pessoas buscando por respostas à austeridade".
Quando teve início o modelo Preston, as instituições locais participantes estavam direcionando somente 5% de seus gastos dentro de Preston e 39% dentro do Condado de Lancashire, de acordo com uma análise do centro. Em 2017, essas proporções já haviam subido para 18% e 78% respectivamente.
"Existe uma correlação entre miséria e criminalidade", diz Clive Grunshaw, comissário de polícia de Lancashire. "Se for possível investir nessas comunidades, então elas claramente vão se beneficiar".
Nos dois últimos anos, os conselhos locais da Inglaterra aumentaram as compras de terras e imóveis de 2,8 bilhões de libras anuais (cerca de R$ 13 bilhões) para 4 bilhões de libras (cerca de R$ 19 bilhões), de acordo com dados do governo. Ao mesmo tempo, o empréstimo total dos conselhos locais ingleses aumentou de 4,4 bilhões de libras para 10 bilhões de libras (cerca de R$ 48 bilhões).
O órgão que estabelece as normas para a gestão da verba governamental, o Chartered Institute of Public Finance and Accountancy, alertou recentemente que atrelar as finanças do conselho local às variações dos portfólios de investimentos imobiliários talvez não seja uma grande ideia.
"Os serviços locais ficam então ligados diretamente ao sucesso ou não do mercado imobiliário, que pode ser volátil", diz Don Peebles, diretor de políticas do instituto. "Quanto mais serviços são financiados através desses rendimentos de investimentos, maior o risco".
Gerry Clarkson não concorda. Ele lidera o conselho do distrito de Ashford no sudeste da Inglaterra. A austeridade cortou 40% do orçamento de seu conselho, resultando em aumentos de impostos para lixo e reciclagem, cortes em centros esportivos públicos e um excedente de queixas.
"Eu disse, 'Parem de resmungar e parem de chorar em cima de sua cerveja'", lembra Clarkson. "'Não precisamos de verba do governo. Vamos nos comportar como uma empresa'".
No total, Ashford investiu mais de 50 milhões de libras (cerca de R$ 243 milhões) em empreendimentos imobiliários nos últimos seis anos. Como Clarkson gosta de contar, esses investimentos produziram rendimentos que devem passar de 3 milhões de libras (cerca de R$ 14 milhões) este ano.
Tudo isso amorteceu o impacto da redução da verba que Ashford recebe do governo, que passou de 8 milhões de libras em 2010 para 125 mil libras no ano passado e ruma ao zero em 2019. Ashford conseguiu manter grande parte de seus serviços públicos juntamente com alguns dos impostos sobre propriedades mais baixos do condado.
Mas o que acontece se a economia desacelerar ou se o preço dos imóveis cair? Gerir um governo como se fosse um negócio é geri-lo de uma forma que torna o fracasso uma possibilidade.
"Você não vai querer impedir que os governos locais sejam empreendedores", diz Laurence Ferry, especialista em finanças públicas da Universidade de Durham. "Ao mesmo tempo, os conselhos precisam tomar cuidado ao entrar em áreas que não dominam".
Os governos podem não conseguir avaliar adequadamente os riscos de indústrias como o varejo, que hoje está sendo rapidamente transformado pelo comércio eletrônico.
Clarkson ouve isso e sorri o sorriso de um homem que não está disposto a ser derrotado por apreensões mesquinhas. "Não se consegue uma manicure online", ele disse. "Não se consegue uma xícara de café online".
Ele insiste que Ashford ficará bem, porque sua economia é baseada na moradia-uma commodity que, como ele diz, de certa forma é impermeável ao risco. "Não há nada mais seguro do que casas", diz.
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