Profissão: mães contra zika

Abandonadas pelo parceiro e sem emprego, mulheres veem suas vidas mudarem para cuidar da síndrome dos filhos

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, no Recife Arte/UOL
Arquivo pessoal

Germane Greice, 29, ainda se lembra dos dias em que trabalhava como auxiliar administrativa em uma empresa de logística no Recife.

Casada, o salário dela representava metade da renda da família. Mas tudo mudou no início de 2015, quando sua filha nasceu com microcefalia e, em seguida, teve confirmado o diagnóstico de síndrome congênita da zika.

Depois de usufruir do direito à licença-maternidade, veio a notícia que Greice tanto temia. "Eu fui demitida quando souberam que teria de ir para médicos e terapias com ela. Eu não pedi para sair. Tentei um acordo, porque lá [na empresa] tem os três turnos. Propus ficar em um turno das 14h às 22h, pela manhã faria as coisas com a minha filha. Mas não quiseram acordo e me mandaram embora", conta.

Mesmo que tivesse ficado no emprego, Greice iria perceber que a saúde da criança consumiria mais tempo do que ela previa e que provavelmente seria necessária uma dedicação exclusiva de alguém na família. "Ela faz todo dia fisioterapia. Ainda tem a terapia ocupacional e a hidroterapia. Hoje sou cuidadora da minha filha", relata.

Problema só delas

A mudança de Greice é a mesma de centenas de mães de bebês com a síndrome espalhadas pelo país e que deixaram de lado suas profissões.

Um estudo coordenado pela pesquisadora Tereza Lyra, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), ouviu mais de 600 famílias entre maio e setembro de 2017 e apontou que 95% das crianças mapeadas eram cuidadas por mães. "Os efeitos da síndrome revelaram a profunda desigualdade de gênero. Foram majoritariamente as mulheres que tiveram que deixar seus empregos para assumir a responsabilidade", aponta.

A pesquisa teve dois eixos, com abordagens quantitativas e qualitativas. Os questionários foram aplicados em Pernambuco e no Rio de Janeiro. As 147 entrevistas qualitativas abordaram cinco grupos: profissionais de saúde, mães, outros cuidadores, homens e mulheres em idade fértil, além de grávidas. "Desse grupo, só dois homens --um pai e um avô de uma criança-- cuidavam do filho com a síndrome. Todas as demais pessoas eram mulheres, com destaque também para o papel das avós e das irmãs mais velhas", afirma.

A saída da mãe dos empregos causou um sério dano às finanças das famílias, aliado a um aumento enorme nas despesas. Metade das famílias entrevistadas ganhava entre um e três salários mínimos. "A situação dessas famílias mudou por completo. Os custos com as crianças são crescentes: algumas têm de utilizar cadeiras de roda, além de deslocamentos, remédios", enumera.

A pesquisa também ouviu relatos impressionante de mães na rotina com essas crianças. "Os ônibus não dispõem de boa acessibilidade e, não raro, o motorista vê a criança em uma cadeira de rodas e pula a parada. Sem contar a oferta insuficiente e limitada de serviços de saúde, e esses serviços não conversam entre si. Elas são constantemente obrigadas a repetirem todas as informações", diz a pesquisadora.

Não bastasse isso, as mães ainda encaram desgastes em muitos momentos nos serviços de saúde. "Quem mandou morar perto do mosquito?", contou à reportagem uma das mães sobre a fala que ouviu de um profissional de saúde durante um atendimento.

Lalo de Almeida/Folhapress Lalo de Almeida/Folhapress
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Afastada há dois anos do trabalho

Há casos em que mulheres se afastaram do trabalho sem perder a renda, principalmente no serviço público. Tatiane Gonçalves, 36, é servidora da Prefeitura do Recife e há mais de dois anos está afastada de suas funções. Ela pôde continuar recebendo seus vencimentos porque a prefeitura concedeu a ela uma licença para cuidar exclusivamente da pequena Alice, de 3 anos e 7 meses.

Alice só teve a síndrome da zika diagnosticada aos 8 meses de vida, quando sua pediatra informou que a cabeça dela não estava crescendo como era esperado. Exames confirmaram que se tratava de uma sequela da zika que a mãe contraiu aos dois meses e meio de gravidez.

"Na época, fiquei tão desesperada que pensei em pedir demissão, não sabia que tinha direito [ao benefício]", lembra. "Minha vida hoje é profissão-mãe, 24 horas por dia. Só na terapia ela passa de três a quatro horas por dia, não dá para trabalhar", completa.

