Internação involuntária, abstinência: entenda a nova política de drogas
A lei que altera diversos pontos do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) foi sancionada por Jair Bolsonaro no dia 5 de junho, com vetos em relação ao texto aprovado pelo Congresso. Entre os vetos, não se determina a definição de critérios objetivos para redução de penas e ainda para diferenciar as condições de usuário e de traficante de drogas no Brasil.
Entre os pontos do documento final que têm sido alvo de discórdia, estão o foco nas chamadas comunidades terapêuticas e a regulamentação das internações involuntárias.
Também tem sido criticado o fato de que a nova política não faz menção à legalização de drogas como a maconha, uma demanda de parte da sociedade civil e atualmente em debate no STF (Supremo Tribunal Federal).
"A lei não toca na principal questão das drogas", diz o advogado Cristiano Maronna, secretário executivo da PBPD (Plataforma Brasileira de Política de Drogas). "O fato de não haver nenhum tipo de discussão sobre descriminalização, ou pelo menos a definição de critérios objetivos para diferenciar uso de tráfico, tornam a nova política ineficiente."
Já Ana Cecilia Marques, coordenadora do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), vê com bons olhos a nova política. "Minha avaliação geral é boa, porque trata-se de um avanço do ponto de vista da lei anterior, de incluir mais ações de tratamento, prevenção e controle de oferta de drogas na política nacional."
A lei sancionada no começo do mês tem origem em um Projeto de Lei de 2013, do então deputado federal Osmar Terra, hoje ministro da Cidadania.
Entenda os principais pontos:
Abstinência e redução de danos
A nova política fala em "oferta de projetos terapêuticos ao usuário ou dependente de drogas que visam à abstinência". O texto não fala, no entanto, na abordagem de "redução de danos", reconhecida pela lei anterior.
A redução de danos consiste em atender usuários sem necessariamente cobrar a abstinência, o que é feito a partir de medidas que minimizem efeitos adversos do uso de drogas, como viabilizar seringas descartáveis ou moradia adequada. Um exemplo de política de redução de danos era o programa De Braços Abertos, lançado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, em 2014.
"Tenta-se criar antagonismo entre redução de danos e abstinência, como se fossem duas metas antagônicas, quando na verdade são complementares. A pessoa está vivendo uma situação de dependência grave e não consegue aderir a um tratamento de abstinência, que é de alta exigência, então pode começar reduzindo o consumo até poder se organizar melhor e buscar outro tratamento", explica Maronna.
"Cada dependente tem o seu projeto terapêutico, para cada paciente cabe um conjunto de ações, entre elas as estratégias de redução de danos. Não é uma política, é uma estrategia de tratamento bem clara", defende Marques. "Mas tem paciente que se não parar de beber hoje, morre hoje."
Comunidades terapêuticas
A lei reforça o papel das chamadas comunidades terapêuticas. Trata-se de entidades privadas, em sua maioria de orientação religiosa, que recebem usuários para internação. No Brasil, elas são regulamentadas desde 2011 e acolhem pessoas com problemas de saúde mental e usuários de drogas que o sistema de saúde não suporta em sua estrutura.
Essas comunidades não eram mencionadas na política de drogas anterior. Agora, aparecem entre as entidades responsáveis pelo tratamento dos usuários de drogas - embora o texto vede qualquer tipo de internação nessas unidades.
Críticos da medida chamam atenção para o fato de que a falta de fiscalização permite que muitas comunidades terapêuticas burlem a lei, ao impedirem o livre trânsito das pessoas ali acolhidas ou não concederem um tratamento adequado. Temem ainda que a medida leve a uma redução dos investimentos na rede pública. "Essas comunidades não fazem parte do sistema público de saúde, e no entanto estão recebendo financiamento público sem licitação, quando os Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e o SUS sofrem com a falta de financiamento", diz Maronna.
Marques discorda: "Estamos há 15 anos fechando leitos no sistema público. Se deixar o dependente na rua, ele não terá condições de continuar o tratamento. Se eu tenho a comunidade terapêutica junto com a rede de cuidados, isso pode ajudar. Claro, não pode ser qualquer uma, tem que haver fiscalização", diz.
O documento que chegou a Bolsonaro previa ainda a inclusão desses centros na composição do Sisnad e a priorização, no SUS, de pessoas que tenham passado pelas comunidades terapêuticas. Esses trechos, no entanto, foram vetados.
Internação involuntária
A internação involuntária consiste na internação do dependente químico por determinação médica, ainda que contrária à própria vontade.
Até então, a política de drogas não estabelecia critérios para esse tipo de internação, ainda que fosse usada como alternativa as internações compulsórias - que são decretadas por um juiz. "Geralmente no curso de um processo criminal, quando uma pessoa pratica um crime e é considerada inimputável, ou seja, não consegue entender o caráter ilícito de seus atos", explica Maronna.
A lei agora permite que a internação involuntária seja feita em unidades de saúde e hospitais gerais, com o aval de um médico responsável e pelo prazo de 90 dias. A solicitação para que o dependente seja internado poderá ser feita pela família, pelo responsável legal ou servidor da área da saúde.
"Eu sou médica, se o paciente entra no meu consultório com hemorragia gástrica, eu vou internar involuntariamente. Existem estados na doença da dependência, de intoxicação grave, que o paciente corre risco de morte. Internar é uma prerrogativa do médico, meu código de ética me protege nesse sentido", defende Marques. Ela ressalta, no entanto, que isso vale para uma minoria dos casos.
"Nos preocupa o fato de que uma medida tão drástica e violadora de direitos seja apresentada como espécie de panaceia", critica o advogado Cristiano Maronna. "A premissa em que se baseia é a de que o Brasil vive epidemia de drogas. Pesquisa da Fiocruz mostra que não há epidemia no Brasil, mas um grande consumo que deve alertar gestores públicos. A meu ver, a lei tenta massificar esse instituto que é excepcional."
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