Evangélicos e os governos Lula: o que mudou?
As últimas pesquisas de opinião pública demonstram um grande afastamento do campo evangélico em relação ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nem sempre é possível entender com precisão o que mudou quando essas medições oscilam, mas o que já sabemos sobre essa relação?
Lula já foi presidente por dois mandatos e sempre se comunicou com desenvoltura como liderança política e como presidente. Também foi muito bem compreendido e avaliado especialmente pela base da pirâmide social brasileira - onde, diga-se de passagem, encontra-se a maioria da população evangélica no país.
O que mudou então? Por que esse segmento rejeita o atual mandato numa proporção tão distinta dos demais? Por que a relação e o diálogo do governo federal com lideranças religiosas e políticas deste universo estão ainda mais conflituosos do que antes?
Para responder a essas perguntas, primeiro precisamos considerar duas mudanças principais: no âmbito social, a mudança do perfil religioso na base da pirâmide brasileira nos últimos vinte anos, tornando-se uma base ainda mais evangélica; no campo político-institucional, o surgimento da extrema direita como força eleitoral e política no Brasil, com o bolsonarismo como seu expoente e elemento organizador. São dois elementos novos com os quais os dois primeiros governos de Lula não precisaram lidar, pelo menos não com essa centralidade.
Essa base da pirâmide mais evangélica implica, em linhas gerais, uma população de maioria periférica, negra, feminina e mais praticante na religião, num Brasil até então de maioria católica não praticante. Ao mesmo tempo, politicamente, trata-se de uma base que vem apresentando alinhamento crescente com pautas conservadoras e simbologias que sintetizem ameaças morais —historicamente atribuídas a malfeitores ou "demônios" da esquerda.
Aqui cabe um parêntese fundamental a qualquer análise desse novo Brasil. Se é verdade que estamos falando de um campo com posicionamentos cada vez mais conservadores, também é verdade que não se pode falar em "voto evangélico" ou percepção "dos evangélicos" como algo homogêneo ou uníssono. Essa é uma lente que sempre deveria nortear tanto a cobertura jornalística quanto a análise política hoje.
Essa base que frequenta mais templos religiosos e organiza sua vida social a partir de laços comunitários no seu entorno cotidiano também está mais exposta a espaços de igreja e associativos, que têm buscado influenciar politicamente seus fiéis de múltiplas maneiras. Isso não era comum no meio evangélico institucional até trinta anos atrás, mas vem se intensificando.
E aqui está o elemento mais importante: tanto esses espaços quanto as lideranças religiosas nacionais e locais se "bolsonarizaram" nos últimos anos. Trata-se de um mosaico de referências nos territórios e nas redes sociais muito mais radicalizados politicamente na sua visão de mundo e na forma de lidar com as pautas políticas e econômicas do país, e não apenas no âmbito dos valores.
Um entorno também cada vez mais identificado com figuras políticas do espectro bolsonarista, como um todo. Além disso, lideranças que, no seu papel de autoridades religiosas e comunitárias, vocalizam cada vez mais a ideia segundo a qual a esquerda e as lideranças políticas do espectro progressista são a fonte do problema.
Se este é o cenário do que mudou de lá pra cá, onde estão os gargalos dessa relação hoje? Eu diria que se resumem a duas frentes: as mensagens e os mensageiros.
A mensagem refere-se à necessidade de uma maior conexão com a vida cotidiana das pessoas. Estamos falando de uma maioria evangélica de baixa renda e feminina nas diferentes periferias Brasil afora. Essa maioria tem muita clareza sobre o que melhora e o que piora suas condições de vida e têm enormes e legítimas exigências e expectativas quanto a essas mudanças e prazos, urgentes, para elas acontecerem. Estamos falando de pessoas que se movem por questões reais de suas vidas, por necessidades práticas do seu cotidiano, e não apenas por fake news que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja.
Curiosamente, foi no âmbito da comunicação, a partir do dia a dia das pessoas, que o presidente Lula sempre trafegou muito bem e sedimentou sua imagem como líder popular, candidato ou presidente.
Em seu terceiro mandato, porém, Lula não tem conseguido exibir a mesma desenvoltura do passado —pelo menos, não no que se refere à base evangélica.
E, ao contrário do que muitos têm repetido à exaustão, não se trata apenas de desacordos que sempre existirão entre a esquerda e grande parte desse grupo, sobretudo em pautas morais ou na esfera dos valores. É sobre perspectiva de futuro e uma grande preocupação com relação a ele.
A pesquisa Atlas perguntou: "Quais são, na sua opinião, os maiores problemas do Brasil hoje em dia?" Criminalidade e tráfico de drogas, de um lado, e corrupção, de outro, aparecem como os maiores problemas apontados pelo segmento evangélico e pela população em geral em igual proporção. "Mudança dos valores tradicionais", por sua vez, surge lá no final da lista de maiores problemas, 3,4 % no geral e 6% entre evangélicos..
