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Análise: Os donos do poder e uma praga chamada reeleição

Se existe uma maldição na política brasileira ela se chama reeleição: destinada a dar continuidade administrativa, ela se transformou numa forma de perpetuar o poder e iniciar um círculo vicioso de desvios e clientelismo. Não à toa políticos mal iniciam seu mandato e já pensam no próximo. É só olhar para Arthur Lira, o Carismático, e Davi Alcolumbre, o Tradicional (referências mais à frente nesse texto).

Já que falamos em Congresso, gostaria que alguém me apontasse alguma pauta de interesse popular que foi levada até sua aprovação pela Casa Legislativa nesse ano. Não aconteceu. O país ficou paralisado por um ano porque os parlamentares eleitos já estão de olho nas emendas do governo para se cacifarem para o ano eleitoral de 2024. Se fizerem muitos prefeitos garantem apoio para sua reeleição em 2026. Simples.

E o presidente Lula tem um sério problema aí: num país normal, o primeiro ano de governo costuma ser o que chamamos de governo de lua de mel. O presidente ainda tem capital político, recém foi eleito, o Congresso entende isso e aprova os projetos. Nem isso aconteceu no Brasil. Porque o poder mudou de mãos e a agenda agora não é mais do Executivo.

Sedentos por sua perpetuação nas zonas de poder, parlamentares apenas articulam para que nunca mais saiam dali, de Brasília. E eu provo: nas minhas pesquisas de doutorado identifiquei que temos hoje na política tataranetos e mais quantos "tas" você quiser adicionar, de políticos que também estavam no poder, pasmem, em 1890. Não, você não leu errado. Perpetuaram seus parentes na política desde a Primeira República. O elitismo e o clientelismo se perpetuam com nosso sistema político.

E a emenda da reeleição de 1997 foi a pá de cal nesse processo histórico amaldiçoado no Brasil.

Arthur Lira, presidente da Câmara, na minha opinião, o grande personagem político dos últimos anos, tem sonhado nos bastidores com uma possível candidatura à presidência do país. Sim, Arthur Lira, o Carismático (contém ironia e uma referência a Weber). A centralização do poder na Câmara dos Deputados em suas mãos é algo que nós, cientistas políticos e jornalistas, analisamos dia a dia tentando entender como passamos da luta de Ulysses Guimarães e Teotônio Vilela pela redemocratização ao imperador Lira.

Na mesma direção, mais precisamente no salão ao lado, Davi Alcolumbre, o Tradicional, já articula para também voltar à presidência do Senado. É como se a vida fora de Brasília não fosse possível.

O estamento do poder, elástico, resiliente, permite que esses donos do Brasil reajam e sobrevivam às pequenas mudanças históricas impondo dificuldades à inovação. E é exatamente isso que o estamento enraizado no Brasil faz: ele busca sua autopreservação atravessando gerações e perpetuando seus valores baseados na desigualdade social e distanciando-se dos interesses da sociedade da qual fazem parte. O grande instrumento da perpetuação no poder é o controle patrimonialista do Estado. Que, como mostrei nesse texto, acontece desde 1890.

Nas últimas 15 eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil, a maioria dos parlamentares se candidatou à reeleição —uma média de 68%. Dos deputados que optaram arriscar sua sobrevivência eleitoral concorrendo à reeleição, 67% em média obtiveram sucesso em todos esses episódios eleitorais. Apenas 33% não alcançaram a mesma sorte ao amargaram derrotas. Em outras palavras, a decisão pela ambição estática, ou seja, concorrer à reeleição, tem consistentemente proporcionado retornos eleitorais para a maioria dos parlamentares que a tentam.

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"Ah, mas 68% do Congresso foi renovado." Foi mesmo? Deixa eu explicar para você.

O nome disso é camuflagem eleitoral. Os nomes podem ter mudado um pouco mas quando você olha mais de perto vai perceber que são os sobrinhos, os filhos e os netos agora que estão em postos de comando. A nova política com a mesma roupagem.

Do lado do Executivo, apenas Jair Bolsonaro não conseguiu a reeleição. Fernando Henrique, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Todos foram acusados por adversários de abuso da máquina pública. FHC foi duramente criticado por segurar a desvalorização do real frente ao dólar para depois de sua reeleição, em 1998. Oito anos depois, o então candidato Geraldo Alckmin (PSDB) acusou o também então rival Lula de liberar recursos para estados. Aécio Neves, em 2014, foi ao TSE para denunciar o que seu partido entendia como medidas abusivas tomada pela então presidente Dilma. A história cíclica da estagnação política brasileira.

A morte da política está dada. A cerca invisível de arame farpado que nos rodeia aumenta cada dia mais.

Deysi Cioccari é jornalista e doutora em Ciência Política

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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