"Não olhava o espelho", diz mulher com prótese facial de fundação ameaçada
Resumo da notícia
- Professora teve metade do rosto afetada por complicação após cirurgia
- Conseguiu voltar a sair depois que conseguiu uma prótese de fundação especializada
- Instituição está ameaçada de fechar em proposta feita pelo governador João Doria
A professora aposentada Alaíde Maria Mussato, 72, tinha 37 anos quando notou uma espinha no nariz e decidiu espremer. A região inflamou tanto que ela precisou fazer uma pequena cirurgia, que acabou malsucedida. Em dois meses, Alaíde passou por outra operação bem mais complexa, que lhe custou a retirada de metade do rosto e um ano inteiro para conseguir se olhar no espelho.
Quando Alaíde finalmente tomou coragem para encarar a ferida, foi encaminhada para um tratamento realizado em poucos lugares no mundo naquele ano de 1985: a reconstituição do rosto por meio de próteses fabricadas sob medida por uma fundação em São Paulo que se tornaria referência no assunto, a Fosp (Fundação Oncocentro de São Paulo).
Tiraram o globo ocular, a narina direita e o maxilar superior. A única forma de ter minha vida de volta era com uma prótese no rosto
Alaíde Maria Mussato, professora aposentada
A entidade, fundada em 1974, está ameaçada de fechar, embora realize anualmente 5.000 atendimentos e entregue 700 próteses a pacientes de todo o Brasil que perderam parte do rosto depois de enfrentarem um câncer na região da cabeça e pescoço.
A fundação foi incluída em um projeto de lei encaminhado pelo governador João Doria (PSDB) que prevê a extinção de dez empresas públicas, institutos de pesquisas e fundações.
O motivo é o rombo nas contas públicas provocado pela pandemia do novo coronavírus, cujo impacto derrubou a atividade econômica e a arrecadação de R$ 27 bilhões em 2020.
De 'espinha' a tumor
O que Alaíde imaginava ser uma espinha era na verdade um pequeno tumor "não retirado apropriadamente da primeira vez", o que fez com que fosse criada uma gordura por baixo de onde a primeira cirurgia havia sido feita.
Quando o local voltou a inflamar e começou a doer, ele procurou ajuda novamente.
"Fiquei hospitalizada por dois meses antes da cirurgia e 33 dias depois dela. Foi difícil para mim porque eu tinha dois filhos pequenos, de 6 e 4 anos", conta.
Por um ano, eu fiquei sem me olhar no espelho. Só olhava com o curativo feito
Alaíde Maria Mussato, professora aposentada
Nesse período, Alaíde ia diariamente ao hospital para refazer o curativo. "Até que um dia o cirurgião me disse que não dava para viver naquela vida", disse.
"Mas eu ainda nem me olhei no espelho", respondeu ela ao médico. "Ele, então, me pôs em frente ao espelho e fez o curativo comigo. Desde então, eu mesma faço a assepsia."
O problema é que a gaze ocupava metade de seu rosto, o que lhe incomodava muito. "Eu não ia a lugar nenhum. Não saía de casa. Até o dia em que me encaminharam para a Fosp."
"O curativo é muito visível. Já a prótese você só percebe se chegar perto de mim", diz. "É um trabalho todo artesanal, feito com o maior carinho. Quando fica pronto, você está praticamente com o rosto normal."
O silicone utilizado é todo importado. A prótese, substituída todos os anos, é feita manualmente na presença do paciente. "Requer muita modelagem porque a gente vai envelhecendo, mudando as nossas características. É um trabalho maravilhoso", afirma.
Não posso ficar sem essa fundação, porque ela me devolveu a autoestima, a possibilidade de continuar vivendo como ser humano comum
Alaíde Maria Mussato, professora aposentada
"Se a pessoa tiver de viver só com o curativo, ela vai cair em depressão e perder o sentido da vida. Ela vai ficar presa entre quatro paredes", diz. "Agora eu sou uma pessoa normal. Eu vou ao mercado, vou à igreja, viajo. Eu não posso ficar sem essa prótese."
Há 40 anos trabalhando como psicólogo de pacientes em recuperação na Fosp, Paulo Iakowski Cirillo diz que existem "apenas 53 profissionais habilitados para fazer esse tipo de prótese no Brasil".
"É um acompanhamento individual pelo resto da vida. Temos paciente desde os dois meses de idade. Agora o governo vai deixar de fornecer uma prótese bucal a uma pessoa que não consegue mastigar, falar?", questiona o psicólogo.
De acordo com o governo, "a extinção da fundação não trará prejuízo às atividades" porque serão transferidas a "outros órgãos da administração", mas Cirillo e Alaíde têm dúvidas sobre o conhecimento de outras instituições a esse respeito.
"No Brasil não existe nada igual", diz a aposentada. "Na USP [Universidade de São Paulo] estão tentando chegar lá, mas já vi o trabalho e não tem nem comparação."
Quem pretender fechar a Fosp tem de primeiro conhecer o que se faz ali, se inteirar sobre a tecnologia, o empenho e o carinho dos profissionais que trabalham lá
Alaíde Maria Mussato, professora aposentada
Fosp está defasada, diz secretaria
Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde declarou que a demanda por atendimento na fundação é baixa e que "todos os pacientes com câncer têm e continuarão tendo assistência gratuita e de qualidade no SUS, independentemente da existência da Fosp".
A pasta diz ainda que a fundação "foi criada na década de 70 e está defasada ante a modernização da área de oncologia no SUS, com serviços que se sobrepuseram ao seu papel inicial".
"A demanda por próteses será absorvida por serviços que oferecem tecnologias mais modernas, enquanto o registro de base hospitalar e indicadores de saúde referente a oncologia serão incorporados à Coordenadoria de Controle de Doenças (CCD)", diz o texto.
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