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Xeroderma pigmentoso: o vilarejo de Goiás com a maior incidência de doença genética rara no mundo

Deíde aos 18 anos e agora; por causa da doença xeroderma pigmentosum, ele perdeu parte do rosto - BBC
Deíde aos 18 anos e agora; por causa da doença xeroderma pigmentosum, ele perdeu parte do rosto Imagem: BBC

Evanildo da Silveira - De São Paulo para a BBC News Brasil

De São Paulo para a BBC News Brasil

28/10/2018 10h59

Desde os 10 anos, o lavrador Deíde Freire de Andrade, hoje com 49 e aposentado, morador de Recanto das Araras, um vilarejo no noroeste de Goiás, convive com problemas na pele, como ressecamento e lesões, principalmente nas áreas do corpo mais expostas ao sol.

Com o tempo, a situação foi se agravando e ele perdeu parte do rosto e o nariz, substituídos em 2010 por uma prótese.

O agricultor é uma das 17 pessoas, numa população de cerca de mil moradores, portadoras - outras 30 já morreram - de uma doença genética hereditária rara, chamada xeroderma pigmentosum (ou pigmentoso) (XP), o que faz desse pequeno lugarejo o local com a maior incidência desse mal do mundo.

A XP, que não é contagiosa e afeta igualmente ambos os sexos, caracteriza-se principalmente por uma extrema sensibilidade dos portadores à radiação ultravioleta do sol e, por isso, afeta as áreas do corpo mais expostas, como a pele e os olhos. A doença também torna os pacientes mil vezes mais suscetíveis a câncer de pele, como o melanoma.

Por enquanto, não há cura nem tratamento para o XP, apenas medicamentos tópicos para alguns dos sintomas.

"O melhor tratamento é a prevenção", diz o geneticista Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), que desde 2010 vem estudando casos da doença em busca de suas causas e de um possível tratamento.

"Os portadores devem se proteger ao máximo do sol. Nos próximos dez anos não deverá haver outra forma de evitá-la ou tratá-la."

O caso do Recanto das Araras, distrito do município de Faina, a 260 quilômetros de Goiânia, começou a chamar a atenção em 2009, quando a diretora da escola e dona da mercearia do povoado, Gleice Machado, levou seu filho, então com 6 anos, ao consultório da dermatologista Sulamita Chaibub, no Hospital Geral de Goiânia.

"Percebi algo diferente na sua pele", conta a mãe. "Ele tinha muitas sardas e bolhas surgiam e voltavam com muita frequência."

Gleice lembra que durante a consulta, contou à médica que no vilarejo em que morava havia várias pessoas com "pele diferente".

"A doutora disse que isso seria impossível por se tratar de uma doença rara", diz.

"Voltei para casa, reuni todos, fiz fotos e levei para a médica. Foi um choque para ela constatar que de fato se tratava de xeroderma pigmentoso numa grande proporção da população local. Também entrei em choque, pois conhecia os muitos outros mutilados e o histórico de mortes, e imaginei meu filho nessa fila."

Ela começou então a ler e pesquisar "desesperadamente" sobre o XP com intuito de procurar ajuda.

"A partir daí foi uma reviravolta na vida dessas pessoas, que começaram a entender sobre a doença e que o principal agravo era o sol", conta Gleice.

"Mobilizamos vários segmentos e formalizamos nossa luta criando, em 2010, a Associação Brasileira do Xeroderma Pigmentoso (AbraXP), que hoje tem cerca de 200 associados, entre portadores, familiares e simpatizantes."

Hoje esses pacientes têm um atendimento prioritário no Hospital Geral de Goiânia e no Centro Oftalmológico do Hospital das Clinicas (Cerof), mas nem sempre foi assim, até então eles eram tratados de forma precária.

À frente da AbraXP, Gleice conseguiu ajuda do Estado de Goiás para enviar de Goiânia protetores solares aos afetados pelo XP, assim como chamar atenção do corpo médico desses hospitais para dar rapidez ao atendimento e tratamento necessário.

Também em 2010, chegou a Araras a equipe de Menck, da qual faz parte a bióloga Lígia Pereira Castro, para tentar identificar a causa da doença por meio de análises do DNA de alguns portadores e familiares.

