Senado argentino barra legalização do aborto; países latino-americanos são os que mais restringem prática no mundo
Em votação que só foi decidida nas primeiras horas desta quinta-feira, o Senado argentino rejeitou por pequena margem a proposta de regularização do aborto no país.
A prática permanece então proibida por lei na Argentina, refletindo a situação que prevalece na maioria do continente sul-americano.
Na América Latina e no Caribe, 97% das mulheres vivem sob regras que proíbem ou restringem sensivelmente o aborto, impedindo a liberdade de escolha, calcula o Guttmacher Institute, organização americana focada em diretos sexuais e reprodutivos.
São países em que o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em casos de estupro ou quando a gravidez representa risco à saúde da gestante. Só quatro não restringem a prática na região: Cuba, Guiana, Porto Rico e Uruguai.
Mas segundo o mesmo instituto, essa situação não se reflete em níveis globais: a maioria das mulheres em idade reprodutiva no mundo (cerca de 60%) vive em países onde o aborto é permitido em circunstâncias amplas ou sem restrições. Isso inclui 74 nações em que é possível interromper a gravidez sem necessidade de qualquer justificativa ou que autorizam o procedimento em uma larga gama de situações, inclusive por razões socioeconômicas.
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Por pouco, esses números não mudaram nesta madrugada. Após mais de 16 horas de debate e intensa mobilização nas ruas, o Senado argentino rejeitou, por pequena maioria, um projeto de lei que tornaria legal a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. A votação ficou em 38 contra e 31 a favor, enquanto 3 não votaram, prevalecendo então o entendimento de que a legislação deve proteger o embrião. Em junho, a matéria havia sido aprovada na Câmara, também em placar apertado.
Hoje o aborto só é permitido às argentinas em caso de estupro ou quando a gestação ameaça sua vida. Apesar do resultado no Senado, a derrota não parece completa para as mulheres que nos últimos meses tomaram as ruas das principais cidades de lenços verdes no pescoço - símbolo do movimento pela legalização. Segundo a imprensa argentina, o presidente Mauricio Macri pretende enviar ainda esse mês uma ampla proposta de revisão do Código Penal ao Congresso. A expectativa é que o texto aumente as situações em que o aborto é permitido e elimine a possibilidade de prisão para mulheres. Uma nova proposta de total legalização só pode ser analisada pelos parlamentares a partir de março.
"Esta lei não vai sair esta noite, não será este ano, será o próximo ou o seguinte", discursou a senadora e ex-presidente Cristina Kirchner, ao defender a legalização.
Assim como na Argentina, o movimento feminista tem aumentado a pressão pela liberação do aborto também no Brasil, onde hoje só é permitido em casos de estupro, quando a gestação apresenta risco à vida da mãe ou se o feto for anencéfalo (sem cérebro). Mas, enquanto lá o debate aconteceu no Congresso, aqui a discussão entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal, a partir de uma ação proposta pelo PSOL em março de 2017. O partido argumenta que a criminalização da interrupção voluntária da gravidez deve ser considerada inconstitucional por ferir os direitos da mulher à cidadania e à dignidade humana.
A Corte acaba de realizar dois dias de audiência pública para ouvir opiniões contra e a favor do pedido do PSOL, que defende a liberação da interrupção até a 12ª semana de gestação. A ministra relatora do caso, Rosa Weber, agora vai reunir os argumentos dos dois lados em um relatório e preparar seu voto, para então liberar a ação para julgamento.
A análise de propostas para liberar o aborto pelos poderes Legislativo e Judiciário em dois dos maiores países da América Latina é uma novidade num continente que está entre as regiões mais conservadoras do planeta quando se trata desse tema, ressalta Nadine Gasman, representante do Escritório da ONU Mulheres no Brasil.
"O debate na Argentina foi um avanço para a região. A rejeição teve uma margem muito pequena e a discussão vai ter que voltar (ao Congresso). No Brasil, o debate no Supremo também teve altíssima qualidade", afirma.
A Organização das Nações Unidas tem posição pela legalização do aborto, que considera uma questão de saúde pública. Gasman argumenta que a proibição não reduz a prática, apenas a empurra para a clandestinidade, aumentando os riscos de morte para a mulher.
Segundo estudo da Organização Mundial de Saúde em parceria com o Guttmacher Institute, a incidência do aborto tem recuado nos países onde a prática é majoritariamente legalizada. Enquanto entre 1990 e 1994, 39% das gestações em países desenvolvidos terminaram em aborto, esse índice caiu para 28% no período de 2010 a 2014. Já na América Latina e Caribe a taxa cresceu no mesmo intervalo de comparação, passando de 23% para 32%, reflexo da conjunção da falta de políticas de planejamento familiar e acesso a métodos contraceptivos com o aumento do desejo por famílias menores.
