De mãe para pai

Casos de jovens desaparecidos após abordagem policial unem famílias desde a Bahia até São Paulo

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo Fernando Frazão/Agência Brasil

Há mais de cinco anos, Rute Fiuza não pode abraçar nem beijar seu filho. Davi Fiuza desapareceu aos 16 anos, depois de ter sido abordado por policiais militares na periferia de Salvador (BA), durante uma manhã quando ia comprar pão.

Duas semanas, Eduardo Aparecido dos Santos vive com a mesma angústia de Rute. Separados pela distância temporal de cinco anos e geográfica de 1.965 km, os dois têm na dor uma união. Dessa dor, querem lutar por justiça.

Rute leu uma série de reportagens produzidas pelo UOL nas últimas semanas sobre o desaparecimento de Carlos Eduardo, filho de Nascimento, também ocorrido após uma abordagem policial, mas em Jundiaí (SP). A pedido da reportagem, ela gravou uma mensagem para o pai que vive drama semelhante ao que ainda vive.

A baiana pede que o pai do rapaz nunca desista de localizar seu filho. Eduardo diz que as palavras de Rute chegaram para confortar seu coração. Leia, abaixo, o que disseram Rute e Eduardo.

Fernando Frazão/Agência Brasil

"Entendo exatamente suas noites mal dormidas"

Rute Fiuza, 50 anos, mãe de Davi

Olá, seu Eduardo. Boa tarde.

Fiquei sabendo da situação que ocorreu com Carlos Eduardo, seu filho. E eu quero me solidarizar com o senhor.

E te dizer que passei a mesma situação. Nesse momento, parece que nenhuma palavra é suficientemente confortável para aquietar o coração da gente, sabe?

É uma situação muito difícil que só quem passa sabe. E eu entendo exatamente o que você está passando. Eu entendo exatamente as suas noites mal dormidas. A falta de apetite. Essa busca incessante por resposta. Por um corpo que a gente não localiza.

Eu não sei se eu tenho muita coisa para te dizer. Talvez tenha algumas coisas para a gente compartilhar também com relação a isso que está ocorrendo.

Você está no caminho certo. É seguir com reportagem, que essas reportagens, elas têm uma repercussão.

E não desista! Não desista, porque é isso o que esse sistema maldito quer. Eles pensam que a gente não vai recorrer, não vai correr atrás. É isso o tempo todo.

No meu caso, já fez cinco anos. O desaparecimento de Davi. Após abordagem policial no bairro que ele estava, que ele morava com o pai. E eu morava bem próximo.

Bem, na verdade, ele morava comigo e com o pai. E, naquele dia, ele saiu para comprar pão e ocorreu a abordagem. E até hoje não localizamos o corpo.

Agora, em abril, vai começar o julgamento deles [PMs acusados pelo Ministério Público], porque o caso foi para a Vara Militar. Mas não quero entrar nesses detalhes também porque acho que não é o momento oportuno.

[...] Em abril, nós teremos em Salvador um encontro de familiares e vítimas do terrorismo do estado. E vamos conversar para você poder vir para esse encontro com a gente, tá bom?

Um abraço forte. Muita força para você e toda sua família, porque é necessário nesse momento se fortalecer, estar junto com os nossos.

Enfim, grande abraço.

Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, desaparecido - Arquivo Pessoal

"Eu pesava 120 kg. Hoje estou pesando 85 kg"

Eduardo Nascimento, 50, pai de Carlos Eduardo (foto)

Nossa, é bom —bom entre aspas, né— saber que a gente não está no mesmo barco sozinho. Agradeço muito essa mãe. Me aliviou muito ouvir o que ela disse. Foi um conforto para coração. Um grande conforto.

Comigo tudo continua tudo do mesmo jeito. A Corregedoria veio para Jundiaí, fez a busca um único dia e não voltou mais. A gente não sabe em que pé anda essa investigação. Foi pedida a quebra de sigilo do celular dos celulares dos policiais, GPS da viatura, mas nada do paradeiro do meu filho.

Eu vou te falar a verdade. Antes de acontecer tudo isso, eu pesava 120 kg. Hoje estou pesando 85 kg. Vou trabalhar, mas não tenho cabeça para trabalhar. Não consigo comer. Meu telefone toca e eu fico desesperado achando que pode ser alguma notícia.

