'Hoje, não vacinados são quase 100% dos casos graves de covid', diz anestesista
Em 25 de março de 2021, o anestesista Leonardo Camargo descreveu à BBC News Brasil o que parecia ser uma cena de guerra. Uma tenda com cilindros de oxigênio havia sido montada na frente do hospital, pacientes intubados ocupavam UTIs improvisadas em salas de recuperação de cirurgia e o estoque de sedativos estava no fim.
Sem bloqueadores musculares para intubação, Camargo precisava combinar medicamentos em desuso para garantir que os pacientes continuassem inconscientes e temia chegar ao ponto de ter que amarrar pessoas ao leito para que não arrancassem o tubo de oxigênio, ferindo laringe e traqueia, caso acordassem da sedação.
Hoje, quase nove meses depois, o cenário é bem diferente. Nesta semana, pela primeira vez desde a primeira onda da pandemia, não há paciente com resultado positivo de covid-19 na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Tacchini, em Bento Gonçalves (RS), onde ele trabalha.
E, segundo Camargo, atualmente, quase a totalidade dos pacientes internados com alguma gravidade é de não vacinados ou idosos que ainda não tomaram a dose de reforço contra a doença. A UTI do hospital Tacchini tem capacidade para 30 leitos, mas, em março, operou com mais de 100% da capacidade, com cerca de 70 pacientes em estado crítico.
"A gente ficou períodos sem relaxante muscular na segunda onda da covid. Ficamos uma semana ou duas contando ampolas de medicamentos de segunda linha. Não chegamos a ter que amarrar pacientes, mas chegamos perto", lembra Camargo, em nova entrevista à BBC News Brasil. Ele coordena os estoques de medicamentos do hospital Tacchini e é antestesista há 15 anos.
"Hoje, o perfil dos pacientes graves é praticamente todo de não vacinados e idosos."
Mudança de perfil etário entre pacientes graves
Com o avanço da vacinação no Brasil, a média móvel de mortes caiu nos últimos meses e se mantém em menos de 200 há nove dias. Até 13 de dezembro, 65,2% da população havia recebido duas doses da vacina contra covid.
Camargo diz que acompanhou no dia a dia de trabalho na UTI uma clara mudança na faixa etária dos internados da primeira onda da pandemia até agora.
"Lá em 2020, na primeira onda, a maioria dos pacientes críticos era de idosos, principalmente com mais de 80 anos, e pacientes oncológicos. Em março de 2021, na segunda onda, provavelmente porque houve a mutação do vírus, a faixa etária baixou muito. O grosso de pacientes na UTI tinha de 40 a 50 anos", disse.
"Em julho, começamos a ter novamente nos hospitais idosos e outros pacientes com covid que tomaram a segunda dose há mais de cinco, seis meses, período em que a eficácia da vacina começa a cair. Aí veio a dose de reforço. Hoje os pacientes com gravidade são, na grande maioria, não vacinados e idosos que ainda não tomaram a dose de reforço."
Com o surgimento da variante ômicron, que já teve casos detectados no Brasil, o temor é que hospitalizações voltem a subir. Essa nova cepa foi primeiro identificada em novembro na África do Sul e possui várias mutações na chamada proteína S, que é usada pelo coronavírus para se conectar à células humanas.
Dados preliminares apontam que a ômicron é mais passível de causar reinfecções que as variantes anteriores e reduz a eficácia das vacinas, mesmo em quem já tomou a segunda dose. Por isso, cientistas defendem o uso da dose de reforço para ajudar a controlar as infecções.
"Eu tento viver um período de cada vez. Não se sabe qual vai ser o impacto da ômicron. Mas a gente tem que confiar na dose de reforço. Chegamos a ter 4 mil mortes por dia no Brasil e hoje estamos em 200. O que explica isso é a vacinação", diz Camargo.
Medo de abraçar a filha
A rotina do médico gaúcho, que esteve em todo momento na linha de frente do atendimento de pacientes com covid, também passou por mudanças no decorrer da pandemia. O pior momento, segundo ele, foi a segunda onda da covid, quando passou a se deparar com conhecidos ao aplicar os sedativos necessários à intubação.
Como anestesista, era ele, muitas vezes, o último rosto que o paciente via antes de dormir para receber a ventilação mecânica. Na entrevista de março à BBC News Brasil, Camargo havia acabado de se deparar com o vizinho na UTI e participado da intubação dele. Na época, o homem estava em estado grave com covid e manifestou muito medo de ser intubado e não acordar mais.
Mas, a notícia neste caso é boa. Camargo contou que o vizinho se recuperou e já está em casa. "Aquelas semanas de março e abril foram assustadoras. A gente entrava nas UTIs e quem estava lá eram pessoas da nossa idade, pais de família, conhecidos. Felizmente, o meu vizinho se recuperou depois de ficar semanas internado e teve alta."
Diariamente em contato com pacientes graves com covid-19, Camargo também diz que viveu mais de um ano "com medo de chegar em casa" e transmitir a doença para a esposa e a filha de quatro anos.
"Eu chegava em casa, estacionava o carro, tomava banho de álcool, depois colocava a roupa para lavar e tomava banho antes de ficar perto delas. Mesmo assim, eu tinha medo de abraçar a minha filha."
Na segunda onda da pandemia no Brasil, além de lidar com a escassez de sedativos, Camargo e seus colegas tinham que administrar uma fila diária de pacientes graves esperando leito de UTI. "Tinha dias em que a gente amanhecia no pronto-socorro com cinco pacientes aguardando UTI, daí os pacientes iam piorando, e mais pessoas em estado grave chegavam", contou.
"No decorrer da tarde, leitos vagavam e, de noite, a gente finalmente conseguia colocar esses pacientes na UTI. No dia seguinte, tudo se repetia, era a mesma coisa: fila de pacientes esperando UTI. A gente chegou a pensar: 'se isso continuar, não sei se vamos aguentar'."
O anestesista diz que, neste mês, o fluxo finalmente voltou a patamares semelhantes ao período pré-covid. "Em março e abril, chegamos a ter 72 pacientes em terapia intensiva. Agora, voltamos ao número normal de 30 leitos. Hoje, não temos nenhum paciente ativo (que esteja atualmente testando positivo) de covid na UTI."
Lições da pandemia
Camargo diz que, apesar do drama de presenciar tantas mortes, os grandes momentos de tensão e crise na pandemia serviram para melhorar as práticas nos hospitais, tanto em técnicas de higiene e equipamentos de proteção, quanto na gestão de medicamentos.
"Aprendemos a evitar ao máximo o desperdício de remédios, melhoramos práticas de higiene, passamos a usar máscaras com proteção mais alta e tivemos que melhorar as práticas médicas e de enfermagem para dar vazão às cirurgias eletivas que ficaram paralisadas na pandemia", destaca.
Já imunizado com a terceira dose da vacina contra a covid-19, Camargo agora se sente mais confortável para abraçar a filha e visitar a mãe de 70 anos, que mora em Santa Catarina, mas diz que, na própria família, teve que lidar com resistências à vacina.
"Meu sogro não queria se vacinar. Ele pegou covid e só depois disso tomou a vacina. Como médico que acompanha internações por covid desde o início da pandemia, observo na prática o efeito da vacina e a importância, agora, da dose de reforço."
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