Príncipe na encruzilhada: como o RS virou polo das religiões afro no Brasil
A cultura negra, por meio da ancestralidade e da religiosidade, dominou os enredos das escolas de samba de Rio de Janeiro e São Paulo durante o carnaval. Os temas escolhidos para retomar a grande festa depois de dois anos não nos causam qualquer espanto, afinal, é notória a história de resistência negra nas capitais paulista e carioca. No entanto, o que se sabe sobre a presença da matriz africana, ou mesmo, as formas de resistência por meio de uma religiosidade afro-brasileira no sul do Brasil?
Você sabia que o Rio Grande do Sul é o estado da federação onde oficialmente se encontra o maior número relativo de autodeclarados adeptos das religiões de matriz africana? E sabia que está em Porto Alegre o 1º quilombo urbano reconhecido pelo Estado brasileiro, o da Família Silva? Já ouviu falar na relevância do Príncipe de Ajudá, na difusão da religiosidade negra no sul do Brasil? Conhecer detalhes como esses é fundamental para desmistificar alguns mitos que ainda hoje operam no imaginário brasileiro e que invisibilizam a experiência negra no estado mais ao sul do país.
O culto aos orixás nos ajudam a compreender um pouco sobre os territórios negros. Essa história se entrelaça com a vivência da liberdade, mesmo em tempos de escravidão, e nos acompanha até o tempo presente. Afinal, com o fim do carnaval fora de época, já estamos em maio, mês por excelência em que refletimos a liberdade negra, por ocasião do 13 de maio, que marcou o desmonte da escravidão. A construção da abolição antecede a data tão festejada pela população negra, que de diferentes formas se fez presente no movimento abolicionista e foi a espinha dorsal da desobediência civil que motivou a assinatura da Lei Áurea naquele 13 de maio de 1888. E não para por aí. O processo inacabado avança até os nossos dias explicitando a forma como o estado nacional brasileiro fragilizou a cidadania a partir de critérios raciais e erigiu toda espécie de impedimentos para a população negra efetivamente acessar direitos.
A liberdade negra foi e é assunto dos mais importantes na historiografia, sobretudo aquela que entende o pós-abolição como um problema historiográfico, ou seja, a ser questionado em pesquisas no que tange aos seus sentidos e significados. Para escrever os capítulos da história do Brasil, é fundamental compreender como foram construídas as possibilidades de não se permitir definir pelos impedimentos e gestar maneiras de acessar direitos. Exemplo disso são as diferentes entidades que abrem os caminhos nas religiões de matriz africana, conforme a região em que o culto é celebrado.
No Sul, é o Bará quem abre os caminhos
A Escola de Samba Grande Rio sagrou-se campeã do carnaval carioca com o samba-enredo "Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu". O culto ao orixá que abre caminhos atravessou o Atlântico e foi incorporado aqui no Brasil ao panteão do Candomblé, que, por sua vez, é o resultado de várias modalidades de crenças e práticas religiosas africanas que acabaram por se reconfigurar em diversas modalidades: Ketu, Angola, Mina Nagô, Xambá, Batuque, entre outros. Todas elas estão relacionadas aos grupos de origem e os territórios que ocuparam aqui no Brasil.
No sul do Brasil, mais especificamente em Pelotas e Rio Grande, o culto de matriz africana recebeu o nome genérico de batuque, uma referência ao toque dos tambores que marcava as festas e que remonta ao século 19. Os grupos de africanos que aqui viviam e cultuavam os orixás diferenciavam-se entre si, mas tinham em comum o culto ao Bará, que abre os caminhos e é o dono da encruzilhada.
Neste culto a distinção está principalmente relacionada nas "nações" ou "lados", uma referência às origem dos ritos ou cruzamentos: Oyó (povo de língua yorubá, origem no Reino de Oyó, atual Nigéria), Ijexá (povo de de língua yorubá, origem no Estado de Osun, atual Nigéria) , Jêje (povos de língua Fon de Daomé, atual Benin), Jêje-Ijexá (encontro dos conhecimentos dos dois grupos em terras gaúchas) e Cabinda (origem nos atuais Congo e Angola).
