Recusa de doação de órgãos por famílias dobra em sete anos, diz pesquisa
O número de famílias que não autorizam a doação de órgãos e tecidos de parentes com diagnóstico de morte encefálica aumentou significativamente no Brasil. Em sete anos, a taxa de recusa familiar dobrou, saltando de 22% em 2008 para 44% em 2015, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Países como Austrália e Reino Unido enfrentam situação semelhante que, aliada a falhas na identificação e notificação de potenciais doadores, dificulta a realização de transplantes.
Um estudo conduzido por pesquisadores da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) buscou mapear as razões da recusa familiar. O principal motivo identificado pela pesquisa é que boa parte das famílias (21%) não compreendeu o conceito de morte encefálica. Já 19% atribuíram a decisão a crenças religiosas e outros 19% responsabilizaram a falta de competência técnica da equipe hospitalar.
No total, foram ouvidas 42 famílias que haviam sido consultadas pelo Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, ligado ao Hospital São Paulo, em 2010. A conclusão mais importante foi a de que, apesar da falta de conhecimento técnico sobre a morte encefálica, as chances de a família aderir à possibilidade de doação são diretamente proporcionais à capacidade de os profissionais da saúde criarem empatia durante a entrevista na qual a doação é solicitada aos familiares.
Um dado que surpreendeu os pesquisadores é que aproximadamente 43% das famílias consideraram insuficiente o tempo dado a elas para a tomada de decisão. É certo que há pressa em conseguir a autorização, pois órgãos como coração e fígado não podem mais ser aproveitados quando o coração para de bater. A queixa das famílias é que a abordagem foi feita de forma mecânica, até mesmo truculenta, sem respeitar o atordoamento de quem acabou de receber uma notícia trágica.
“As pessoas precisam de tempo para assimilar a perda do familiar”, diz Bartira De Aguiar Roza, professora da Unifesp e coordenadora do estudo. Segundo ela, a dificuldade reside no fato de muitos médicos e enfermeiros não estarem preparados para comunicar más notícias de maneira respeitosa e esclarecedora. O estudo também indicou que, entre 1998 e 2012, cerca de 21 mil famílias se recusaram a doar órgãos. Se 80% delas tivessem aceitado a doação, supondo a possibilidade de extrair pelo menos quatro órgãos de cada doador, mais de 67 mil pacientes teriam sido transplantados nesse período.
Bartira reconhece que a crença religiosa interfere. Em um dos casos de recusa, uma mulher contou que não doaria os órgãos da mãe porque acreditava na ressurreição. “A interpretação pessoal de textos religiosos pode levar a uma postura desfavorável à doação, ainda que nenhuma religião se oponha a ela”, afirma. Mesmo nesses casos, a pesquisadora acredita que a culpa não deve ser totalmente atribuída à família, pois o desempenho do profissional da saúde que propõe a doação também pode ser decisivo. Tanto isso é verdade que, quando questionado se mudaria de opinião, 70% do total de famílias respondeu que hoje optaria pela doação.
Para outro autor do estudo, João Luis Erbs Pessoa, diretor técnico da Central de Transplantes da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, uma das principais funções do profissional que lida com doações de órgãos deve ser esclarecer todas as dúvidas dos familiares. “Quem tem a obrigação de entender de morte encefálica são os médicos e enfermeiros, não a família”, diz Pessoa.
O grau de instrução escolar dos familiares que participaram da pesquisa foi diversificado: 29% deles concluíram o ensino fundamental, 33% o ensino médio, 36% se graduaram e 2% tinham doutorado. A maior parte das famílias (48%) tinha renda de um a três salários mínimos e 64% declararam-se católicos. “A pesquisa indica que o que está em jogo não é saber se a população conhece o conceito de morte encefálica, mas sim se é bem tratada pelos profissionais da saúde. Muitas vezes subestimamos os familiares, mas eles sabem quando os procedimentos da entrevista são equivocados”, explica Pessoa.
O estudo sugere investir mais no treinamento das pessoas que trabalham na captação de órgãos. Em Santa Catarina, estado com uma das menores taxas de recusa familiar, os coordenadores de transplantes que atuam em hospitais da rede pública de saúde passam por curso de comunicação em situações críticas, oferecido pela Secretaria Estadual de Saúde. “Os profissionais aprendem a dialogar com sensibilidade com os familiares e a se colocarem à disposição para esclarecer dúvidas”, diz Joel de Andrade, coordenador estadual de transplantes de Santa Catarina.
Experiências desse tipo também têm sido colocadas em prática na Unifesp, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP) e no Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista. “O diagnóstico de morte encefálica é angustiante e desperta muitas dúvidas. É uma morte que não parece morte, pois o coração continua batendo. Isso faz com que a família ainda tenha esperanças de recuperação”, explica Juliana Gibello, professora do curso de Comunicação de Más Notícias do Albert Einstein, criado no início do ano.
Com carga horária de 30 horas e on-line, o curso é direcionado a médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros profissionais. Os módulos abrangem desde conceitos fundamentais da comunicação interpessoal até os processos que envolvem morte e luto. Ao longo de todo o curso, os alunos discutem casos clínicos. “Esse tipo de treinamento e discussão deveria ser feito desde a graduação nos diversos cursos da área da saúde”, sugere Juliana.
