Topo

Brasileira conta como é aborto no Uruguai: "No Brasil, quase fui presa"

Matilde Campodonico/AP Photo
Imagem: Matilde Campodonico/AP Photo

Fabiana Maranhão

Colaboração para o UOL, de Montevidéu

15/11/2017 04h00

O filho da artista visual Maria*, 28, tinha um ano quando ela descobriu que estava novamente grávida. Sem emprego e prestes a se separar do pai da criança, a brasileira com nacionalidade uruguaia decidiu que, naquele momento, não queria ser mãe novamente. Então recorreu ao sistema de saúde do Uruguai para fazer um aborto.

A lei uruguaia, aprovada em 2012, autoriza que qualquer mulher aborte até a 12ª semana de gestação. Em casos de estupro, o prazo é até a 14ª semana, e não há limite de tempo quando a gestante corre risco de morte ou em caso de má formação do feto

Segundo estudiosos da área, o modelo de redução de riscos e a legalização do aborto têm impacto direto na redução da mortalidade materna.

Estudo da OMS (Organização Mundial da Saúde), de 2015, revelou que o Uruguai tem a menor taxa de mortalidade de gestantes da América Latina

Foram realizados em 2016 uma média de 26 abortos por dia no país, um a cada hora. Não houve registro de morte de mães. 

O Brasil, onde a prática é ilegal, registra 4 mortes em hospitais em decorrência de complicações no aborto por dia --cerca de 1.500, por ano.

No Brasil, o aborto é crime exceto em três casos específicos: quando a gravidez é causada por estupro, quando existe risco de morte para a mãe ou se o feto for anencéfalo (má formação cerebral). No entanto, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados brasileira aprovou a proposta de proibir o aborto em casos de estupro.

Uruguai fez um aborto por hora em 2016 - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Uruguai fez um aborto por hora em 2016
Imagem: Getty Images/iStockphoto

'Prefiro legalizado pelo acompanhamento'

Maria abortou no Uruguai no ano passado. Foi a terceira vez que decidiu interromper uma gravidez. As duas primeiras ocorreram de forma clandestina quando ainda vivia no Brasil. “Digo: foi mil vezes pior [no Uruguai]. E é um aborto que me dói. Os outros não”, lembra.

“[No Brasil], a gente não vê. Toma anestesia, dorme e acorda sem bebê. No Uruguai, tem pelo menos três etapas”, detalha ela, que fez curetagens ilegais em solo brasileiro.

A legislação uruguaia determina que a mulher inicialmente se consulte com um médico, que irá solicitar uma ecografia e depois encaminhá-la a uma equipe multidisciplinar formada por ginecologista, psicólogo e assistente social. 

Depois disso, ela tem de esperar ao menos cinco dias --o que a lei chama de “período de reflexão”-- para então voltar ao ginecologista. No ano passado, 6% das mulheres que procuraram o serviço resolveram dar continuidade à gravidez (585).

Quem estiver decidida a tirar o feto, recebe a medicação para a indução do aborto. 

“Você vai para casa abortar na privada e vê seu filho saindo. Para mim, foi horrível”, conta. Maria lembra que era um sábado, e o ex-marido e o filho estavam em casa. Depois disso, ela teve de voltar ao médico e realizar outra ecografia para saber se havia algum resíduo.

“Passei por cinco médicos. [Na época], meu ex-marido trabalhava e não podia ficar com o nosso filho. Então, eu fiz tudo isso com ele no colo”. 

“Prefiro que seja legalizado pelo acompanhamento, pela saúde. Mas talvez o método usado não seja o melhor, psicologicamente falando”, reflete. 

Protesto na avenida Paulista a favor dos direitos reprodutivos da mulher, em 2016 - Eduardo Anizelli/Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress
Protesto na avenida Paulista a favor dos direitos reprodutivos da mulher, em 2016
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

'Quase fui presa no Brasil'

No Brasil, Maria fez dois abortos em um intervalo de três anos, com o mesmo médico. Pagou R$ 3 mil pelo primeiro e R$ 5 mil pelo segundo.

No primeiro, eu não queria o bebê. Quase fui presa com a minha mãe buscando clínica. Estávamos no lado de fora esperando quando a polícia chegou armada, aos gritos e patadas na porta. Fiquei um mês com trauma; não podia escutar sirene.”

Maria fala que, na segunda vez, ficou grávida do namorado, que era seu professor e que a convenceu a interromper a gestação.

Aborto legal no Uruguai

A lei 18.987 foi sancionada em outubro de 2012 pelo ex-presidente José Mujica e regula a interrupção voluntária da gravidez. Segundo dados do Ministério da Saúde, foram realizados em 2016 (dados mais recentes) 9.719 abortos no país, uma média de 26 por dia, um a cada hora.

Em comparação com 2013, primeiro ano de vigência da lei, a quantidade de abortos aumentou 35%. Em 2016, a grande maioria das mulheres que foram submetidas ao aborto (82,8%) tinha mais de 20 anos; 16,4% tinham entre 15 e 19 anos. Do total de mulheres que procuraram o sistema de saúde uruguaio com a intenção de interromper a gravidez, apenas 6% mudaram de opinião durante o processo. 

Ainda de acordo com o ministério, entre 2013 e 2016, não foi registrada nenhuma morte de mulher que realizou aborto seguindo os procedimentos determinados pela legislação. 

No mesmo período, também de acordo com o governo, 3 mulheres morreram por aborto, mas que não foram realizados no sistema de saúde.

Mercado clandestino ainda existe

Durante os últimos cinco anos, a organização MySU (Mujer y Salud en Uruguay) monitorou a implementação da lei em dez dos 19 departamentos do país, onde vivem 64% da população uruguaia.

A diretora da entidade, Lilián Abracinskas, comemora o fato de cerca de 35 mil mulheres terem sido beneficiadas pela legislação durante esse tempo. “Os serviços de aborto legal estão funcionando em todos os departamentos do país, pelo menos nas capitais”, analisa.

No entanto, ela classifica o processo pelo qual a mulher precisa passar como “rigoroso e complicado”, o que pode estar alimentando o circuito clandestino que, segundo ela, não deixou de existir.

De acordo com Abracinskas, a grande diferença entre os números oficiais divulgados após a lei e as estimativas feitas antes da legislação alimentam a suspeita. Estudos anteriores a 2012 estimavam que eram realizados entre 16,3 mil e 33 mil abortos por ano no país. Pela via legal, em 2016 foram feitos menos de 10 mil interrupções. 

“Há muitas mulheres que não estão sendo atendidas pelos serviços legais de aborto e, por isso, continua existindo um circuito clandestino por meio do qual muitas mulheres transitam”.

A entidade defende algumas alterações na legislação, entre elas, que outros profissionais médicos tenham autorização de prescrever a medicação que induz o aborto. Atualmente, só ginecologistas podem fazer isso.

“Isso baixaria o custo porque não é o mesmo pagar a hora de um médico de família e de um ginecologista, e poderia universalizar o acesso ao serviço de aborto em localidades pequenas onde sempre chega a medicina comunitária.”   

Abracinskas afirma que são muito frequentes os casos de mulheres que vão a outras regiões em busca de ginecologista, seja porque não há profissionais disponíveis em suas cidades ou porque os que existem se negam a atender pacientes que querem abortar, alegando objeção de consciência (para não ferir seus princípios religiosos, morais ou éticos).