Relatos históricos apontam que caixa dois já abastecia o golpe militar de 1964
“Cada um trazia duas maletas, uma em cada braço. No total, seis maletas. (...) Mandei abrir. Começou uma briga, mas olhei e vi que era só dólar, dólar, dólar. Todas elas cheias de dólares. Amarradinhos do banco, aqueles pacotes de depósito bancário. Um milhão e 200 mil dólares.”
A frase acima foi dita pelo coronel reformado Elimá Pinheiro Moreira à Comissão de Verdade da Câmara Municipal de São Paulo em 18 de fevereiro de 2014. Segundo ele o dinheiro --uma quantia que ajustada para os valores de hoje estaria em torno de R$ 9,5 milhões-- fora levado em 30 de março de 1964 pelo então presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Raphael de Souza Noschese, para financiar o apoio do general Amaury Kruel, que havia sido chefe do gabinete militar e ministro da Guerra de João Goulart e comandava o 2º Exército, em São Paulo. Até então, Kruel, que jurava fidelidade ao governo de Jango, seu compadre, aderiu ao movimento que derrubou o governo democrático e instaurou o regime militar.
A “colaboração”, feita com caixa dois de empresas coletado pelas federações de indústria, comércio e agricultura paulistas, corrobora o que Sergio Machado, ex-presidente da Transpetro e hoje preso em Curitiba por envolvimento na Operação Lava Jato, e o empresário Emílio Odebrecht afirmaram: caixa dois em ações políticas sempre existiu.
O episódio de 1964 é o primeiro, no entanto, em que alguns participantes admitiram que houve o financiamento “por fora” --um dos termos usados para caixa dois.
A expressão na política é relativamente recente. Jargão contábil, o caixa dois --ou dinheiro não declarado oficialmente, ao contrário do “caixa um”-- começou a ser usado para designar os tais “recursos não contabilizados” na política partidária a partir dos anos 1980. É de 1982 a primeira menção à prática em jornais: na coluna econômica de Joelmir Beting na “Folha de S.Paulo”.
“Ninguém doava dinheiro de lucro”, afirmou o ex-governador paulista Paulo Egydio Martins à Comissão de Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, dizendo que o valor provinha de caixa dois das empresas. Na época, Egydio Martins era diretor da Associação Comercial de São Paulo.
“Trabalhávamos junto com a federação das indústrias e a sociedade rural. O 2º Exército estava no chão, sem verba para compra e equipagem dos caminhões, sem pneus, carburadores, gasolina. Montei um grupo de coordenação e as fábricas desses produtos doaram para recolocar o 2º Exército em condições operacionais. A reequipagem do Exército ocorreu já no fim do processo conspiratório. Apesar de o general Amaury Kruel ser amigo e compadre do presidente. Tudo feito às escâncaras (de modo transparente)”, afirmou Egydio Martins em 23 de novembro de 2013.
Elimá, morto há dois anos, morava numa casa no Paraíso, zona sul de São Paulo, quando falou sobre o tema, em 2014. Na época com 94 anos, fora aconselhado pela família a não contribuir para a comissão. O presidente do colegiado, o hoje secretário do Meio Ambiente da gestão João Doria (PSDB), Gilberto Natalini (PV), disse que Elimá o levou para o quarto e apontou para a parede: “Aquela é minha farda. Eu nunca tive coragem de vesti-la novamente. O meu Exército não é aquele que me traiu”.
Ninguém doava dinheiro de lucro. O 2º Exército estava no chão, sem verba, sem pneus, carburadores, gasolina. Montei um grupo de coordenação, e as fábricas desses produtos doaram para recolocar o 2º Exército em condições operacionais. Tudo feito às escâncaras.
Paulo Egydio Martins, ex-governador de São Paulo (1975-1979)
Rodovias para o caixa dois
A presença do caixa dois na política brasileira, no entanto, é anterior ao golpe. Autor do livro “Estranhas Catedrais - As Empreiteiras Brasil e a Ditadura Civil-Militar, 1964-1988”, publicado pela Editora UFF, o professor de história da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Pedro Henrique Pedreira Campos diz que a afirmação de Sergio Machado sobre 1946 ser o início de tudo tem fundamento. “É um marco importante porque é criado o Fundo Rodoviário Nacional, que é o criadouro natural das empreiteiras brasileiras.”
