'Você não presta para nada': a rotina de estresse, xingamentos e pressão dos atendentes de telemarketing
Imagine um emprego em que sua função é passar o dia todo ao telefone. Não é exagero, é o dia todo mesmo, com direito a apenas uma pausa de 20 minutos para a refeição e outras duas de 10 minutos cronometradas - assim como as idas ao banheiro.
Do outro lado da linha, estão clientes irritados pelos problemas causados por uma empresa da qual muitas vezes você não é funcionário e sobre a qual não tem qualquer responsabilidade. No entanto, naquela ligação, é você quem personifica todos os erros e os defeitos dela e, por causa disso, acaba sendo o alvo da ira de todos aqueles consumidores insatisfeitos.
Os xingamentos vão desde "burro", "incompetente"e "ignorante" a até "você não presta para nada, por isso nunca vai deixar de ser operador de telemarketing". Desligar o telefone não é uma opção, então a única alternativa é escutar os insultos calado. E não dá tempo de respirar. Enquanto você tenta esquecer as ofensas que acabou de ouvir, o telefone toca de novo, e é preciso disfarçar rapidamente e dizer com a voz simpática: "Bom dia, senhor, em que posso ajudar?".
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Esse é o dia a dia de mais de um milhão de trabalhadores brasileiros que atuam como operadores de telemarketing, recebendo todas as reclamações dos serviços de atendimento ao consumidor das empresas no país e também ligando para possíveis futuros clientes para oferecer serviços - que, muitas vezes, não são desejados.
O profissional dessa área é frequentemente tachado de "chato" e "odiado" pelas pessoas. Mas, se a realidade é difícil para quem precisa de seus serviços, pode ser ainda pior para quem vive na pele essa rotina. A média de ligações diárias costuma ultrapassar as centenas (cerca de 300 nas 6 horas que trabalham conectados) - enquanto a média salarial dificilmente ultrapassa um salário mínimo, com algumas remunerações variáveis a depender das metas a serem batidas.
A profissão é comum principalmente entre os jovens e é considerada porta de entrada para o mercado de trabalho para boa parte deles. Para exercer a função, os interessados costumam passar por alguns dias (às vezes semanas) de treinamentos que variam entre aulas de português e de boas maneiras e uma parte específica sobre os procedimentos da empresa que irão atender. Em geral, sobram protocolos para eles cumprirem e frases padrão para repetirem.
Essa repetição, inclusive, é um dos fatores que contribuem para o nível de estresse na profissão. O fato de não terem autonomia para resolver alguns problemas faz com que os clientes se irritem mais e, consequentemente, descontem nos atendentes.
Diante desse cenário, o número de doenças diagnosticadas em pessoas que exercem essa função é crescente. Somente na Região Metropolitana de São Paulo, de acordo com dados do Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing (Sintratel), existem aproximadamente 100 mil profissionais nesse segmento.
Dados do sindicato relacionados a doenças do trabalho apontam que 36% sofrem de lesão por esforço repetitivo (LER), 30% de transtornos psíquicos e 25% apresentam alguma perda auditiva ou de voz.
O diretor-executivo do Sindicato Paulista das Empresas de Telemarketing (Sintelmark), Stan Braz, diz que os dados de trabalhadores doentes por causa da profissão foram inflados pelo sindicato dos trabalhadores.
"Esses casos ocorrem, mas não chega a 10% do total de funcionários, senão ninguém estaria trabalhando. As empresas seguem à risca as normas que regulamentam a profissão para evitar esses casos. Elas respeitam os períodos de descanso, relaxamento e boa parte ainda oferece ginástica laboral e massagem durante o expediente", afirma.
Segundo ele, a maior parte dos casos de problemas psicológicos e auditivos dos funcionários são causados por problemas externos às empresas de telemarketing.
"Nós estamos vivendo um momento de pressão social e econômica que abala todo mundo e isso prejudica. Já a perda de voz e auditiva é explicada em grande parte porque você vê a molecada com fone de ouvido o dia inteiro na rua com o volume alto e claro que isso influencia", diz o diretor-executivo do sindicato que representa as empresas.