Um príncipe que nunca esteve só
A história das religiões de matriz afro no Rio Grande do Sul, sobretudo nos cultos a Bará, encontra a tradição quando jogamos luz na figura de Custódio Joaquim de Almeida, um homem negro oriundo de Ajudá (na atual República do Benin) e que ficou conhecido como "Príncipe Negro" ou "Príncipe de Ajudá".
Segundo os historiadores Rodrigo Weimer e Jovani Scherer, o ano de seu nascimento foi 1852 ou 1853 e ele nunca passou pela escravização. Há divergências sobre o caminho que percorreu até chegar a Porto Alegre e mesmo sobre a motivação para a viagem. Já em 1885 e em Porto Alegre, Custódio foi citado em um processo-crime pela alcunha como viria a ficar conhecido: príncipe. A essa altura, ele já era figura bastante conhecida, provavelmente por conta de seus saberes afrorreligiosos do lado Jêje.
"Príncipe Custódio" residia na Cidade Baixa, bairro que, junto dos arredores Areal da Baronesa, Bacia do Mont'Serrat e Colônia Africana, configurava-se como território negro desde fins do período escravista e permaneceu assim nas primeiras décadas do século 20 , como demonstra a pesquisadora Daniele Vieira em "territórios negros em Porto Alegre/RS (1800 - 1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano".
"Príncipe Custódio" é identificado ainda como o responsável pela disseminação do culto aos orixás principalmente na capital, onde teria realizado o assentamento do orixá Bará no Mercado Público Municipal no início do século 20. O que se justifica no fato de que é o mercado o reino do Bará - aqui cabe lembrar da performance da comissão de frente da Grande Rio em que se fez menção á boca que tudo come, pois é no mercado que está a fartura, o que tudo come. De vida longa, Custódio circulou entre diferentes mundos, inclusive em meio a membros da elite política gaúcha, como o ex-presidente da província Júlio de Castilhos e o ex-presidente Getúlio Vargas.
Assim como hoje, as religiões de matriz africana eram perseguidas. O reconhecimento de Custódio dentro da comunidade negra porto-alegrense e seu contato com membros da elite política não só apresenta indícios de uma presença pulsante da experiência negra que se reconfigurou em terras sulinas como nos convida a pensar sobre negociações possíveis. Certamente, os contatos dele lhe permitiram em tempos difíceis algumas barganhas que, dentro de limites bastante restritos, possibilitaram algumas acessibilidades à população negra. Isso ajuda a compreender a referência da imprensa local ao número expressivo de pessoas que acompanharam seu enterramento em 1935.
O cortejo fúnebre reuniu muitas pessoas negras, provavelmente praticantes de matriz africanas, que saudavam Bará no centro do Mercado Público, deslocavam-se para a beira do lago Guaíba para louvar as águas e a riqueza da orixá Oxum e caminhavam até a Igreja da Nossa Senhora do Rosário, honrando ancestrais negros e negras que idealizaram a irmandade e a igreja. Até hoje, esses ritos fazem parte da iniciação de adeptos ao Batuque e, com algumas adaptações, repetem-se nas cidades do interior e na própria capital.
O príncipe e os mitos que se contam sobre ele estão presentes na tradição oral e vêm sendo problematizadas pela história. Não obstante, os sentidos e os significados em torno delas são atravessados por disputas e interpretações que evidenciam as fronteiras da memória e da história. Isso demonstra que houve um assentamento da matriz africana na escrita da história da experiência de liberdade negra no Rio Grande do Sul.
É dessa forma que nos aproximamos de indícios que permitem observar uma Porto Alegre negra que se irradia pelas cidades sulinas. São histórias de pretas minas e descendentes de africanos que circulavam nos mercados e residiam nos territórios negros na virada do século 19 para o 20. Laudos e pesquisas sobre os quilombos urbanos da capital gaúcha destacam as relações entre eles e o mercado público do Bará; nas proximidades da esquina do Zaire que nos anos 1970 abrigou a organização de jovens negros que reivindicaram o 20 de novembro como dia da Consciência Negra. Um movimento social tão decisivo só poderia encontrar guarida em um centro comercial no meio de uma encruzilhada e que desde 2013 possui um monumento em honra ao orixá que abre os caminhos.
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