O empreiteiro Marco Paulo Rabello, por meio da construtora que levava seu sobrenome, foi o grande nome dessa era, com as grandes obras de JK --o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, e uma boa parte da estrutura da nova capital federal, Brasília, inaugurada em 1960: o Palácio do Planalto, o Palácio do Alvorada, o Palácio do Jaburu, a Catedral Metropolitana e o Supremo Tribunal Federal. “A figura do JK é bem particular”, diz Campos. “Foi um presidente que teve obras importantes, com o poder das empreiteiras muito expresso.”
No livro “Minha Razão de Viver”, o jornalista Samuel Wainer, dono do jornal “Última Hora” e morto em 1980, se lembra de uma passagem na Era JK. “Estava às voltas com dívidas junto ao Banco do Brasil. Um alto funcionário da instituição passou-me uma informação: havia um empresário estreitamente ligado ao presidente, empreiteiro de obras públicas, que costumava socorrer amigos comuns em apuros. Seu nome: Marcos Paulo Rabello. (...) Fui ao encontro do Rabello, que a princípio tentou negar qualquer ligação com Juscelino. Ao constatar a inutilidade da negativa, tornou-se bastante receptivo e sugeriu que eu lhe vendesse 45% da minha empresa. (...) Naquele momento, conheci uma figura indispensável à decifração dos segredos do poder no Brasil: o empreiteiro.”
Empreiteiras passam a bancar campanhas eleitorais
Na ditadura, as grandes empreiteiras estrangeiras deixaram de colaborar com as obras públicas, que passam a um seleto clube de empreiteiras. Segundo a revista “O Empreiteiro”, três grandes construtoras se revezaram no posto de maior do Brasil entre 1971 e 1984, período de execução das grandes obras de infraestrutura do Brasil: Camargo Correa (líder 12 vezes em 14 anos), Andrade Gutierrez e Mendes Júnior.
A Odebrecht figuraria na primeira posição após o restabelecimento da democracia, em 1985. Mesmo assim, deu um salto emblemático a partir de 1971, com a construção da Ponte Rio-Niterói: passaria de 19ª construtora do Brasil em 1971 para a terceira colocação apenas dois anos depois.
Com a Constituição de 1988 e a instituição do chamado “presidencialismo de coalização”, em que só se governa com um amplo leque de alianças, os custos foram passados também para as alianças no Legislativo e nas campanhas eleitorais. “A consolidação desse processo [de caixa dois] se dá nos anos 1980”, afirma o professor da FGV Eaesp (Fundação Getúlio Vargas - Escola de Administração de Empresas de São Paulo) Marcos Fernandes Gonçalves da Silva.
“A novidade a partir dos anos 1990 é quanto os marqueteiros ganham. Era tudo modesto, e de repente os custos são todos inflacionados porque eles entram no esquema, em um conluio com empreiteiros e classe política”, diz o professor. “Há um conluio criminoso e uma ótima maneira de esconder grana, porque o valor [do marqueteiro] é subjetivo.”
A reportagem procurou o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para comentar a respeito da prática de caixa dois e recebeu a seguinte resposta da assessoria: “Não existem condenações por caixa dois especificamente, pois não é uma tipologia de condenação na Justiça Eleitoral. Confira áudio de entrevista do ministro Gilmar Mendes acerca do tema”. Mendes, na ocasião, afirmou que “corrupção pressupõe ato de ofício, então alguém pode fazer a doação [por caixa dois] sem ser corrupção”.
Já a Fiesp disse, em nota, que "não comete ilegalidades e nem compactua com elas". "Sua atual gestão desconhece qualquer episódio de envolvimento da entidade em atos ilegais nos governos militares ou em qualquer período, presente ou passado. A Fiesp tem se pautado pela rigorosa defesa do Estado de Direito e trabalha pelo desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. Se tiverem existido, eventos do passado que contrariem esses princípios devem ser submetidos às devidas apurações."
Também por meio de nota, o Comando Miliar do Sudeste, sucessor da 2ª Região do Exército em São Paulo disse "não ter conhecimento dos fatos narrados". "A Revolução Democrática de 31 de Março de 1964 ocorreu há mais de 50 anos, portanto já faz parte da História. As opiniões citadas representam posicionamentos pessoais, sendo de responsabilidade exclusiva de quem as emitiu. Cumpre destacar, ainda, que o Exército brasileiro não compactua com qualquer tipo de irregularidade, repudiando veementemente fatos desabonadores da ética e da moral que devem estar presentes na conduta de todos os seus integrantes. A força terrestre empenha-se, rigorosamente, para que eventuais desvios de conduta sejam corrigidos, dentro dos limites da lei."
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