A filha dela luta para melhorar a capacidade motora. "Ela teve uma paralisia do lado esquerdo, mas a parte cognitiva foi preservada. O desenvolvimento é muito lento, é uma batalha. Ela faz terapia todos os dias. Há dois meses passou a engatinhar", afirma.

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'Ele abandonou o filho'

Lenice França do Nascimento, 43, era empregada doméstica em Maceió quando Enzo nasceu, em abril de 2016. Após a licença-maternidade e as férias de um mês, foi demitida ao retornar ao trabalho. "Foi uma grande decepção", diz.

Ela lembra com tristeza a conversa da demissão. "Eles me disseram que o menino precisaria de mim. Mas não foi por isso. A mulher me conhecia havia muito tempo, é inclusive madrinha do meu filho, mas só viram o lado deles. Minha mãe morava perto, tinha como eu conciliar [a criança e o trabalho]. Claro, seria uma correria muito grande, mas pelo conhecimento, pela amizade que a gente tinha, achava que dava para eu seguir", afirma.

Outros casos tratam de abandono pelo próprio pai do bebê. Iana Flor, 18, teve uma gravidez tranquila até os sete meses, quando foi diagnosticada com o vírus da zika. Apenas no nono mês de gestação Pedro Henrique, hoje com três anos de idade, teve a microcefalia constatada na barriga da mãe.

"O pai dele quando ficou meio assim e aí a gente foi brigando, brigando, até dar um basta", conta. A criança tinha dois anos.

Segundo Flor, tanto ele como a família olhavam o menino com "pena e preconceito". "Até hoje estamos separados, e ele abandonou o filho dele. Ele não ajuda com nada, nem procura saber como o filho está", afirma.

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O sucesso de Catarina

Primeiro caso de microcefalia ligado à zika confirmado em exame laboratorial, a pequena Catarina é hoje, no auge de seus três anos, um exemplo de avanços nos tratamentos motor e cognitivo para crianças com a síndrome.

Moradora de Juazeirinho, no semiárido paraibano, a menina teve desde cedo a ajuda da mãe fisioterapeuta, fazendo estímulos desde o nascimento.

Catarina está na escola desde agosto de 2018, já consegue andar e tem interação com outras crianças.

"A gente pegou o modelo de Catarina e capacitou nossos profissionais para fazer o mesmo com as crianças mais graves: oferecer fisioterapia cinco vezes na semana, ao menos uma hora por dia. Temos tido bons resultados", conta a médica e pesquisadora Adriana Melo, que acompanha a menina desde a gestação.

Vítimas ainda surgem, mas notificações caem

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Beto Macário/UOL

Passados quase quatro anos dos primeiros casos, o vírus da zika ainda faz vítimas. Em Pernambuco, foram 14 casos suspeitos em nascidos registrados nas sete primeiras semanas do ano.Mas o número vem caindo. Em 2018, no mesmo período, foram 25 casos suspeitos.

Coordenadora do Grupo de Pesquisa da Epidemia da Microcefalia, a pesquisadora da Fiocruz Celina Turchi afirma, entretanto, que não é momento de baixar a vigilância, porque casos surgem todas as semanas.

"Existem ainda casos [da síndrome] ao nascimento, com crianças que apresentam o fenótipo. Toda vigilância agora é para que esses casos sejam notificados o mais rápido possível para que não haja a falsa impressão de que o vírus não esteja circulando."

A pesquisadora afirma ser natural a redução no número de casos. "Era esperado que essa circulação viral fosse pequena, porque depois daquela devastadora epidemia a maioria das pessoas foram atingidas e imunizadas. Mas ainda há uma população suscetível, mesmo que o grande volume de casos tenha ocorrido em 2015 e 2016", diz.

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O infectologista Demócrito de Barros Miranda Filho afirma que a mortalidade após os primeiros meses de vida dos bebês com a síndrome foi pequena. Desde 2015, a síndrome foi responsável pelas mortes de 31 bebês no estado.

"A letalidade não tem sido alta depois desses primeiros meses de vida, menor do que se especulava. Algumas crianças têm tido infecções, problemas respiratórios que geram alguns casos de hospitalização, mas não há mortalidade", diz.

Para o médico, a doença entrou em processo endêmico e deve permanecer circulando por um longo tempo. "A gente já tem casos em um número muito inferior aos de 2015 e 2016. Não é esperado para curto e médio prazo uma nova explosão de registros porque se esgotaram praticamente as pessoas suscetíveis", afirma, estimando que entre 70% e 80% da população pernambucana já tenha sido infectada pelo vírus da zika.

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