Opiniões de Lula sobre a Ucrânia são bem-vindas
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tornou-se objeto de críticas, tanto no Brasil como na arena internacional, por suas declarações sobre a guerra na Ucrânia. Em vez de receber uma dura condenação, porém, deveria ele receber um reconhecimento positivo por expressar uma resposta ao conflito que revela que políticos com claras credenciais internacionais na promoção da democracia são capazes de refletir criticamente sobre a posição ocidental hegemônica em relação ao conflito militar.
O debate político atual na maioria dos Estados democráticos é moldado por um consenso que silencia ou marginaliza as críticas às motivações militares ocidentais, especialmente aquelas relacionadas à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Em muitos contextos, políticos e intelectuais enfrentam o ostracismo e até mesmo danos profissionais por apresentarem opiniões que desafiam ou questionam o sólido consenso democrático antirrusso.
Assim, as opiniões de Lula são um sinal bem-vindo de que políticos com uma forte história de comprometimento e aprimoramento democrático podem ter opiniões que destoam das opiniões que adquiriram o status de ortodoxia na arena da segurança global.
Em dois pontos fundamentais a análise de Lula se mostra inteiramente razoável.
Em primeiro lugar, mesmo que questionemos os graus proporcionais de responsabilidade, a alegação de Lula de que a guerra na Ucrânia foi parcialmente causada pelas políticas do governo ucraniano em relação à Otan é perfeitamente sustentável.
Operando em um ambiente de segurança altamente sensível, no qual as atividades da Otan podem induzir extrema incerteza, as políticas do presidente ucraniano e —em maior grau— as da própria Otan têm demonstrado uma clara falta de responsabilidade.
Isto se reflete, em termos gerais, nas persistentes aberturas de Zelensky à Otan e, em particular, no pouco relatado fato de que, ao discursar na conferência de segurança mais importante do mundo em Munique no início deste ano, Zelensky deu a entender que, se a Ucrânia não fosse aceita como membro da Otan, ele consideraria o desenvolvimento de um programa nuclear independente.
As longas tentativas da liderança ucraniana de se posicionar dentro do campo da Otan ocorreram contra um pano de fundo de segurança no qual o papel da Otan é manifestamente ambíguo, e sua definição inicial como uma organização de segurança defensiva não explica mais suas funções ou atividades.
Em qualquer outro contexto internacional, diante da emergência de uma constelação internacional deste tipo, o governo russo seria visto como um governo exposto a uma ameaça tangível à segurança. As implicações disso não precisam ser acentuadas na América Latina. Desde a fronteira dos EUA e o México até o sul do Chile, a maioria dos políticos da região tem plena consciência de que os governos nacionais não possuem um direito simples e inalienável de estabelecer suas agendas de segurança nacional, e processos de reorientação potencialmente agressivos no domínio da segurança internacional trazem importantes riscos.
Para ser absolutamente claro, não deveria ser necessário enfatizar aqui que as discussões dessa natureza estão centradas nas cadeias de causalidade que levaram à guerra na Ucrânia e os assuntos pertinentes à condução real da guerra pertencem a uma esfera moral diferente, exigindo diferentes modos de classificação ética.
Em minha opinião, a agressão russa na Ucrânia não pode, sob nenhuma circunstância, ser justificada, e não existe uma posição moral sustentável que possa justificar a condução da guerra até o momento.
Claramente, os detalhes completos ainda estão por surgir em relação à gama de atrocidades cometidas durante a guerra. Entretanto, o próprio Lula é claro a respeito desta distinção analítica e ele não é um apologista da guerra. Para evitar mais atrocidades, de fato, é essencial uma análise causal mais forte, tal como fez Lula.
Em segundo lugar, Lula se justifica ao sugerir que a posição ocidental deu origem a políticas que podem desencadear uma escalada do conflito e enfraquecer as condições prévias para as negociações de paz.
De fato, em alguns casos, a posição ocidental parece demonstrar cada vez mais a vontade de explorar o conflito para fins de publicidade interna e autolegitimação. Agora é difícil contestar que a guerra na Ucrânia se tornou uma guerra por procuração, na qual alguns governos ocidentais, com poucos custos imediatos em termos de seus próprios soldados, estão engajados por razões determinadas por seus interesses estratégicos, tanto internacionais quanto domésticos.
Este fato significa que, para as potências ocidentais com algum envolvimento no conflito, a negociação de um acordo de paz pode facilmente assumir uma posição contingente e pode depender de uma série de considerações que são externas à própria guerra.
Por exemplo, muitos governos na vanguarda da coalizão internacional anti-Rússia - o Reino Unido, os EUA e a Polônia - têm graves problemas de legitimação doméstica. No Reino Unido, o povo britânico é representado no conflito por um primeiro-ministro que possui um mandato governamental fraco em uma sociedade cada vez mais dividida e cujas ações no cenário internacional são, ao que parece, em parte destinadas a fortalecer a lealdade doméstica, tanto entre o eleitorado quanto entre os membros do parlamento.