"A legalização do aborto reduz a prática porque costuma vir acompanhada de uma maior abertura para falar de planejamento familiar e contracepção", sustenta Gasman.
Por que a proibição prevalece na América Latina?
Enquanto a quase totalidade dos países desenvolvidos liberalizou a prática do aborto entre os anos 50 e 80, legislações restritivas continuam prevalecendo na América Latina, África, Oriente Médio e Sudeste Asiático, destaca o Center for Reproductive Rights, organização americana que monitora as legislações sobre interrupção de gravidez.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Corte Suprema declarou inconstitucional a interferência do Estado na decisão da mulher sobre sua gestação em 1973. Na França, a legalização passou a vigorar em 1975, após aprovação do Congresso. As alemães conquistaram esse direito em 1976. Para as japonesas, já é permitido desde 1948. Na Rússia, a legalização vem da União Soviética - a primeira liberação ocorreu de 1920 a 1936 e, depois, voltou a ser permitido em 1955.
Para a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília e cofundadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), a América Latina não acompanhou o movimento de legalização do aborto no mundo desenvolvido porque a maioria dos países estava sob ditadura militar entre os anos 60 e 80. Ela ressalta que esses regimes, em geral, contavam com apoio de setores conservadores religiosos.
"Nós estamos na região mais conservadora do mundo em termos de legislação por uma herança de uma ausência de debate público qualificado para questões democráticas e de direitos individuais. Essa é a primeira geração de mulheres (no continente) que está vivendo fora de ditaduras militares, governos em que as igrejas eram muito fortes", analisou.
Já a advogada Angela Vidal Gandra Martins, da União dos Juristas Católicos de São Paulo, argumenta que a legislação sobre aborto no Brasil não deve se pautar pela lei de outros países. Ela questiona a classificação de países ricos que permitem a interrupção voluntária da gravidez como "desenvolvidos".
"Não significa desenvolvimento aprovar o aborto. São países utilitaristas que venceram economicamente. Hoje a gente tem visão de que o progresso é econômico e de uma moralidade pública baseada numa falsa liberdade que é utilizar o outro como meio para os próprios fins. Nem todo desenvolvimento econômico significa relações humanas profundas", defendeu.
Congresso x Supremo
Os grupos que se opõem à liberação do aborto no Brasil também argumentam que a questão deve ser decidida no Congresso Nacional, instituição que aprova leis, e não no STF.
"O Supremo existe para fazer valer a lei que os legisladores colocaram. Se a gente quiser mudar a lei, não vai ser no Supremo, é de acordo com a representatividade político-social (no Congresso)", argumenta Gandra Martins.
"Um partido (PSOL) que deveria discutir com seus iguais deslocou o debate (para o STF). Isso é um aborto jurídico, vai atingir o núcleo dos nossos valores constitucionais, que são pela inviolabilidade da vida humana", acrescentou.
Os que defendem a liberdade de escolha da mulher, por sua vez, sabem que não há espaço hoje no Parlamento brasileiro para aprovar a legalização e defendem que o STF tem autoridade para analisar a constitucionalidade da proibição. A criminalização do aborto está prevista no artigos 124 e 126 do Código Penal, lei de 1940. A pena de prisão é de até três anos para a mulher que interromper a gravidez e de até quatro para quem realizar o procedimento.
A ação do PSOL sustenta que esses artigos ferem a Constituição de 1988 porque comprometem a dignidade da pessoa humana, a cidadania das mulheres e o princípio da não discriminação, já que as mulheres que mais sofrem com a proibição são as negras, indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos, onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros. O partido também argumenta que a criminalização viola os direitos à saúde, à integridade física e psicológica, à vida e à segurança, "por relegar mulheres à clandestinidade de procedimentos ilegais e inseguros".
"A Suprema Corte é a instância final para essa revisão de questões constitucionais. O que está em curso no Brasil é uma lei anterior à Constituição que nunca foi recepcionada pelo Supremo. A pergunta não trata de formulação de uma nova lei, mas de tirar artigos de uma lei que é anterior à Constituição de 1988", argumenta Debora Diniz.
A professora da UnB destacou ainda a função "contramajoritária" do Supremo de preservar direitos constitucionais de grupos que têm representação minoritária no Congresso. As mulheres, embora sejam metade da população, têm apenas 10% das cadeiras no Parlamento.
Na sua visão, se o STF entender que o aborto é um direito à saúde da mulher, o procedimento poderá ser oferecido na rede pública de saúde sem que uma nova lei legalizando a prática seja aprovada no Congresso. É o que aconteceu no Canadá - a Corte Suprema derrubou todas as leis que criminalizavam o aborto em 1988 e desde então nenhuma tentativa de aprovar nova legislação prosperou.
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