Meu negócio é café e cigarro. Qualquer coisa me deixa nervoso, me estressa. Minha pressão chegou a 22 por 12. É emocional. Enquanto eu não achar meu filho e saber as condições, seja vivo, seja morto, não vou ter paz.

Davi Fiuza com sua mãe, Rute - Arquivo Pessoal

O caso Davi Fiúza

Davi Fiuza desapareceu por volta das 7h30 do dia 24 de outubro de 2014, aos 16 anos, quando conversava com uma vizinha na rua Vila Verde, em São Cristóvão, bairro periférico da capital baiana. Ele foi levado por um grupo de homens. Duas semanas depois, a mãe do adolescente, Rute Fiuza, divulgou o caso, acusando policiais militares pelo sumiço. Segundo o Ministério Público, ela estava certa.

"Eles [policiais] tiraram a camisa do meu filho, colocaram um capuz no rosto dele e amarraram as mãos e os pés. Em seguida, colocaram Davi no porta-malas de um Gol prata e foram embora", diz Rute. Desde então, nunca mais Davi foi visto. O caso dele repercutiu a nível nacional e internacional. A mãe hoje milita pelos Direitos Humanos e auxilia outras famílias vítimas da violência de estado.

Davi foi sequestrado dois dias antes do segundo turno das eleições de 2014. Durante o período eleitoral, a prisão de qualquer eleitor só pode ser feita em flagrante. Em 2014, a Corregedoria da PM repassou o caso para a Polícia Civil, afirmando não ter encontrado indícios consistentes da participação de PMs no caso.

Em 10 de setembro de 2018, o MP denunciou sete policiais militares por sequestro e cárcere privado do adolescente: Moacir Amaral Santiago, Joseval Queirós da Silva, Genaro Coutinho da Silva, Tamires dos Santos Sobreira, Sidnei de Araújo dos Humildes, George Humberto da Silva Moreira e Ednei da Silva Simões. Está marcada a audiência de oitiva das testemunhas no caso do jovem para o dia 17 de abril de 2020. Os PMs negam envolvimento no caso.

O caso Carlos Eduardo

Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, 20, foi a um bar, na rua Benedito Basílio Souza Filho, no bairro Jardim São Camilo, periferia de Jundiaí, no interior de São Paulo, às 17h de 27 de dezembro de 2019 confraternizar com quatro amigos brancos.

Os cinco foram abordados pela PM, segundo as testemunhas. Apenas Nascimento, o único negro entre eles, foi colocado dentro do carro policial. Desde então, nunca mais foi visto.

O caso foi registrado como desaparecimento no fim do ano passado. Só seis dias depois a Policia Civil iniciou buscas pelo jovem e investigar o sumiço.

A família diz ter esperança de que a polícia consiga encontrar o jovem, mas também faz investigações por conta própria. "A procura continua. Todos os dias. A Corregedoria afirmou que os PMs foram afastados, mas queremos saber onde está meu filho", disse o pai, Eduardo Aparecido do Nascimento.

Arquivo pessoal

PM afastou policiais; MP apura

Após investigação da Corregedoria, a Polícia Militar afastou do serviço operacional os policiais suspeitos de terem sumido com Carlos Eduardo.

O afastamento ocorreu após a Corregedoria ter conseguido identificar o carro que fazia patrulhamento na região do Jardim São Camilo, onde o jovem estava, no horário e local indicados pelas testemunhas. Mas entidades de direitos humanos e a ouvidora da polícia cobram que o caso seja resolvido.

Não foi confirmado o número de policiais afastados. Eles são lotados no 49º BPM (Batalhão da Polícia Militar). O pai do rapaz chegou a ir ao batalhão, no fim do ano passado, à procura do filho. Lá, recebeu a informação de que não havia registro de abordagem na data, local e horário indicados.

A Delegacia de Investigações Gerais (DIG) de Jundiaí investiga o caso. Testemunhas e familiares do jovem foram ouvidos. A Polícia Militar instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) pelo batalhão da área.

A Corregedoria da PM acompanha as investigações e os militares integrantes do carro citado foram identificados e remanejados para atividades administrativas.

O inquérito policial foi distribuído ao promotor Jocimar Guimarães, de Jundiaí, que investiga o caso paralelamente.

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