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O Brasil venceu a covid-19? Entenda por que não podemos afirmar isso

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

24/08/2020 20h12Atualizada em 24/08/2020 20h20

Com mais de 115 mil vítimas do novo coronavírus, além de 3,6 milhões de contaminados no país, o presidente Jair Bolsonaro participou hoje do evento "Brasil vencendo a covid-19". O nome e o tom do evento são novos capítulos do mesmo enredo: a ideia do governo federal de chamar a atenção para as "boas notícias", o que inclui ignorar o alto índice de mortos.

A métrica tem sido criticada por, principalmente, induzir ao erro de que o país estaria saindo da crise sanitária, quando os números mostram o contrário.

O país registrou uma média móvel de 971 mortes/dia e oscilou -3% no período de duas semanas, mantendo a estabilidade de óbitos em decorrência da doença, segundo dados compilados até hoje pelo consórcio do qual o UOL faz parte. Cinco estados, incluindo o Rio de Janeiro, apresentam aceleração na média de mortos.

"Estamos sendo vencidos pela covid-19", diz a médica infectologista Joana D'Arc, que atua em hospitais do Distrito Federal na linha de frente do combate à doença, quando questionada sobre se é possível afirmar que o país venceu ou está vencendo o vírus.

Para ela, "sem testagem adequada por meio de RT-PCR, sem isolamento adequado, com dificuldade de acesso aos serviços de saúde, com qualidade de serviço comprometida pela alta demanda e sem uma liderança confiável", estamos em desvantagem na batalha contra a proliferação do vírus.

"O Brasil sofre as consequências de um país com enorme vulnerabilidade socioeconômica e política. O vírus se espalhou pelo mundo, mas de forma desigual. Em países como o Brasil, com desigualdades brutais, assistimos o adoecimento, principalmente dos mais frágeis, de forma lenta e progressiva."

A opinião de D'Arc converge com as pesquisas que mostram que os mais pobres, os trabalhadores informais e os pretos e pardos são os mais atingidos pela pandemia.

Em São Paulo, bairros periféricos, com mais pretos e pardos e com menos postos de trabalho formais estão no topo do ranking de vítimas do novo coronavírus.

O médico Leonardo Weissmann, consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), concorda que o "Brasil ainda não venceu a covid-19". "Todo cuidado é pouco para que a situação não volte a piorar."

"A situação neste momento é melhor do que a de semanas atrás, mas o vírus continua circulando. No país, temos uma estabilidade de casos e óbitos, mas em números altíssimos", diz o médico à reportagem.

"É preciso que se mantenham as medidas básicas de prevenção: distanciamento físico, uso de máscaras e higienização frequente das mãos."

Médicos e especialistas em saúde pública têm afirmado, desde o início da pandemia, em fevereiro, que uma suposta "vitória" contra o vírus só poderá ser cogitada a partir de uma vacina.

Ataque à imprensa: porrada e bundão

No evento de hoje, Bolsonaro voltou a atacar a imprensa após dizer, no domingo, que tinha vontade de "encher a boca" de um repórter do jornal O Globo de "porrada". Ele disse que, quando o vírus "pega num bundão de vocês [imprensa], a chance de sobreviver é bem menor".

O encontro teve a participação de médicos entusiastas do governo e da hidroxicloroquina, substância propagandeada por Bolsonaro e sem qualquer eficácia comprovada contra a covid-19.

Corroborando as críticas de que o governo tenta maquiar a situação apresentando supostos dados otimistas, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, disse hoje que os números da pandemia serão "muito positivos no final".

"Não estou falando apenas de números, que serão muito positivos no final, quando colocarmos cálculos com relação à população brasileira e, infelizmente, às perdas. Estou falando do que fizemos para o combate à pandemia. O que nos entregamos, chegamos na ponta da linha", disse o ministro interino em evento de inauguração de unidade de apoio ao diagnóstico da covid-19 da Fiocruz no Ceará.

Dados ignorados

O governo federal adotou uma política, desde o início da pandemia, de privilegiar dados positivos, como os índices de recuperados, e ignorar os recordes de mortos causados pela pandemia. Em 19 de maio, por exemplo, o país registrou um recorde de número de vítimas em 24 horas: 1.179. Foi a primeira vez em que o país contabilizou mais de mil mortes em um dia.

A Secom (Secretaria de Comunicação) ignorou o dado e escreveu na conta oficial do Twitter que, "com mais de 106,7 mil brasileiros curados da Covid-19, o Brasil avança no combate ao #coronavírus".

"Até as 19h desta terça-feira (19), foram registrados também 146.863 casos em tratamento. A batalha do governo federal para salvar vidas continua."

Quando o país alcançou a marca de 100 mil mortes, no dia 8 de agosto, o presidente não se manifestou. No dia seguinte, disse que lamentava cada morte "seja qual for a sua causa" e apontou o isolamento social como possível causa de outras mortes no país, na contramão do que dizem médicos, cientistas e a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Ainda no dia 8, a Secom usou novamente as suas redes sociais para celebrar as ações do governo federal. "Todas as vidas importam: as que vão e as que ficam. Lamentamos as mortes por covid, assim como por outras doenças. Nossas orações e nossos esforços têm a força de um governo que dá tudo para salvar vidas, com uma reação que serve de exemplo ao mundo todo. O Brasil vai em frente", escreveu a secretaria.

Em um vídeo divulgado junto ao texto, a secretaria elogia dados como "quase 3 milhões de recuperados" e "um dos menores índices de óbitos por milhão entre as grandes nações". Usada constantemente por Bolsonaro, a taxa de mortes por milhão é ineficaz para medir o momento da covid-19 e induz a entendimentos equivocados da epidemia.