No caso de Nicole*, os sinais do estresse e da depressão começaram a aparecer nos sonhos - ou melhor, pesadelos. "Eu dormia perto da minha mãe, e ela me disse: você está conversando com o cliente enquanto dorme. Eu não acreditava, mas uma vez vi a minha irmã, que também era atendente de telemarketing, sonhando. Ela dizia: 'Senhor, o senhor não pode pagar isso aqui'. E aí comecei a responder e ela continuava. Nessa hora percebi que também era real comigo", contou.
"Eu tinha pesadelo com meta, sonhava que seria mandada embora, sonhava que meu supervisor era um monstro que me perseguia para eu bater a meta. No fim, eu já não conseguia nem dormir, ficava pensando no inferno que seria o dia seguinte."
Cristiana* não chegou a notar pesadelos, mas sofria com insônia. Até que um dia o estresse chegou a tal nível que ela teve uma crise enquanto estava no trabalho. "Eu estava falando com cliente e falei para o meu amigo do lado: estou passando mal, acho que vou morrer. Larguei o telefone e nem sequer conseguia sair da cadeira", relatou.
"Passei mal assim duas vezes. Descobri que estava com síndrome do pânico, o médico me afastou e até hoje eu tomo remédio por causa disso."
As doenças psíquicas não são as únicas que aparecem em decorrência da profissão. Renan, por exemplo, trabalhou por dois anos como operador de telemarketing e perdeu 30% da audição. "Tive uma crise de pânico, fui afastado e aí comecei a perceber a perda auditiva. Agora foi constatado que minha audição de um ouvido está prejudicada", disse.
"O jeito de organizar o trabalho do operador de telemarketing é o grande problema. Essa vigilância constante do trabalhador em relação ao tempo das ligações, por exemplo, é um dos fatores do acúmulo do estresse. E aí acaba que você coloca pessoas sadias e jovens nesse mercado para depois ter uma grande quantidade de adoecidos", explicou o médico do trabalho e mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Airton Marinho à BBC News Brasil.
"Ninguém fica mais do que um ano e meio nessas empresas. Como atendente, é raro ter alguém com mais do que esse tempo. As pessoas são tratadas como substituíveis, as empresas já contam com isso, trabalham com meta de rotatividade de 12% ao mês."
Tempo cronometrado e pressão por metas
A rotina cronometrada, com até mesmo as idas ao banheiro sendo "controladas", é um dos fatores que contribuem para o estresse do atendente de telemarketing.
A jornada de trabalho deles é menor do que a de outras profissões (são "apenas" 6h20), mas dentro desse tempo há apenas 20 minutos reservados para uma refeição e outros 20 (separados em dois tempos de 10 minutos cada) para uma pausa nas ligações.
As idas ao banheiro, em teoria, são livres, mas a reportagem ouviu relatos de lugares que também limitavam as necessidades fisiológicas em uma pausa de 5 minutos.
Quando sentiam a vontade apertar, eles precisavam apertar o botão para solicitar a pausa - assim, não receberiam ligações por aquele momento - e corriam para o banheiro. Na volta, o cronômetro marcava quanto tempo foi "desperdiçado". Quanto menos tempo conectado e recebendo ligações, mais a nota de avaliação do funcionário baixava - e, com isso, menos chances ele tinha de conseguir uma possível mudança de cargo.
"Eram cinco minutos totais para ir ao banheiro. Isso incluindo o tempo de andar até lá, esperar se tivesse fila. Isso botava uma pressão imensa. O supervisor estava lá monitorando e ia reclamar se você demorasse mais", relatou Flávia*.
"A gente tinha de engolir a comida também, porque até ir ao refeitório, conseguir vaga no micro-ondas, etc., sobrava no máximo dez minutos para comer."