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Quero receberA pesquisa Atlas também perguntou: "Como você avalia a situação econômica do país e o mercado de trabalho neste momento? E como você avalia a situação econômica da sua família?". Para 69,4% dos evangélicos, a situação econômica está ruim —o maior percentual entre qualquer segmento analisado (é ruim para 53% da população em geral). A situação do emprego está ruim para 62,1% dos evangélicos (57% na população geral), enquanto a situação econômica de sua família está ruim para 40% dos evangélicos (34% na população em geral).
Mas é sobre as expectativas para o futuro nas três dimensões —Brasil, emprego e situação econômica da família— que o pessimismo entre evangélicos mais se destoa com relação à população em geral e a qualquer outro recorte populacional: 65,6% dos evangélicos acham que a economia brasileira vai piorar (42% na amostra geral), 65,9% acreditam que o emprego vai piorar (41% na amostra geral), e 52,8% esperam uma piora na situação econômica da sua família (32% na amostra geral).
A pesquisa Quaest, também divulgada nos últimos dias, traz outro dado relevante, ao investigar se os brasileiros consideram que "o governo Lula se preocupa com pessoas como você". Entre evangélicos, está a menor proporção registrada dentre todos os demais marcadores sociais para essa pergunta —apenas 36% afirmam que sim, sentem que o governo cuida deles.
E os mensageiros, o segundo gargalo dessa relação entre o governo Lula e os evangélicos?
Um dado, lá no final do relatório da última pesquisa Atlas me chamou a atenção: no recorte para o segmento evangélico, apenas os líderes políticos explicitamente ligados ao bolsonarismo apresentaram imagem positiva, acima de 58%: o ex-presidente Jair Bolsonaro, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o governador Tarcísio de Freitas (SP), por exemplo.
De qualquer outra liderança, mais ou menos ligada à base do governo atual ou identificada com o campo progressista, os evangélicos têm uma percepção negativa extremamente alta —do presidente Lula ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, passando pelo vice-presidente Geraldo Alckmin e pelas ministras Simone Tebet e Marina Silva, ninguém se salva.
Sobre os mensageiros, portanto, estamos falando de uma base de lideranças religiosas que se radicalizou cada vez mais politicamente e se tornou uma barreira, legitimando novas (e outras) vozes na política. Contar com esses novos mensageiros, e intermediários locais, é um desafio ainda maior.
Ergueu-se, nos últimos vinte anos, praticamente uma montanha entre a população evangélica e lideranças políticas vistas como progressistas. O morrinho sempre esteve lá, principalmente devido às pautas morais e ao não alinhamento com as políticas propostas e implementadas por governos de esquerda até então. Mas o morrinho virou uma montanha quase intransponível.
A pergunta que está muita na moda tem sido "como falar com os evangélicos"? Mas deveria ser também "quem fala com os evangélicos"? E, hoje, quem está falando sistematicamente e com muita desenvoltura são lideranças religiosas e comunitárias bolsonarizadas. Tudo isso imerso num ambiente político mais violento e intolerante, como um todo, na sociedade.
Essa persistente e visível dificuldade de interação e compreensão de ambos os lados, portanto, não é apenas sobre um certo preconceito (ainda existente, é verdade) de setores progressistas em relação a esse Brasil mais evangélico desconhecido. Essa parcela da população está também mais blindada por mensagens diárias, dentro e fora dos templos, e refratária a tudo que venha da política no espectro progressista. O bolsonarismo se amalgamou com o campo evangélico nos territórios, não apenas na política palaciana.
Trata-se de uma disputa diária por percepções concretas que se conectem com a vida das pessoas e por identificar a partir de quais intermediários reais, com credibilidade e com conexão cotidiana, se transmitirá o que se quer comunicar a partir deste governo.
O famoso "falar com os evangélicos" não é colocar um conteúdo religioso na boca de políticos e governantes. Não é desrespeitar as fronteiras de um Estado laico a partir de um mandato legislativo ou executivo. Tampouco é ceder a chantagens morais e fisiológicas de uma parcela desse campo representada na política institucional hoje.
É falar com uma população que está especialmente nas margens das cidades, vivenciando suas desigualdades brutalmente. Uma população que claramente não está mais acreditando que necessariamente o que um governo diz, e como diz, irá mudar seus futuros possíveis e, ao mesmo tempo, é bombardeada diariamente, online, ao vivo e a cores, pelos pânicos morais e desvios de toda ordem atribuídos à esquerda.
Apenas as falas empáticas e diretas e a figura em si do líder popular e do presidente Lula não são mais suficientes como em outras épocas.
É sobre a mensagem, mas também sobre os mensageiros.
*Ana Carolina Evangelista é cientista política e diretora-executiva do Iser (Instituto de Estudos da Religião)
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