As iniciativas brasileiras buscam inspiração no modelo espanhol de doação de órgãos, que se tornou referência internacional. A taxa de recusa familiar na Espanha é hoje uma das menores do mundo, de 17%. Parte desse sucesso se deve à forma como profissionais da saúde lidam com as famílias. “Respeito e empatia são o cerne da questão”, disse à Pesquisa FAPESP Carmen Segovia Gomez, uma das fundadoras da Organização Nacional de Transplantes (ONT), criada em 1989, vinculada ao governo espanhol. Além da coordenação nacional de captação de órgãos para transplantes, outra tarefa da ONT é organizar cursos de comunicação de más notícias. A entidade foi a primeira no mundo a criar esse tipo de treinamento para profissionais da saúde.
“Essa formação específica permite que o profissional desenvolva habilidades de comunicação para fazer com que um familiar em crise de luto sinta-se livre e confiante para tomar sua decisão”, conta Carmen, que atualmente dirige o curso da ONT. Em uma das etapas do curso, os alunos interagem com atores, que fazem o papel de familiares recebendo a notícia da morte encefálica. Na simulação, os alunos são instruídos a fazer uma abordagem sensível, perguntando primeiro como era a vida do familiar, do que ele gostava, para só então abrir a possibilidade de autorizar a doação. Na província espanhola de Alicante, esse tipo de abordagem chegou a zerar a recusa nos anos 1990. Nos últimos anos, Carmen também colaborou como consultora em alguns filmes do cineasta Pedro Almodóvar, como Tudo sobre minha mãe (1998), no qual a personagem de uma enfermeira que atua na coordenação de transplantes em um hospital foi inspirada no trabalho da fundadora da ONT.
Embora a prioridade na Espanha seja promover boas práticas de comunicação entre profissionais da saúde, o país também investe em campanhas de esclarecimento. Marcelo José dos Santos, pesquisador da Escola de Enfermagem da USP, participou como aluno do curso oferecido pela ONT, durante uma viagem à Espanha em 2001. Segundo ele, lá a doação de órgãos é um tema apresentado a crianças e adolescentes desde o ensino básico, por meio de programas educativos.
“No Brasil, ainda temos muito trabalho a fazer nesse sentido. Não basta investir só em treinamento dos profissionais da saúde”, adverte. “Aqui, a população ainda confunde muito morte encefálica com coma, por exemplo”, diz Santos, que atualmente realiza um estágio de pós-doutorado sobre o assunto, cujos resultados parciais mostram que a recusa familiar é maior ainda em relação à autorização de doação de tecidos ósseos, pele e córnea. Uma das pistas para explicar a rejeição seria o fato de as famílias desconhecerem a possibilidade desse tipo de doação ou terem aversão à ideia de que o corpo seja mutilado.
Também os Estados Unidos e o Reino Unido passaram a investir em campanhas. No primeiro caso, os esforços têm contribuído para aumentar o número de doadores. Atualmente, mais de 100 milhões de norte-americanos, pouco mais de um terço da população, declaram-se doadores de órgãos. Apesar disso, o governo segue preocupado com a recusa familiar, que no momento está em torno de 22% no país.
Uma pesquisa feita pela Rede de Transplantes e Procura de Órgãos norte-americana (OPTN) mostrou que os motivos que levam famílias a não doar órgãos de parentes são os mesmos encontrados em outros países. Uma das estratégias adotadas pelo governo foi esclarecer a população por meio do site Organ Donor, pelas redes sociais e campanhas em rádio e TV. Pesquisadores também são convidados a participar para divulgar informações sobre procedimentos relacionados à doação.
O Reino Unido apresenta atualmente uma taxa de recusa familiar de 42%, uma das mais altas do continente europeu. No ano passado, o número de doações caiu pela primeira vez em 11 anos. Segundo um levantamento do National Health Service (NHS), o sistema público de saúde inglês, 16,9 milhões de pessoas – cerca de um terço dos adultos no Reino Unido – admitem que nunca consideraram a possibilidade de se tornarem doadoras de órgãos. Outros 4 milhões declararam ser doadores, mas nunca avisaram um familiar. Para tentar reverter isso, o governo britânico criou um site com esclarecimentos sobre o processo de doação de órgãos.
Segundo Bartira Roza, uma das hipóteses que explicam o aumento da recusa familiar em alguns países da Europa é a repercussão negativa de um episódio ocorrido na Alemanha em 2013. Na ocasião, descobriu-se que o responsável pelo setor de transplantes do Hospital Universitário de Göttingen, manipulou a fila de transplantes, alterando dados médicos de pacientes que esperavam por um órgão. Após o escândalo ser revelado, o número de órgãos doados caiu 20% no país.
Bartira lembra que o Brasil já passou por situação parecida, quando uma mudança na legislação resultou na queda drástica do número de doações. Em 1997, foi instituída a doação presumida, pela qual todo cidadão passou a ser considerado doador de órgãos, a menos que optasse por registrar o desejo contrário no documento de identidade. O efeito foi o oposto do desejado. No Nordeste, a maioria dos indivíduos declarou-se não doadora na hora de tirar ou renovar a identidade. “As pessoas tinham medo de entrar nos hospitais e morrerem por conta do descaso”, conta Bartira. Em 1998, uma medida provisória instituiu a autorização familiar nos casos de ausência de manifestação nas carteiras nacionais de habilitação ou nos registros de identidade. Somente em 2001 a doação consentida pela família foi incorporada na legislação. Para a pesquisadora, qualquer mudança na lei pode determinar o sucesso ou o fracasso das doações de órgãos no país. “As estratégias precisam estar em sintonia com o contexto cultural e ético da sociedade”, diz Bartira.
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