"Conseguimos identificar duas mutações no gene POLH (ou XPV, de xeroderma pigmentosum variante) que foram introduzidas independentemente na comunidade, como dois raios que caíram no mesmo lugar", informa Castro.

De acordo com ela, inicialmente a equipe coletou amostras de biópsia de pele de três pacientes e três parentes para os ensaios funcionais e sequenciamento do DNA. Sabendo que oito genes estão envolvidos com a doença, os pesquisadores descobriram que os pacientes estão mutados em um desses, no gene POLH.

"Após identificarmos as mutações, desenvolvemos uma metodologia especificamente para detectá-las e fizemos a coleta de saliva dos 17 portadores - que representam 10% do total de diagnosticados no resto do Brasil, que chega a 170 (sendo 82 já caracterizados geneticamente) - e de todos que gostariam de saber se tinham as mutações."

Foram 219 amostras coletadas dentre os cerca de mil habitantes que moram na comunidade.

"A incidência de pacientes com XP nessa região entre 2010 e 2018 é de 1 em 388 habitantes, uma das maiores do mundo", informa Lígia. No planeta, a média é de um caso em 1 milhão de pessoas.

Lígia diz que a alta incidência de câncer de pele em portadores da XP se deve à falta de reparo de lesões no DNA, causadas principalmente pela luz do sol.

"Isso aumenta a frequência de mutações nesse DNA e consequentemente a indução de tumores de pele, o tecido mais exposto à radiação ultravioleta", explica.

"Além dessa parte do corpo, o olho é uma região muito afetada pelo surgimento de tumores que acabam levando à cegueira em alguns casos e muitas vezes à enucleação (remoção), o que tem um fator psicológico muito negativo para o paciente."

Em pessoas sem a doença, os genes induzem à produção de proteínas que reparam as lesões no DNA, causadas pela radiação ultravioleta do sol ou até de lâmpadas. Com isso, as células podem prosseguir suas atividades e seus ciclos normais.

Nos portadores de XP, no entanto, essas proteínas não são produzidas e não há correção dos danos no DNA, que se acumulam e levam a todos os problemas originados pelo mal.

Sem tomar sol

Independentemente dessas informações técnicas, a vida de quem tem XP não é fácil. Eles precisam evitar o sol a qualquer custo, só saindo à noite ou se protegendo com roupas largas, de mangas compridas, chapéus, óculos escuros e filtro solar com grande fator de proteção, aplicado na pele constantemente.

Um exemplo de quem enfrenta essa rotina difícil é o filho de Gleice, hoje com 15 anos.

"Moramos numa localidade onde tem sol forte o ano todo, com temperaturas altíssimas", diz Gleice. "Ele usa toda a proteção recomendada, mas vive muito depressivo e é muito tímido, calado, de poucos amigos."

O adolescente já fez dezenas de cirurgias, principalmente na face para retirada de lesões cancerígenas. Sua mãe lamenta que em plena adolescência, o filho não possa fazer o que mais gosta, que é jogar futebol e cavalgar na fazenda com o pai.

"Basicamente sua vida se resume a ir de casa para escola e da escola para casa e para o hospital onde faz acompanhamento com dermatologista, entre outros especialistas da doença", revela.

A dona de casa Cláudia Sebastiana Jardim da Cunha vive essa rotina difícil há mais tempo. Com 40 anos atualmente, sabia desde criança que ela e quatro dos seus sete irmãos tinham uma doença de pele, mas o diagnóstico só foi feito em 2010, por Sulamita.

"Sempre tivemos a pele seca e irritada", conta.

"Até hoje não convivo bem com o XP. Evito sair de casa durante o dia, uso roupas adequadas, óculos de sol e protetor solar de duas em duas horas."

No caso do lavrador Deíde as reclamações são mais contundentes.

"As mutilações e o preconceito que enfrentamos são muitos tristes", queixa-se ele, que tem cinco irmãos, dos quais outros dois têm a doença.

"Hoje vivo praticamente dentro de casa sem poder sair sequer por dez minutos lá fora. Eu queria pelo menos ganhar meus medicamentos de uso contínuo, mais roupas e protetor solar para que possa andar um pouco fora de casa."