Em 2009, o STF (Supremo Tribunal Federal) cometeu dois erros ao julgar o caso Raposa Serra do Sol. O primeiro foi admitir que na decisão de um caso concreto, de uma terra indígena específica, os ministros pudessem criar regras para todas as terras indígenas do país, mesmo que essas regras nada tivessem a ver com o caso em julgamento.
Quem estuda processo civil sabe que um precedente não é uma lei, que pode ter o conteúdo que o legislador quiser, mas, sim, o conjunto de razões universalizáveis que sejam pertinentes ao caso. A situação foi tão inusitada que nem os próprios ministros sabiam do que chamar essas regras que eles estavam, do nada, criando. Alguns chamaram de "condicionantes". Outros, de "salvaguardas". Eu prefiro o nome usado pelo Ministro Ayres Britto: "achegas". Um mineiro teria dito que são um trem. Quer dizer, algo indefinido, qualquer coisa. Ninguém sabe.
O segundo erro foi permitir que a leitura literal e isolada de um tempo verbal definisse o direito de todos os povos indígenas do Brasil. O tempo verbal presente no art. 231 da Constituição significaria que os índios só teriam direito às terras que "ocupam" em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. "Ocupam", não "ocuparam".
Esse é um argumento tão singelo, bobo mesmo, que é difícil acreditar que ele prevaleceu.
Em primeiro lugar, nada nos debates da constituinte, que estão disponíveis no site do Senado Federal, indica que a Constituição pretendesse validar todos os abusos e atrocidades cometidos contra os povos indígenas, para tomar-lhes as terras, desde que cometidos até 4 de outubro de 1988. Nada. Basta ler os textos.
Em segundo lugar, o tempo verbal presente é utilizado pelas constituições brasileiras desde 1934. Nela, na autoritária constituição de 1937 e na democrática, de 1946, protegiam-se as terras em que "se achem localizados", os índios. Depois, na Constituição, mais uma vez, autoritária, de 1967, assegurava-se aos índios "a posse permanente das terras que habitam". Quer dizer, o tempo verbal presente não é nenhuma novidade, nem foi usado em 1988 com o propósito de resolver eventuais conflitos fundiários que existissem. Criar um argumento sobre esse tempo verbal é simplesmente uma inverdade histórica.
Além de inverídico, esse pensamento cria uma situação absurda: para os índios, seria melhor que a Constituição de 1988 não existisse. Nesse caso, o tempo verbal presente reportar-se-ia à data da Constituição de 1967, quando a ocupação indígena era maior que em 1988. Assim, inusitadamente, uma constituição autoritária seria melhor para os índios que a "Constituição Cidadã" de 1988. Ao ignorar a história constitucional brasileira, esse argumento transforma o texto de 1988 em uma Constituição de triste memória para esses povos, pois terá validado décadas de esbulho violento de suas terras.
Em terceiro lugar, se for possível sair um pouco da literalidade do texto, será possível ver que uma Constituição pautada pela dignidade humana, pelo respeito às minorias e pela promoção da diversidade jamais poderia ser interpretada como uma ferramenta de opressão justamente desses grupos marginalizados, com os quais ela tanto se preocupou. Ainda mais por causa de um mero tempo verbal.
A interpretação que se afirmou em 2009 é, por tudo isso, claramente afastada daquilo que pretende a Constituição. As terras indígenas são aquelas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Essa tradicionalidade da ocupação é que deve definir as suas dimensões, não uma data aleatória. O STF terá, agora, a oportunidade de corrigir esse erro histórico. Que argumentos melhores possam prevalecer.
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