O cronômetro também pressiona o tempo das ligações. O padrão que costuma ser exigido pelas empresas para os SACs é de três a quatros minutos para resolver o problema do cliente - e, muitas vezes, para aproveitar a chance e tentar vender para ele um novo serviço. Se você demora muito mais do que isso em uma ligação, acaba sendo questionado pelos supervisores.
"Eles já passam atrás da sua mesa e fazem sinal para você encerrar quando está demorando muito. Eram quatro minutos para atender, tirar a dúvida do cliente, entrar na conta pra ver se ele tinha alguma pendência e ainda ofertar um serviço para fazer uma venda. E se você batesse a meta de vendas, mas não batesse a meta de tempo da ligação, você não ganhava o bônus", disse Renan*, que trabalhou como operador de telemarketing em um banco.
As metas, inclusive, são o grande pesadelo de quem trabalha nessa área. Quando não são batidas, geram a pressão por um melhor desempenho, e quando são batidas, geram outras metas ainda mais ousadas.
"O melhor ano que eu produzi, antes de ficar doente, eu batia todas as metas, aí ganhei uma viagem da empresa, pensei: finalmente estão me reconhecendo. Só que se você começa a se destacar naquilo, eles começam a jogar a responsabilidade em você. Eles aumentam sua meta, porque se outros não batem, você tem que bater, etc.", contou Cristiana*.
"Eu cheguei a passar em um processo seletivo para outra vaga dentro da empresa, e meu chefe não me deixou ir porque eu vendia bem."
O pesadelo de um cancelamento
Todo mundo que já precisou cancelar uma assinatura ou um plano de telefonia móvel, por exemplo, sabe o quão árdua essa tarefa é. E não é coincidência: algumas empresas orientam os atendentes a não permitirem de maneira alguma um cancelamento. É o que se chama de "política de retenção do cliente".
Segundo operadores ouvidos pela reportagem, a empresa normalmente tem um protocolo de cerca de dez itens para você oferecer ao cliente antes de permitir que ele cancele o plano. A chance de a ligação cair nesse meio tempo é grande. E quando isso não acontece, há ainda uma outra forma de impedir o cancelamento.
"Eu passei por todos os itens, e o cliente quis cancelar. Aí precisava marcar a visita técnica para retirar o aparelho, só que não havia data disponível naquela semana para isso. Aí me orientaram a agendar mesmo em um dia em que sabíamos que não teríamos técnicos disponíveis só para a visita não acontecer e o cliente ter que ligar de novo para cancelar o serviço", afirmou Nicole*.
A reportagem visitou um call center em São Paulo, que reconheceu que algumas empresas adotam essa prática. No entanto, os responsáveis pelo serviço afirmaram que costumam aconselhar essas companhias de que esse comportamento pode ser nocivo à reputação delas.
"A gente tenta falar com nossos clientes (empresas) que hoje o que vale mais é um atendimento efetivo e mais humanizado, sem tanta formalidade. Algumas acatam isso, outras ainda estão presas ao velho modelo", afirmou um dos diretores do call center.
No local, havia sala para uma massagem rápida e uma decoração especial de futebol para os funcionários entrarem no clima de Copa.
"Nós tentamos proporcionar o melhor ambiente possível, porque é uma profissão estressante. E o atendente que não está bem consigo, não conseguirá fazer um bom atendimento."
Os operadores entrevistados pela BBC News Brasil acreditam, porém, que a estratégia mais eficiente para melhorar a rotina deles seria diminuir a pressão do trabalho e "desengessar" o atendimento, dando mais autonomia a eles na hora de falar com os clientes.
Alguns estão afastados da profissão por causa de problemas médicos ou porque escolheram outros caminhos, mas levaram dos tempos "na profissão mais odiada do mundo" uma "lição humana".
"Acho que a lição que ficou é humana, é isso de tentar entender o outro lado. Toda vez que alguém me liga tentando vender alguma coisa, eu tento entender que tem tudo isso por trás. De sistema, o tempo, a meta. Então tento sempre ser educada, porque uma grosseria ali é o que pode acabar com o dia da pessoa", concluiu Flávia.
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