Em 1994, o cantor e compositor Chico Science —junto à Nação Zumbi— evocava, na canção "Da Lama ao Caos", o escritor potiguar Josué de Castro, autor de "Geografia da Fome". Citava que com a barriga vazia não se consegue dormir.
Se naquela época o Brasil ainda estava sob impacto dos homens-gabiru revelados por Xico Sá, hoje a fome tem outra cara: ela está nas ruas, nas grandes cidades, tocando a campainha para pedir esmola.
Os improvisos do governo ao criar um novo programa (o Auxílio Brasil, matando o Bolsa Família) mostram que, de pensado para o povo, ele não tem nada (ou muito pouco). Nem mesmo a base de dados para estimativa de pobres foi atualizada e se baseia (pasme!) em um cenário de 2010, quando o Brasil tinha uma economia em ascensão e o ex-presidente Lula (PT) previa que iríamos ser a quinta economia do mundo em 2016.
Não só não viramos a quinta economia, como mergulhamos em uma crise política, econômica e social que fez o país estagnar ou retroceder em quase todas as conquistas sociais a partir de 2015. Vivemos hoje um caos construído ao longo de meia década perdida.
E foi justamente quando mais pessoas precisaram que surgiu a tal "fila de espera" para o Bolsa Família —agora para o Auxílio Brasil. Nome bonito, não é? Esperamos sempre para sermos atendidos no médico, para passar as compras no caixa ou para o garçom trazer o pedido do jantar.
Mas essa não é uma simples espera; nem é espera de minutos, mas de meses, de pessoas que correm risco de morrer com insegurança alimentar grave. Deveríamos chamar, sim, de fila da fome.
Hoje, no país, 15 milhões de famílias estão inscritas no Cadastro Único em situação de extrema pobreza (renda per capita de até R$ 89 ao mês). Outros 2,9 milhões em pobreza (R$ 89,01 a R$ 178/mês). O governo, porém, lançou um novo programa, mas com apenas 14,5 milhões de vagas: ou seja, deixou 3,5 milhões de famílias de fora —algumas dela na completa miséria. São 14 milhões de pessoas (ao se pensar em uma média de quatro indivíduos por família), gente de carne, osso e dores, igual a você e eu.
Ao procurarem um dos CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) dos 5.570 municípios do país para se inscreverem, elas estão gritando de dor, de fome. Não pedem ali uma casa, remédios ou educação para os filhos. Elas gritam ao governo para não morrerem de fome.
Não há outra prioridade ao ser humano com fome que não seja comer. Por tabela, não deveria um país civilizado deixar 7% de seus filhos esperarem uma brecha no orçamento para matarem a fome. Não falta dinheiro (estamos falando de uma mixaria em termos de orçamento federal), falta querer, mas falta também organização.
O improviso do governo mostra um governo sem pé na rua. A começar pela tentativa absurda de excluir os municípios do processo de cadastro, à falta de estimativas de pobres atualizadas para a base de dados. Pior, um programa incompleto, sem verba para ajudar a todos. Tudo é uma violência contra os brasileiros.
Violência também dos muitos brasileiros que criticam uma foto de um ator comendo um acarajé com camarão em uma ocupação de pobres. Ela indignou mais as pessoas que a foto da fila de gente esperando ossos de carne, como vimos no Rio ou em Cuiabá. Ou seja, o problema é o pobre comer bem porque alguém doou, e não a falta de comida?
Os burocratas não saberão, nunca, o que é a dor da fome, a falta de um teto ou mesmo ser invisível para quem passa. Parecem não ver que, para alcançar todos os famintos, é preciso tirar amarras. Teto de gastos para fome? Tratar cidadãos da pátria amada assim é de uma crueldade que se assemelha à tortura.
Antes que alguém pense em criticar, essas pessoas não têm culpa da nossa história de corrupção, da má gestão da pandemia e muito menos da péssima educação pública nacional. Elas são, sim, as vítimas.
Já rodei praticamente todo o Nordeste e boa parte do Norte para contar histórias aqui no UOL. A vida real não se parece com a desenhada nos gabinetes, nem podem esperar por uma boa vontade parlamentar. Tampouco a fome cabe no tempo de um processo judicial.
Nesse vácuo, como sempre, pessoas de boa-fé ajudam quem passa fome. Enquanto o governo não se organiza, parte do povo faz isso para não deixar irmãos brasileiros morrerem de fome à luz dos dias nos semáforos e embaixo de viadutos.
A miséria hoje não tem (nem deve ter) a cara do sertanejo do Nordeste. Ela está vomitada em cada esquina desse país, especialmente nas grandes cidades. Todos veem, mas o Brasil real não quer enxergar. Enquanto houver fila, não deveria haver paz. Já dizia Chico Science:
Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça.
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça.
Peguei um balaio, fui na feira roubar tomate e cebola, ia passando uma velha e pegou a minha cenoura.
'Ê, minha véia, deixa a cenoura aqui.
Com a barriga vazia não consigo dormir.
E com o bucho mais cheio, comecei a pensar:
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me organizando posso desorganizar
Chico Science
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.