Nos EUA, as bases do consenso inter-elite que moldaram a trajetória da política pós-1945 há muito tempo se fragmentaram. A nostalgia de uma fonte outrora confiável de consenso político —a Guerra Fria— parece ser um fator que molda a política externa dos EUA na situação atual.
Uma guerra envolvendo baixos danos colaterais ajuda em tais circunstâncias e alguns governos ocidentais, ou pelo menos alguns membros de alguns governos ocidentais, têm muito a ganhar com uma guerra prolongada.
Os governos que são mais enfáticos em seu apoio à Ucrânia também estão operando internamente com sistemas de bem-estar esgotados, de modo que a estratégia de legitimação clássica de engajamento em hostilidades internacionais a fim de mitigar as experiências domésticas de privação e exclusão pode ser vista como um determinante político.
Além disso, tanto os EUA quanto o Reino Unido têm uma história recente marcada por minar profundamente o constrangimento militar, que agora pode ser simbolicamente remediado em torno das fronteiras da Rússia.
Para melhor compreender os fatos, vale a pena ter em mente que a Ucrânia é um produto da dissolução de um dos impérios mais importantes do mundo moderno. A União Soviética não era um império típico, pois transferia recursos do centro para a periferia em um grau muito maior do que os Impérios da Europa Ocidental.
No entanto, a formação dos estados que sucederam a União Soviética nos anos 1990 ocorreu em um processo muito semelhante à formação do rstado pós-império, ou mesmo, em alguns aspectos, à descolonização. Este processo, na época, foi definido por um fato marcante: comparado com outros processos de desimperialização, foi extraordinariamente pacífico.
Em resumo, deve ser visto como um processo extremamente bem-sucedido, embora constitua um exemplo eloquente de reconfiguração territorial precária. Longe de obter apoio externo, este processo foi muitas vezes conduzido em uma atmosfera de zombaria internacional, na qual os espectadores políticos observaram com alegria o cataclismo doméstico da Rússia sob o presidente Boris Ieltsin.
As lições deveriam ter sido aprendidas de processos anteriores de dissolução imperial na Europa —por exemplo, da dissolução do império germano-prussiano em 1918-19 ou da dissolução do Império Habsburgo ao mesmo tempo— que criaram as condições para a Segunda Guerra Mundial.
A reestruturação da Rússia nos anos 1990 deveria ter sido acompanha de um forte apoio econômico e político internacional e por uma compreensão dos vastos desafios econômicos, territoriais, institucionais e étnicos resultantes da reconstrução do espaço pós-soviético.
Em vez disso, a complacência liberal e a supremacia conservadora schadenfreude foram a ordem do dia. Isto foi expresso de forma mais emblemática na disposição dos EUA e de seus associados de estender as fronteiras da Otan, continuando efetivamente a Guerra Fria depois que a Rússia deixou (por um tempo) o teatro de conflitos.
A atual articulação de modos de conflito militar que normalmente acompanham as experiências de desimperialização pode ser atribuída em parte a tais atitudes. No centro do desastre ucraniano está um terrível fracasso do aprendizado histórico e a culpa por isso vai muito além de Putin e Zelensky.
Deve-se ainda observar que a violação devastadora do direito internacional perpetrada por Putin é um momento de uma sequência de atos militares, em que os fundamentos da ordem jurídica internacional, baseada na proibição de agressões interestaduais, foram corroídos.
As agressões anteriores à ordem jurídica internacional não foram conduzidas pela Rússia, mas, sim, pelos estados que agora se posicionam contra a Rússia e afirmam princípios éticos inabaláveis para sustentar e legitimar sua posição.
A este respeito, mais uma vez, qualquer análise causal da guerra deve nos reconduzir muito antes dos atores mais imediatamente nela envolvidos. A guerra surge como um desastre que está claramente ligado aos atos agressivos cometidos por outros estados, com os EUA e o Reino Unido na vanguarda de tais hostilidades.
As intervenções prudentes de Lula devem ser recebidas como contribuições inteiramente válidas para a análise do que talvez seja o problema mais urgente no mundo de hoje. Um ambiente de segurança internacional no qual tais reivindicações são simplesmente marginalizadas está, por si só, implicado de forma causal na perpetuação do conflito.
Chris Thornhill é professor titular na Universidade de Manchester, de cuja Faculdade de Direito foi diretor. Vencedor do Prêmio Humboldt e Niklas Luhmann Visiting. Foi professor na Universidade de Bielefeld, em 2018. Tem diversos livros publicados pela Cambridge University Press e publicou no Brasil o livro "Crise democrática e Direito Constitucional Global" (Editora Contracorrente, 2021).
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